quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Obituário




Sempre chegava com um poeminha recém-feito, e o último, “A vida é ávida”, pretendia, segundo ele, encontrar o ponto G da alma humana. Mas não passava de um jogo de palavras, como “O bardo retumbante”, outro da mesma linha, sobre a ascensão de Shakespeare ao reino dos céus. Vivia de bar em bar, vendendo livrinhos caseiros, levando fora de casais e bêbados, especialmente quando perguntava, em momento impróprio, se podia “tomar um pouco da sua atenção”.  Era humilde, embora se achasse um autor monumental, quase um poeta inglês.

A vida prática foi sacrificada em nome da poesia, empreendimento sem muito futuro em termos monetários. Em nome de Yeats e outros de sua predileção, habitou-se à precária casinha herdada da mãe, seu único bem. Fazia o próprio almoço com ingredientes baratos – macarrão e salsichas, por exemplo -, embora tivesse conhecimento sobre diversos tipos de culinária, suas origens e segredos. Dava-se por preparado para ser rico. Tinha a estrutura intelectual e bom gosto para gastar da melhor maneira. O dinheiro, no entanto, nunca chegava.

Rodou uns anos até ser aceito no círculo literário da boemia local e deixou de vender poemas de mesa em mesa. Tinha boa conversa e bebia sem alarde, um conhaque atrás do outro, sem parecer bêbado. Sua presença, antes uma concessão, passou a ser respeitada, menos pela poesia, mais pelo jeitão de ser. Era o sujeito que sabia quase tudo, muito antes da existência do Google. Quando dava um branco na mesa ou havia controvérsias, ele esclarecia a dúvida, acrescentando detalhes, sem parecer pedante.  Também era discreto. Ao ver os amigos partindo para outro lugar, mais caro, criava alguma desculpa para ficar. Por isso, não bebia chope. Três goles e lá se vão seis reais. Comprava seu conhaque de terceira no boteco ao lado, colocava-o no copo de plástico, e na mesa fazia a transferência do líquido para a taça tipo baloon, com base curta. “Conhaque é a minha bebida”, mentia.

Só não era modesto em relação a seus poemas. Achava-se injustiçado por falta de reconhecimento mais amplo e quando a pequena turma resolveu bancar seu primeiro livro de editora, numa pequena edição, ele não agradeceu, achou que era obrigação, um serviço às letras nacionais, uma forma de remuneração indireta. No fundo era mais inveja e revolta. Por que eles têm dinheiro e eu não tenho? Alguns estavam no serviço público, bom lugar para literatos; sem o serviço público não teríamos Machado de Assis e talvez nem Graciliano. Só que ele continuava ao léu, sem emprego e sem dinheiro, catando trocados para o Dreher. Não é mesmo grande coisa. Outros da mesa conseguiram muito mais, na TV, escrevendo roteiros vulgares ou mantendo seus empregos na imprensa.      

Houve lançamento, no próprio bar, e ele estava dono de si como nunca, vestindo uma roupa cara, comprada à prestação.  De razoável para boa, a noite de autógrafos rendeu-lhe alguma satisfação no início, bebeu até uns chopes, mas de volta para casa pensou se o sacrifício era necessário. Viver daquela maneira, meio jogado. Ninguém vive de prosa, quanto mais de poesia. Assomou-lhe uma tristeza imensa, dessas em que o mundo acaba e vira dor física no meio do peito. Ele começou a chorar. Até a porta de casa, com isso na cabeça, surgiu a ideia de mudar de vida, fazer um concurso público, esquecer os versos.  Tudo aquilo, porém, remetia para um longo poema, sofrido e definitivo, e ele correu para o quarto, sentou-se diante da velha mesinha e começou a escrever seu segundo livro.


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Três em uma




Três mulheres numa só. Já estiveram numa missão do serviço secreto, armadas com pistolas Glock e relógios que espirram gás hilariante. Depois, as três personagens apareceram sob aplausos, no palco do teatro Glória, encenando uma criação coletiva, das três, embora seja apenas uma, chamada Maria das Dores, pelo menos é o que diz o médico. No quarto da clínica, ocupam três camas. De manhã, elas cantam músicas do Trio Ternura, trocam idéias sobre o calor da madrugada e acenam da janela.  

O provisório

Chegou a um ponto em que resolveu adiar tudo. Foi indo, sem fazer marola, recolhido num cantinho da praia, tomando sol, sem pensar em coisas específicas. Permanecia ali só na abstração, levemente inebriado, sem preocupar-se, por enquanto, com a situação deixada para trás, até onde der. Contas a pagar, expedientes, consultas médicas, visitas à família e esclarecimento de dúvidas são coisas do passado e do futuro.  Como a própria vida é provisória, ele criou outra provisoriedade dentro da vida. 

