Sem informes públicos, eles chegaram de
manhã e levaram as coisas que restavam. As minhas e as de outros. Colchões de
palha, garrafas PET, papéis velhos, três pães de ontem e um rádio; nada de
valor. Fiquei sem sabonete, que guardava
para um dia especial, e uma caixa de papelão com os documentos. Não queríamos sair e eles vão nos deixar
sem nada. Já derramaram um copo d’água quando o mais velho ia beber. Não juntem
porcarias, eles avisaram, e disseram que iam voltar.
Tem sido assim há muito tempo. Quase todo
mundo vagando por ai porque ninguém pode ficar parado num lugar. Eles chegam, confiscam
os pertences, separam o grupo, soltam as pessoas em lugares ermos, mas elas
terminam se encontrando de novo e tudo recomeça. Não há raiva aparente nos
homens da brigada; cumprem expediente. Não fosse a gente estariam
desempregados, como a maioria da população. Por isso, são calmos, levam as coisas, mas não
se irritam quando alguém esperneia. Só fazem o que mandaram. Mandaram circular.
Dinheiro é proibido. Levam também. Drogas
estão sob severa vigilância porque podem causar indolência e indolentes não se
movem, não circulam. Mesmo assim nos encontramos. Queremos rever amigos,
discutir a presente situação, dar um jeito de negociar com a brigada. Não
sabemos mais quem está no comando. Ocorreu um grande problema sem solução à
vista e do qual muitos já esqueceram. Critérios deles lá, nem sei mais de onde
se extraem essas ordens.
Incomoda mais a fome e a dor nas pernas. Há
dias sem parar num canto mais discreto, longe da brigada, e quando resolvi
acampar naquele ajuntamento eles vieram em dois dias. Não deu tempo de
descansar nem arrumar comida, que vinha nas caçambas de restos. Há uma semana não passam por lá.
O último informe público mostra que eles querem
distância da gente, embora sejamos muitos. Tudo é dito de forma muito técnica, termos
de limpeza urbana, tecnocracias variadas - “uma nova adequação social”, baseada
em “avaliações minuciosas”. Entendi que em
médio prazo não estaremos mais aqui e a questão enfim se resolve para os que
ficarem. Enquanto isso, circulamos.