Nenhuma
cidade vai deixar de existir – muito menos esta. Mesmo líquida, ela persiste na
memória dos que escaparam e em bilhões de dados espalhados no espaço; imagens e
sons, a coreografia do frevo, o rio, agora subterrâneo. Ainda assim, debaixo
d’água, o abalo da submersão correu adiante, em ondas gigantes, devolvidas como
vieram, cheias de retratos de famílias mandatárias e de ruas esburacadas. Ricos
esbanjando dinheiro e pobres chamando o senhor de “doutor” e “meu patrão”.
Não
houve um corre-corre na cidade que afundou, como se a cidade tivesse se
recusado a subir a serra. “Corram para as montanhas” foi dito assim, meio na
ironia, numa mesa cheia de cervejas. O certo seria a evacuação total, como nos
filmes. Mas ao contrário ocorreu um espetáculo de resignação. Incredulidade de
uns; deixa-pra-lá de outros. Até conversas sobre não existir, conversas sobre o
fim, palavras salvas na nuvem - as de Adélia e Amélia, ao telefone, por
exemplo. Uma no Poço, em sua casinha simpática; outra, na praia, encarando o monstro
no horizonte.
A
cidade se diluiu e ficou no mesmo canto, quase dissolvida. Sargaços surgiram na
manhã seguinte, e os habitantes estavam desigualmente divididos, como sempre,
entre a superfície da vida e o fundo da morte. Os sobreviventes fizeram fotos e
até filmes. A cidade continua a existir como se nada tivesse acontecido.
Um
ano depois houve a primeira retrospectiva. Parecia uma ressurreição em massa de
pessoas conhecidas que ficaram sob as águas, desaparecidas, segundo boletins
oficiais. Existem de certa forma ali, como linguagem, assim disseram os
críticos sobre o primeiro longa metragem do certame. Neste caso um documentário
sobre a vida na cidade de antes, dois metros acima do nível do mar. Na plateia,
alguma emoção entre os sobreviventes, parentes e amigos, mas a turvação dos
sentimentos aos pouco cedeu lugar à realidade vindoura, naquela situação
provisória, esperando.
Debates
após a exibição. Claro que estamos destruindo o planeta, mas a história é
outra, a natureza destruindo-se a si mesma, em placas gigantes sacolejando lá
dentro, entre as labaredas infernais do plasma vermelho e choques de pedras que
têm o tamanho de um hipermercado; isso as menores. Tudo foi feito sem as mãos
humanas. A própria engrenagem gerou-se, por assim dizer, e criou sua lógica de
funcionamento. Não há um ser pensante no comando, mas há mistérios físicos e
químicos muito mais misteriosos do que um milagre.
Nesse
campo em que estávamos e ainda estamos – pelo menos, alguns - o acaso parece
manter um padrão, alinha-se ao cotidiano na maior parte do tempo, mas pode
oferecer um espetáculo inesperado a qualquer momento. Como a nossa placa
salvadora, solta no oceano, em cima da terra onde nasceram meus pais, e agora
separada do continente como a jangada de Saramago.
Nenhum
sinal de incômodo na cidade, agora uma ilha em destino ignorado, pois nossa
capacidade de medir e prever foi destruída nessa pancada das placas, que
ocorreu lá na frente, quase na África. Aquilo deixou muitos traços no
comportamento dos sobreviventes, que ainda avistam a pontinha do Obelisco de
Brennand, a enorme rola reduzida a uma pequena cúpula bizantina, e mesmo assim
ainda um orgulho, o cartão postal semi-submerso, e se um dia a água baixar
teremos de volta a Rosa dos Ventos onde tudo começou e muitas outras coisas que
eram, e continuam sendo, as maiores da América latina.