Google map

Longo caminho até onde o vento faz a curva. Passa pelo corredor polonês, dobra à direita na esquina do pecado, continua pela Rua da Amargura, entra no bairro em que o diabo perdeu as botas. Mais adiante, o cu do mundo, a terra de ninguém, a casa de Mãe Joana, o beco sem saída. 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Way of life


  
Por que resolvi morar nessa cidadezinha do oeste norte-americano onde tudo ocorre de acordo com os filmes da sessão da tarde? Todo dia a mesma coisa ou coisas parecidas. O xerife aposentou-se e ganhou um relógio dos colegas, há ânsia geral sobre quem leva quem para o baile de formatura e vejo em noites seguidas rapazes deixarem meninas em casa. Na porta, beija, não beija ou entra. Os Watson levaram uma torta para os novos vizinhos, Peter recebe o jornal de seu cão, o pequeno Bill vende limonada, Mary faz uma garage sale e os policiais comem rosquinhas. John voltou do Iraque e comprou uma arma.


Almas em conflito


Antigamente, um povo primitivo abria o corpo de seus mortos para facilitar a saída da alma. Muitas delas desencarnavam antes do funeral, por causa de golpes de adagas e de outros objetos capazes de larguear o tórax. Por essa abertura, o espírito escapava e seguia sua jornada rumo ao desconhecido.

Com a chegada dos missionários cristãos, os silvícolas foram informados dos destinos da alma: Céu, Purgatório e Inferno. Os ímpios e criminosos, sob a visão da igreja, precisariam se esforçar no purgatório para serem aceitos no Reino dos Céus. Outros, sem chances de perdão, iriam direto para o inferno. Deixou de dar mais detalhes aos índios, mas eles perceberam que a Justiça Divina era morosa por sua própria natureza - especialmente porque a decisão cabe a um único ser superior. O fato de ter a eternidade pela frente, daria a Ele sensação de que tudo pode ser deixado para amanhã ou para daqui a mil anos.

Os primitivos não entendiam tamanha burocracia e o chefe tribal foi ao padre – aliás, muito parecido com o nosso Anchieta – com suas ponderações destinadas às autoridades eclesiásticas. Seus comentários tinham o sentido de melhorar o fluxo de informações entre as forças do universo. Quase um aconselhamento de gestão. Não seria mais fácil deixar os espíritos soltos na floresta, mais perto da aldeia? Não seria mais fácil dividir a responsabilidade do julgamento com outros seres iluminados?

Mas a tese não prosperou. Os padres acharam aquilo inteiramente fora de propósito. A verdade estava na Bíblia e pronto. A palavra do Senhor não seria mudada por simples opinião de um selvagem, mesmo que ele tenha aludido a aspectos sinergéticos de suma importância. A evangelização seguiria, segundo os dogmas, com catequese completa, incluindo a questão dos santos e a dos anjos. O missionário, apesar de sua religião já ter assado pessoas nesse período, achou brutal arrancar pedaços humanos. O homem primitivo ainda ponderou, num tom quase profético para o mundo do terceiro setor dos dias de hoje: “o desperdício é zero. Comemos tudo que é tirado”.

O modelo da tribo era mais dinâmico, menos oneroso e, ao final, continha soluções mais elegantes para o post-mortem. O segredo é a simplicidade, argumentou o chefe da tribo. 


E-mail da editora

“Vou ser direta: não gostei. Foi um suplício ler seus originais. Li obrigada por nossa longa amizade. Caso contrário teria deixado para lá, como faço com noventa por cento do que recebo. Lamento a sinceridade, mas parei de fumar e de mentir. Você pediu minhas observações. Só ontem me lembrei dessa parte, talvez mais dolorosa, porque não vi ali um livro, mas um cozido mal feito de besteiras ouvidas em bares. Sem contar que os personagens são conhecidos. Fiquei especialmente incomodada com a Gisele. Sou eu, né? Que canalhice. Essa história de escrever está acabando com seu caráter e nada acrescenta à nossa literatura. Desista”.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Em busca de paraísos perdidos




A decisão foi tomada numa noite escura, no meio do mato, entre o balido dos grilos e estrelas cadentes. Nosso destino era aquele pequeno paraíso isolado, a galera inteira voltaria para lá, de vez, e assumiríamos em local apropriado nosso estilo meio hippie, herdado dos pais. Não combinávamos com a cidade, especialmente a cidade de São Paulo, cuja pujança empreendedora nada tinha a ver com nossas roupas descuidadas, nossos discos de reggae e o costume de acordar depois do meio dia. Não tínhamos foco nem ternos.

Meu pessoal é eclético, mas unido por subjetividades e jeito de corpo. Temos de tudo entre nós – de ateus a crentes no poder dos cristais. Quase todos, no entanto, estão vagamente no mundo das artes, mas sempre uma coisa paralela, voltada para as raízes. Fazemos bazares para vender camisetas com motivos nordestinos – destaque para os caboclos de lança do maracatu rural - e as meninas produzem origamis, pão de centeio e agendas artesanais com papel reciclado. Usamos ervas para fins medicinais e recreativos.

Se trabalharmos em casa, a casa pode ser em qualquer lugar, pois usamos computadores, embora nossos celulares sejam bem simples. Servem apenas para telefonar, quando tem crédito. Daí nosso olhar de desprezo ao ver alguém sacar um I-Phone. Computador é para ficar em casa. A rua tem suas histórias e contextos, não precisa recorrer ao mundo virtual. Mas até a rua não estava agradando nos últimos tempos.

