terça-feira, 30 de junho de 2015

Adélia contra a parede


Adélia está deitada há horas e fita o mesmo pedaço de parede a ponto de decorar pequenos contornos feitos pela tinta, montanhas imperceptíveis aos olhos nus de outras pessoas, linhas vazias de relevo e vez por outra ela passa a mão para sentir alguma coisa em sua alma tão atordoada nos últimos dias e sente apenas a textura da parede sem informação adicional, sem uma pista ou resposta, sem nada além de ser o que é. Está assim desde a morte de Amelia, a irmã gêmea, seu porto seguro, sua mãe, sua dona e dona da casa, sua única fonte de carinho e renda, pois Adelia não aprendeu a fazer nada além de pensar nos mistérios do mundo e em sua incapacidade de seguir adiante nesse giro diário sem sentido. Come o que resta na cozinha, muito pouco, quase nada, e já perdeu a ideia de quantos dias passa na cama, olhando a parede, sem ver a luz do lado de fora.

Só sabe que o jogo está acabando e não reage e espera que algo caia do céu como um pacote de salvação para continuar viva, um quanta para sobreviver sem Amélia. Há chances na loteria, uma herança de um parente desconhecido ou simplesmente um emprego. Possibilidades matemáticas bem próximas do milagre, embora dentro de sua cabeça os milagres aconteçam como trivialidades. Só ali, deitada na cama, é capaz de não pensar em nada ou de passar horas pensando em tudo, nos mistérios do universo, do jeito que a irmã acreditou até ser tragada por um mal estranho, sem cura e de origem conhecida.

Adélia agora é só pensamento.

Depois da morte de Amélia, Adélia vendeu tudo, ainda sobrava-lhe alguma iniciativa. Coisas de segunda mão perderam muito valor e ela só apurou o bastante para o aluguel. Tinha dívidas com amigos e bancos, perdeu o crédito e sujou seu nome na praça. Soube da situação quando foi comprar uma mesa para sua casa sem mesa, quando a irmã já estava por um fio, sem forças e pouco sangue nas veias. A moça da loja disse um minutinho, vamos fazer seu cadastro, e depois de meia hora, desculpou-se, lamentou-se: seu crédito não foi aprovado. Pensou que haviam se esquecido dela, mas os computadores anotaram seus passos, um a um, e seus negócios mal feitos, nesses anos todos de dependência de Amélia, que lhe provia sem reclamar.

Numa situação assim, tão beco sem saída, é normal pensar em singularidades, vindas do infinito e, no plano prático, em alternativas informais, ilegais e até criminosas. Só pensamento, no entanto. Poderia ser um golpe, mas queria um golpe incapaz de prejudicar terceiros, especialmente pessoas pobres, e talvez roubar um banco, por exemplo, caso não trouxesse tantos dilemas éticos. Os bancos têm muito dinheiro, dinheiro de sobra, acima do necessário, e devem estar cobertos por seguros, de seguradoras ricas, e um aumento da taxa de juros resolveria o caso da vítima num único minuto.

A essas questões morais juntava-se a falta de experiência para uma empreitada tão arriscada quanto complexa. Roubar um banco não é como pegar o apurado de um pedinte cego, coisa que Adélia jamais faria, ou esconder sob o casaco algum item do supermercado. No mundo só de ideias, e mesmo assim morrendo de medo das câmeras, trouxe para casa um imaginário pacote de bolacha. Jamais roubaria um armarinho ou qualquer outro pequeno estabelecimento comercial. Supermercados são ricos, não tão ricos quanto os bancos, mas ricos o suficiente para não dar por falta de um produto barato.

A ação no banco, no entanto, exigia planos, como num filme, e naquele por enquanto, ela queria apenas uma quantia suficiente para levar uma vida digna. Pois não era só a fome que incomodava. Em nosso país, ser pobre é bem pior do que ser ladrão. O ideal seria um ladrão sem violência, fino, igual ao batedor de carteira do filme de Robert Bresson. Numa cena memorável, enquanto olha nos olhos da vítima, que lê em pé no trem do metrô, Michel, o ladrão, retira-lhe a carteira do bolso do paletó, dela recolhe o dinheiro, e em seguida a repõe a carteira com documentos de volta ao paletó do roubado. Arte furtiva e refinada, apenas os gestos necessários. 

No banco havia ainda o problema da logística. Tivesse crédito, tiraria um empréstimo no banco e deixaria o tempo correr até sua prescrição. Tudo dentro da lei ou mais ou menos. Outra saída seria usar o empréstimo para comprar os itens do roubo: cordas, maçarico, máscara e dinamite, como nos filmes. Não tinha o propósito de ferir ninguém.