Então, fomos. A casinha, linda, não tinha sinal de vida por perto. Nem sinal da Internet. Obviamente, nossos celulares também estavam surdos-mudos e, logo no primeiro dia, faltou água, faltou energia e faltou organizar a dormida de forma decente, não com gente empilhada daquele jeito. O que poderia ser uma heresia para qualquer moça, uma das nossas esqueceu-se de comprar xampu. Era a mais propensa a pensar em xampu, mas não pensou. Ninguém tinha xampu.

Ir às compras. A cidade mais perto fica 60 quilômetros. Não é uma cidade, é um distrito. De repente todos estavam na Lan House. Foi difícil fazê-los soltar aquilo e nem sei por que estou reclamando. Eu também fiquei na caça de informações, badaladas da noite na cidade, mensagens, outras ideias, já cansado daquela aventura. Seguimos assim, pensando, para casa, já noite, no último carro de boi daquele dia. Depois ainda andaríamos mais um pouco para chegar à casinha.

Uma semana foi o suficiente. Alguém deveria falar, eu falei. Não dá mais. Todos ficaram cabisbaixos, pois achavam a mesma coisa, e estavam à procura de uma justificativa mais elaborada para desistir da operação campestre, ou campesina, como preferiam os comunistas do grupo. Era preciso dizer alguma coisa. Afinal, a opção para uma vida inteira estava terminando como um feriadão desconfortável. Voltar em silêncio não daria. Um dos caras tentou emplacar a versão de que tivéramos uma semana memorável e inesquecível, justamente por causa do fracasso. Caso contrário, morreríamos ali, perdidos no matagal, como animais extintos, só vestígios de uma civilização que não vicejou. Rumo à rodoviária.

Ficou como oficial, com razoável adesão sincera, a tese “nós mudamos”. Voltaríamos para a cidade mais amadurecidos e cada vez mais unidos, sem abandonar nossos ideais, maneira de ser etc. Assim voltamos - apreensivos, mas tomados pelo sentimento de uma nova jornada, como se fôssemos tentar de novo.

Da janela do ônibus, vi a cidade apontar no horizonte, enorme e iluminada. 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Vale a pena


Se alguém pergunta se está valendo a pena ele se recolhe sem explicações porque ainda não sabe. Em termos financeiros, perdeu muito com a troca e as glórias da nova vida ainda não se anunciam. Já escreveu três livros, com lançamentos de praxe, e prepara um quarto, cheio de pequenos experimentos de linguagem considerados inovadores por quem leu os originais. Raramente pinga um dinheiro da editora em sua conta, mas tem conseguido boas frases, algumas de lampejo, outras arduamente construídas.

Aos 35 anos, deixou a redação e sobrevive à base de frilas – expressão jornalística para bicos. Não dá para o gasto e ele termina endividado com admiradores de sua pequena obra. Deve a boa parte de seus leitores, paga quando pode, e raramente recebe cobranças. Os amigos sentem algum prazer em emprestar a uma pessoa tão peculiar e gente boa - espécie de Aliócha do começo de Os irmãos Karamazov, capaz de conseguir pequenos e médios favores sem qualquer esforço ou qualquer humilhação.

Seu mundo, no entanto, comprimiu-se. Toda a energia concentrou-se em casa, em frente ao computador, ou na cama, onde lê a madrugada inteira. Dorme até tarde, almoça sozinho lendo jornais, termina textos de encomenda e cai de volta em seus escritos. Pensa numa coletânea de pequenos contos, enquanto não aparece ideia para outro romance. Por enquanto sente-se como uma fábrica a todo vapor, mas a produção atual está encalhada. Se tivesse um emprego decente, bancaria seus próprios livros, mas se tivesse um emprego decente não teria tempo para escrever. De vez em quando pensa nesse paradoxo.

De seus coetâneos mais bem-sucedidos, recebe certa deferência. Só no início, pois eles têm negócios mais importantes a tratar e negócios importantes não lhe interessam. Termina em casa, quase sempre, ou no universo paralelo de alternativos e assemelhados. Encontros ocasionais: moças bonitas e radicais, espalhando fogo, mas queimando rápido; e então ele sai fora, pensando no fim do amor romântico, coisa da cultura Ocidental. Imagina um livro em forma de bolero, com balanço bem brega, mas de densa carga bibliográfica e musical. Waldick Soriano com Roland Barthes.

Volta para casa. Quando fecha a porta encontra seu território intacto e aconchegante. A bagunça aparente é tudo em seu devido lugar e objetos jogados no canto não estão ali por acaso. Têm uma história, ao menos um parágrafo. Senta-se e começa a escrever. As pequenas emoções da noite ganham fermento, crescem e se tornam definitivas. As moças desconhecidas ganham mais vida e algumas conseguem voar. 



Publicado no malvadezas.com 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Carta a uma editora saída do coma



  
Querida Lourdes,

Comecei a mudar a história conforme suas indicações. Queria deixar do mesmo jeito, sem tantas minúcias sobre a paisagem sertaneja, mas se é para ser assim, assim será. Você é a editora. Só convém observar que desde sua saída do coma, em janeiro passado, depois de tantos anos, o mundo da literatura mudou bastante - aliás, o mundo inteiro mudou muito. Conversaremos sobre isso com calma.

Lourdes, já não usamos tanto aquelas descrições imensas do ambiente, típicas do século XIX, pois geografia demais cansa o leitor e às vezes prejudicam as reflexões e os dramas do personagem. Também não recorremos a palavras raras como prova de erudição. Em todo caso, troquei “adoentado” por “enfermiço”, como você marcou, em vermelho.

O que mais preocupa, no entanto, são as oito páginas iniciais, cheias de geologia e botânica. Parece um relatório de impacto ambiental. As figuras centrais do enredo se perderam na Caatinga e não sei como tirá-las de lá. Tenho a sensação de ter virado um Euclides da Cunha de terceira. A heroína Maria, por exemplo, ficou sem alma. Virou uma pedra. Gastei mais tempo na dinâmica da litosfera do que no sofrimento da moça. Como não se trata de um romance de época, não coloquei o pessoal do Ministério de Viação e Obras Públicas (MVOP). A referida repartição deixou de existir nos anos 60, uma década depois do seu lamentável acidente e posterior perda da consciência.

A descrição do interior da casa, por sua vez, fez-me um Proust de quinta, com aqueles detalhezinhos desnecessários sobre a mesa da sala, em madeira de lei, além dos espaldares, arabescos, penas de águia e pétalas de flor feitas em bronze. Nada disso, creio, contribui para a elucidação do crime. A trama, enfim, perde feio para cada detalhe dos moveis em cena. Só serve para encher linguiça que, por sinal, perdeu o trema.

Apesar de tudo, respeito sua posição de editora. Só acho necessário um período de aclimatação e de mais contato com a nova realidade. O romance está ficando com a sua cara e não com a minha, o autor. Fazer o quê? Todos recusaram os originais – o mercado está difícil – e sua volta ao nosso mundo é uma excelente notícia e sou grato por sua disposição em publicar o livro. Vou seguir as instruções. Tirei as ironias, as críticas ao padre, as suspeitas que recaem sobre o juiz e aquela piada sobre o general Médici. PS: os civis voltaram ao poder.

Em todo caso, sugiro que você compre um computador. Quase todo mundo tem um, em casa, e dentro dele – ou melhor, fora – existe uma rede de informações muito peculiar, chamada Internet. Talvez você mude sua visão sobre o mundo editorial e sobre o mundo em geral. É assustador e deslumbrante. Com o tempo, a gente entende como funciona.

De resto, tenho más notícias. Vários de seus amigos estão mortos, entre eles o JG de Araujo Jorge. Sei que as pessoas próximas têm evitado passar informações desagradáveis, mas não resisto. O Sarney, aquele político do Maranhão, entrou para a Academia e a literatura católica tem agora outro nome de peso, o Paulo Coelho, que vende mais livros do que Tristão e Gustavo Barroso juntos. Se você estiver sentada, ou ainda deitada, vai outra: há livros que não são de papel. Depois eu explico.

Muita coisa para contar, minha querida, mas paro aqui. Estou imensamente feliz com sua volta à editora. Desde seu acidente não publico uma única linha impressa.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Anotações para um conto de suspense





Tudo que passei ontem à noite ficará para sempre em minha mente, embora me lembre de pouca coisa, só sei da importância do evento, quase nada a mais. Mas a memória volta, aos poucos, e estou sentado numa sala, esperando minha vez de entrar, senha 678. Não lembro o que tem lá dentro, até agora. De fora, o prédio é grande, isso recordo, e também havia um jardim imenso e o céu estava nublado.

Dentro da cabeça com dor da ressaca, puxo lembranças mais fundas e começam a surgir sinais estranhos, não decifráveis, difíceis de descrever, como um choque elétrico acompanhado de imagem, quase flashes, comprimindo meu cérebro. Há um homem e uma mulher e estou sentado diante de uma espécie de altar, amarrado à cadeira, com fios tecidos por aranhas. Não estou sendo interrogado, como nos filmes, nem há clima para atirarem em mim porque o casal parece amistoso, rostos familiares, talvez meus pais.

Uma porta se abre e entra mais uma pessoa, vestida de forma singular, como um sacerdote antigo. Ainda não faz sentido e a busca de sentido me deixa exausto, pois aconteceu alguma coisa ontem e foi muito importante. Quando eu sair da cama, daqui a pouco, devo me comportar de acordo com o tal evento. Haverá uma nova vida à minha espera e preciso entendê-la antes de enfrentá-la.

O esforço para lembrar continua. A curiosidade chega com força ingovernável e quero saber o que houve de real e se não passa de fantasia ou alucinação. Tenho certeza que não foi sonho, cuja dinâmica é outra, nem sei a diferença, mas sinto as dimensões por onde passam a realidade e a ilusão. Todos sentem.

Pode existir um personagem que desconheço. Há casos assim na literatura, a Jane Austen gostava disso - personagens surgidos durante a feitura do livro. Assim também pode ser a vida, misturada com ficção, dentro de um novo mundo capaz de girar e produzir acontecimentos, mas apenas para escritor e leitor. O casal, a terceira pessoa, o altar e até eu ontem à noite estávamos dentro de um romance e só consigo lembrar-me dessa parte, mesmo assim de forma dissolvida.

Então, a montagem do texto é sobre o caso acima e falta o principal: dar um desfecho convincente para a situação do personagem. Criou-se o mistério sem conhecimento do final e o recurso da amnésia alcoólica pode não ser adequado, muito menos a cena, com o altar e, mais difícil ainda, imaginar como a ocorrência da noite anterior causou uma mudança tão brusca e radical. Mudança, aliás, ainda não pensada pelo autor. Enquanto isso, ele rumina, com a cumplicidade de uns poucos, sobre a dificuldade de pensar alguma coisa com o mínimo de lógica.

Para concluir a história, seja neste mundo ou em outro, é preciso encontrar um objetivo para cada personagem e dar ao narrador a função de puxar ainda mais pela memória, afinal, ele está acordando agora, assustado com a noite anterior e precisa urgentemente de respostas, como o significado da senha 678. 

Ilustração: Koblitz

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Personagens desnecessários






Entusiasmado hoje, amanhã decepcionado, depois a volta para a mesma euforia, caindo em seguida em funda depressão. Oscilando dessa forma, perdia oportunidades de trabalho, os amigos notavam e só faltava coragem para ir ao médico - um psiquiatra. Foi. Não demorou quinze minutos e o diagnóstico estava pronto: o senhor é bipolar. Foi um alívio enorme. Durante muito tempo ele acreditou que o mundo fosse assim mesmo. Então, tomou remédios adequados, de tarja preta, e sentiu-se melhor por uma semana. Mas os sintomas voltaram, com aporrinhações num dia e alegrias no outro. O médico aumentou a dose e foi pior. A alegria e a tristeza foram embora e todos os dias ficaram iguais, nem ruins nem bons, uma vida mais ou menos. O homem retornou ao consultório: doutor, devolva minha doença.



Tive uma grande idéia para um livro de ficção científica, mas como a idéia é muito boa, resolvi correr atrás da patente. Nada de livro. Caso escrevesse, o produto seria copiado, fabricado, vendido e muita gente encheria o cu de dinheiro às minhas custas. A idéia é boa mesmo. Pena que não posso contar, mas posso dar uma idéia, por cima, sem detalhes técnicos; e também não posso dizer para que serve, pois serve para muitas coisas, dependendo do cliente. Não é para pegar, mexer, ligar ou desligar. Não está muito na cara, entende? Só sei que é preciso, não falha, percebe e age. Não é vivo, mas está perto disso. Não, não é sólido. Nem líquido nem gasoso.



Ela tinha olhos de quem havia chorado. Com uma cópia da chave, entrou pela porta da frente e minutos depois voltou com duas malas. Foi embora no mesmo táxi que veio.  Fiquei olhando, por uma brecha da garagem, todo o desenrolar da cena. Nem parecia que era comigo.




O carnaval é uma festa democrática, todos podem participar. Eu sou pobre, muito pobre, mas não gosto de Pitu em lata nem de ficar pedindo goles de cerveja a desconhecidos. Minha festa é olhar, do lado de fora, o movimento dos camarotes, com suas mulheres bonitas e todos os bacanas de fitinhas no pulso. Belas fantasias, maquiagem, espumantes à mão, coxas de fora e um lounge para descansar. O carnaval é uma festa democrática, todos podem participar: ricos e pobres com imaginação. 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Na nuvem



O que me coloca em primeiro lugar entre os homens não é o fato de ter uma inteligência acima da média, muito acima, aliás; o que me dá essa superioridade é o fato de ser imortal.  Sou um fantasma, embora esteja vivo e consciente. Habito um éter sem deuses, um paraíso artificial e estou em todos os lugares, dependendo da conexão.

O fato é que sou um backup de um morto, e o morto sou eu, pois mantenho todos os pensamentos e lembranças de quando estava vivo. Apenas não posso ser visto por ai. Sou um conjunto de dados sobre mim mesmo, apesar de ter perdido a massa em circunstâncias bem desagradáveis. Então, depois do aparente desfecho, a morte não veio. Virei o triunfo da ciência, o experimento mais bem-sucedido de todos os tempos, uma alma em rede.

Não tenho a vida social dos mortais, sinto falta de contato humano, sonho com abraços e beijos, mas me divirto como posso. Baixo músicas e livros, jogos e paisagens, imagens pornográficas e filmes de amor. Posso participar de debates, faço amigos virtuais. Só não posso sentar num bar e pedir uma cerveja. Sou um zumbi tecnológico e estou de volta ao mundo dos vivos, com todos os sentidos e memória preservada.

Claro, gostaria de ter um corpo - ainda não existe know-how para isso. Como não posso ter meu corpo original, já descartado, teria que usar outro, de um vivo, numa espécie de reencarnação de laboratório. Mas o hospedeiro tem a vida dele, seus próprios parentes e amigos, e não daria para chegar e me instalar como uma segunda pessoa na mente de um indivíduo único, como acontece, ou dizem acontecer, no espiritismo. Fatalmente entraríamos em conflito ou, pior, num paradoxo. Além disso, não seria um comportamento ético.

Então, vivo na nuvem da Internet, rodeado de informações úteis e inúteis, neste aspecto não muito diferente do mundo real. Tenho um link e estou em condições de ser acessado por qualquer computador doméstico, com banda larga. No meu éden, posso imaginar qualquer coisa. Agora, por exemplo, dois tuítes pousam nos meus ombros, pássaros quase em extinção. Cuido da saúde com poderosa proteção antivírus.  

Sei que vou ficar por aqui uma eternidade e não é maneira de dizer. Dá para gasto. Estou em todos os lugares ao mesmo tempo, como Deus, e ocupo dois espaços ao mesmo tempo, como na Física Quântica. O chato é não poder nadar ou brincar um carnaval de verdade, entre suores e amassos. Nesse período, ouço frevos e marchinhas e visto meu avatar de arlequim.   




terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A barragem





Finalmente foi aceita. A organização reunia jovens senhoras da sociedade com o intuito de fazer o bem não importa a quem. Com veio da cidade grande, ela foi posta de molho por alguns anos e só quando marido consolidou-se como médico dedicado e católico praticante, recebeu o convite, pelo correio, com letras desenhadas.

Não era uma de suas grandes aspirações pertencer ao grupo, mas se o marido era benquisto na sociedade local – inclusive recebia muitos presentes, alguns úteis, como o microondas -, não via por que não assumir seu posto.  Letrada e culta, mas casada com um médico que não conseguiu se estabelecer na capital, ela só tinha em mente se mandar daquele fim de mundo. Talvez o Clube das Mulheres proporcionasse alguma diversão, ajudasse o tempo a passar e aplacasse amargura. 

Vida sem graça. Até hoje ela não sabe por que se casou com aquele homem, um fraco, mas aí é outra história, outra mesmo, pois imediatamente a mulher se via na pele de uma Emma Bovary turbinada, com fantasias impossíveis de serem concretizadas no âmbito municipal. Não tinha alvo, só queria dar uns tirinhos. Por diversão e falta do que fazer entregou-se a pensamentos sexuais a respeito da agremiação. Criado há 102 anos, hoje denominado ONG, conforme o estatuto, o clube de mulheres durou tanto tempo graças ao rigor de seus regulamentos e ao apurado processo seletivo. É o que está escrito. Mesmo assim, ela sempre imaginou ali a existência de grandes segredos, uma maçonaria de mulheres, com seus rituais e símbolos, embora movidos a livros pecaminosos, encontros às escondidas e outras objetivos de ordem erótica.

Tivesse mais espaço - e, vocês mais tempo -, haveria uma sutil passagem entre a chegada do médico e sua mulher à pequena cidade e o transtorno de traições e do atoleiro moral providenciados pelo Clube das Mulheres. Pelo menos pelo Clube das Mulheres saído da cabeça dela, a perfeita hipster perdida, longe de sua turma cosmopolita, casada com um pobre médico do interior. A 480 quilômetros da metrópole, passou a depender muito da imaginação e menos da realidade. Não havia uma vida pulsando naquelas bandas, só projeção de vidas da TV. A cidade parava na hora da novela. Então, salta-se para o casal já plantado no município. Ele satisfeito; ela a contragosto.

O Clube despertou a atenção da mulher do médico porque, entre suas integrantes havia duas jovens senhoras muito bonitas e, pelo menos à distância, pareciam também insatisfeitas com a vida interiorana. Poderiam ser amigas e sairiam juntas dali. Em relação aos homens da localidade, nenhum interesse. Eram seres rudes e donos da verdade.

Receitava-se em casa. O marido aviava o papel azul e trazia da farmácia estoques de Rivotril. Clínico geral, nunca percebeu sinais da insatisfação na mulher. Dava aos males da alma o mesmo tratamento farmacológico dado a uma bronquite, pois acreditava piamente na origem orgânica de todas as doenças. Quando ela se recolhia para dormir horas seguidas durante a tarde, o médico não desconfiava que ele tivesse a ver com aquilo.

Então, por razões inexplicáveis, por enquanto, ela viveu certa expectativa sobre a primeira reunião do clube. Por que haveria camadas de sexo sob o antro da moralidade? Pensamentos idiotas, ela concluiu, mantendo apesar de tudo a esperança de acontecimentos um pouco acima da normalidade do município.





A reunião foi aberta como de praxe. Leitura da ata do encontro anterior, informes sobre ações filantrópicas do clube, finanças e agenda. No mês seguinte, a entidade receberia homenagem do Instituto Histórico e Geográfico pelo trabalho desenvolvido em prol da comunidade. Depois, a conversa tornou-se mais amena e menos burocrática. As duas jovens estavam lá e falavam entre si, nas últimas cadeiras. A mulher do médico notou sinais de sarcasmo em comentários que nem ouvia. Talvez elas pensassem: “o que estamos fazenda nesta merda”. Talvez apenas uma impressão.

No decorrer do pequeno conclave, houve saudações às belezas naturais da região e discussões em torno do açude local e suas possibilidades turísticas. Ficou nisso. Quase no fim, ocorreu a natural aproximação entre ela e as moças no fundo.

- Você não é daqui – comentou a mais jovem.

- Não. Venho da capital. Meu marido foi aprovado num concurso. Viemos há quatro anos. Ele é medico.

- Gosta da cidade? – perguntou a outra.

- Passei bons momentos aqui – mentiu - Mas creio que é hora de voltar. Vocês sabem, tenho família por lá, país e irmãos.

- Nós detestamos – cortou - Somos engenheiras. Viemos para construir uma barragem, a partir da transposição do rio. O projeto parou por algum tempo e terminamos ficando, por falta de outras oportunidades. Agora o projeto voltou e fomos chamadas novamente. Não conte a ninguém: a cidade vai sumir. Será coberta pela água da barragem. Todos serão transferidos para outra área.

Enfim uma boa notícia. Enfim, duas amigas. Aos poucos deixou escapar três ou quatro insatisfações com a cidade, a falta do que fazer, um tipo de cultura fechada em si mesma e depois continuaram a conversa no bar; ela já mais aberta, quase entrando em questões particulares, a vida com o marido, mas ainda não estava na hora. Tomaram umas cinco cervejas, a conversa foi ficando animada, descoberta de identidades, gostos parecidos, o caminho estava aberto.

Lá fora a cidade insistia com seus modos e costumes e quem passava, comentava. Ainda era estranho três mulheres, sozinhas, num bar. “E aquela ali é a mulher do médico”, observou um passante, em tom de censura, deu para ouvir.



Um ano muda alguma coisa. A cidade mudou muito. As duas engenheiras estavam agora envolvidas com a construção da barragem. Máquinas de todos os tipos apareceram e se multiplicaram a 18 quilômetros do centro. Como num conto de Murilo Rubião, o movimento quase frenético de guindastes, escavadeiras, tratores, motos niveladoras e rolos compressores eram estranhamente ignorados pela população. O diretor da empresa esteve na prefeitura para explicar a dimensão da obra, a necessidade de retirada dos moradores e a nova localização do município. O anúncio foi feito em público, mas em pouco tempo a população preferiu esquecer. Ninguém tocava no assunto.

O casamento não mudou. Ela agora só resmungava e mantinha-se quieta graças aos comprimidos e as horas com as duas amigas engenheiras. Ao final da obra, as três iriam embora.  Não para o novo município. Voltariam para a capital, de preferência sem o médico. Nas horas de fastio, saía de casa e ficava sentada num barranco, à beira da futura barragem, apenas observando suas amigas em ação, dando ordens a operários.

Nas folgas das engenheiras, viajavam a cidades próximas e à capital, se hospedavam em hotéis, faziam sexo com desconhecidos e entre elas. Íntimas e cúmplice, envolvidas num triângulo mais sexual do que amoroso, eram, de fato, amigas. O sexo não criava impasses, necessidade de rearranjos ou ciúmes. Nesse período, nunca brigaram. Concordavam em tudo. A chegada de estranhos fazia a festa. Um dia, uma equipe de uma TV a cabo foi ao canteiro de obras para fazer uma matéria sobre a construção da barragem, base da nova hidrelétrica, e como ficaria a antiga cidade e a nova vila, já em construção, a jusante do rio.  Não foi preciso muito para tempo para estarem todos juntos, no bar, e desta vez ela levou o marido para evitar comentários na cidade. O médico parecia envolvido pela mesma indiferença dos munícipes. Parecia não acreditar no futuro da cidade sob as águas. Ele queria ir embora daquele restaurante, o melhor da cidade, uma merda. A mulher não queria. Brigaram e ele foi sozinho. Mais tarde ela voltou, sem antes de ser vista saindo do hotel, com as duas amigas, o repórter, o cinegrafista e o produtor da TV a cabo.

Continuava, no entanto, freqüentando o Clube das Mulheres. Só estranhava o silêncio das associadas sobre as águas que cobririam a cidade. Estava tudo estranho, na verdade, nesse enredo em que se meteu, nessa história de casamento fracassado, sexo e engenharia civil. Sem contar o deslocamento da população, quando a hora chegar.  Pensava: é complicado nascer ou viver numa cidade e amanhecer sem um chão em que você tanto pisou. Como cada uma dessas pessoas reagirá no momento de deixar a cidade?


Quando o remanejamento das famílias era iminente, o assunto passou a ser comentado, em forma de lamento, como um desígnio de Deus, embora o governo fosse o responsável pelas obras. Ela sabia que todos assinaram um documento concordando com os termos da indenização. A maioria assinou em silêncio e sem protestos. Ela também assinou, com todo prazer, “pois se não consigo sair da cidade, pelo menos a cidade sai de mim”. Ao ver as pessoas desalentadas nas ruas, sentiu um pouco de culpa por ter comemorado a chegada das águas. Pena que as amigas engenheiras estivessem tão ocupadas. Queria conversar sobre o fim do município e a reação das pessoas. Queria ir embora e sentia-se traidora. Nunca teve culpas por trair o marido e teve culpa naquela hora, vendo o povo passar, cabisbaixo.

A hidrelétrica, de 500 KV, seria construída para reforçar o abastecimento no Estado. O lago teria 400 km2. Há uma colina com vista para toda a região. Um ponto privilegiado para observar a enxurrada e a submersão da cidade. Ela e as engenheiras costumavam subir para conversar, fumar um baseado, ler poemas de Baudelaire e sentir o cheiro da chuva.   

Em sua última reunião, o clube caiu na real. Clima de consternação. A presidente, ao microfone, chorou ao lembrar que a organização centenária ia-se agora com a cidade, seria afogada com as casas e a matriz, e todos os sentimentos do mundo não davam conta daquela perda. Depois, propôs algo inesperado: “vamos beber”. Ela aproveitou a sugestão e propôs outra: “na colina”. Apoio por aclamação.

Numa cena de filme bíblico, as mulheres subiram em fila e a cada rua, e depois a cada povoado, a fila se encorpava, tornando-se afinal uma linha buliçosa que cobria a inteira distância entre o vale e o cume da colina. Ficaram por lá, com estoques poderosos de bebidas, algumas traziam caixas de isopor com cervejas e outras gelo para o uísque. Uma festa instalou-se no meio da consternação, como se isso fosse possível, mas ocorreu. Logo todas estavam bêbadas e as engenheiras chegaram a tempo de ver o início do aguaceiro, tomando aos poucos o mato, lá embaixo, e em seguida mais visível, no meio das árvores pequenas.

A outra cidade, apenas uma vila, já estava pronta, na mão dos homens, ajudados por poucas mulheres que ficaram, além dos velhos. O espetáculo era lá embaixo, no ex-município, agora que a água já alcançava o portão da igreja. As mulheres choraram abraçadas e ali foram ficando, com idas eventuais à cidade-acampamento, apenas para levar as crianças à escola, reabastecer o pequeno bar da colina, e depois passaram a comprar material de construção, víveres, roupas de banho para tomar chuva e livros salvos da biblioteca. Assim surgiu uma terceira cidade, em cima da que morreu, sob o comando do Clube das Mulheres, mas sem obrigações burocráticas, sem atas ou comunicados, longe da tradição de 102 anos. Ela resolveu ficar, em sua pequena casa de dois cômodos, dividida com as engenheiras. De vez em quando, mergulhavam no lago, em saltos acrobáticos, e iam mais fundo, explorando quartos e segredos sob as águas.  



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Colóquio digital





A - Vou colocar esta frase porque me toca, só isso. Não me preocupo em agradar, parecer inteligente, requintada. A frase nem é minha. Tirei de Clarice Lispector, no Facebook, pois nem tenho livros dela. Nunca li. Mas agora os textos de Clarice estão bastante em uso e apenas sigo a onda. Escrevo a mesma coisa. Ninguém curte. Eu não ligo.

B – Não sou assim. Gosto de certa solenidade. Posso até postar um inocente prelúdio, mas o público-alvo vai pensar: “ele deve ter sentimentos sofisticados”, e fica explorando qual ocorrido teria provocado tamanha inquietação em minh’alma. Ainda estou em dúvida se é assim ou é mania de grandeza. Tem tudo para ser mania de grandeza.

C- Ter um bom conceito de si próprio não é o problema. No seu caso, porém, há exageros. Ninguém está particularmente interessado em sua vida. As pessoas são parecidas, muitas iguais a você, desesperadas por alguma exibição. Não fujo à regra.

A – É só a velha auto-estima masculina, oscilando, sempre, de oito a oitenta. Estamos aqui para diagnósticos, não é isso? Pois bem, segue o meu: não quero alteração no cotidiano. Entro em pânico diante de qualquer controvérsia, polêmica ou crítica. Daí a postagem de textos neutros, etéreos e já testado por outros. É como o medo de pecar. Não consigo deixar de ser católica.

B – Pois é. A rede também parece uma igreja. Uns vêm aqui para contar pecados, ilustrados com fotos; outros despejam suas ilusões, medos e angústias. Meu caso. Todo dia presto contas das minhas ações. Sou praticante. Não do catolicismo, claro.  

A – Também acho. Mas não escreveria isso. Pode aparecer um especialista em Social Media para refutar meus argumentos e eu não tenho argumentos. É só uma impressão.

C – Pode se uma igreja, um clube, um vício, o retiro de uma civilização aposentada; pode ser tudo. Mas essencialmente é uma exposição de vaidades. Não desgosto. Até vejo sinceridade em posts que anunciam um belo jantar em casa ou a compra de um novo I-pad. Assim vivíamos na sociedade real; assim vivemos aqui, propagando vantagens e mentindo um pouco.

D – Só escrevo se tiver uma grande sacada. Passo o dia atrás de frases de efeito. Só penso nisso. Sou tão dependente quanto vocês. Já lancei uma pequena coletânea. Pena não ser pago por meu conteúdo. A vantagem é não ter patrões. A desvantagem é não ter dinheiro.

A- Na verdade, meu maior medo é parecer louca. Tanta doidice escrita por aí. Olho pra uma pessoa e digo: “essa precisa ser internada”. É cada opinião absurda. Estar aqui, por exemplo, me deixa aterrorizada, pensando se não é uma insanidade. Só topei participar porque disseram que não iria ser publicado.