Por isso a história do assalto, mãos ao alto, passe o dinheiro, estava fora de cogitação. Deixou o plano de lado e retornou o olhar aos pequenos himalaias azuis, relevos que podiam se mover se observados com calma, pequenos seres atravessando o reboco, sob a mão de tinta, e de repente, num mundo ainda mais minúsculo, Amélia carregada de energia, não precisava mais comer nem beber. Apenas pensar que ainda existe ao lado de Amélia, num entrelaçamento eterno ou numa loucura eterna.  


domingo, 7 de junho de 2015

Oficina do último texto



A receita para uma boa carta de suicida é a concisão e a elegância, dizia o professor em sua oficina de texto, tratando a questão como categoria literária. Os alunos, todos com motivos para partir, queriam deixar para este mundo um adeus com estilo, uma despedida capaz de interessar aos parentes e a crítica. Um erro gramatical seria pior do que a morte, aliás, muito pior. Eles pareciam satisfeitos com a aula, até animados. O professor deu ainda mais motivos para certa excitação ao informar que as melhores cartas seriam publicadas numa coletânea.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Um esboço de Adeildo


Contorno das nádegas perfeito, peitos naturais e o restante aceitável para o cargo desejado. Pode trazer os documentos amanhã, disse o futuro patrão, Adeildo, comendo a candidata com os olhos, quinta moça do dia a atender ao anúncio de emprego.  As outras não pegaram o espírito da coisa, segundo ele, pois vieram ajeitadinhas, com a melhor roupa, mas não era aquilo que se requeria. Quando escreveu boa aparência, estava querendo dizer gostosa, caso de Cleide, "o emprego é seu, minha filha", conforme falou Adeildo com cara de safado. Não bastava, portanto, caprichar nos cosméticos. Nessas horas, o corpo fala mais alto, supera a falta de experiência em Excel e as dificuldades com o idioma. Lá fora havia uma pequena fila, com outras candidatas, e eu avisei a todas que Adeildo era um idiota tarado e quem ficou, ficou porque quis.

Faz tempo. Adeildo foi vítima da desinformação. Há anos ouvia conversas a respeito de seu comportamento, mas nem aí, dizia que homem é assim mesmo.  O posto que no dia seguinte seria de Cleide já fora ocupado por mulheres de todos os tipos, sendo as minhonzinhas suas preferidas. Para completar, Adeildo era casado e tinha três filhos. Nas tardes de domingo, ele desfilava em seu conversível com duas ou três prostitutas, entornando Ron Montilla direto da boca da garrafa, apesar de estar ao volante. A loja era grande, dava para esses gastos.

À noite, em casa, mal falava com a mulher, Arlete. Nem ela queria ouvir nada. Não trepavam mais e da última vez nenhum dos dois se lembrava nem se interessavam em lembrar. Não eram estranhos numa mesma casa; eram inimigos numa pax armada de trinta anos. Ela, já envelhecida e fora do cardápio de Adeildo, sabia de tudo. O marido não sabia de nada. Desconhecia o ódio acumulado pela mulher, capaz de assassiná-lo ao final destas linhas. Vontade tinha, até disposição, mas não faria isso. Para ela, Adeildo merecia coisa pior do que a morte. Nisso, tinha o apoio dos filhos.
Adeildo era um personagem menor em termos de vida interior, desprezível em todos os sentidos. Trato Adeildo como um animal ou coisa, sem compaixão, colhendo apenas os absurdos de sua existência. Ele me tratava como escravo. O jeito antigo de descrevê-lo, com esses arrodeios sem estilo, encaixa nas características do personagem. Se ele soubesse escrever. Adeildo era analfabeto, mas naquela época muita gente ficava rica assim mesmo.  

Adeildo seguiu assim, sem leitura, e temperava seu comportamento de acordo com modos e modas da época. Nos anos 70 fazia o estilo ator de pornochanchadas, com seus óculos ray-ban e sorriso de bicheiro Depois, na década seguinte, tornou-se fã de discotecas. Seguia assim, feito uma besta, desde o dia em que o conheci e aceitei o emprego por necessidade.



O cabelo caiu, Adeildo voltou-se com todas as forças para o comercio, negócio criado e desenvolvido por ele, pois apesar de canalha era um empreendedor. Fez muitos amigos de seu dinheiro, alguns puxa-sacos e meia dúzia de desafetos. Em todos esses anos, amoldando-se da pior maneira a cada período, ele nunca deixou o pendor pelo assédio sexual, antes uma prática aceita no País e às vezes até aplaudida. Só que Adeildo não entendeu o novo século e seguiu na mesma pisada, apalpando coxas desconhecidas sem mesmo pedir licença, sem contar as câmeras que instalou no banheiro feminino da empresa.

Trabalhei para Adeildo porque era o único jeito, naquele momento, e depois porque fui ficando, ficando, até o mês passado. Sempre prevenia as candidatas sobre as intenções do patrão, arriscando meu emprego. Também explicava o funcionamento e segundas intenções do processo seletivo, como se ali fosse uma agencia de atrizes pornô e não um armazém de material de construção. Aliás, Adeildo entendia tudo da cinematografia pornográfica, quando era no cinema, e depois passou a assinar sites de putaria na Internet. Nas entrevistas, ele se comportava como ator, seduzindo à sua maneira as moças desempregadas. Na loja de Adeildo, eu era único homem além dele.

O mais escroto é que não existia vaga nenhuma, na maioria dos casos, e só se a moça fosse realmente um estouro – expressão sempre usada por Adeildo –, ele demitia a anterior e contratava a recém-entrevistada, o estouro. As mulheres estão muito invocadas hoje em dia, eu tentei avisar. Ele não deu bola. Até que aconteceu.

Primeiro, Cleide já deixou o emprego. Foram apenas duas semanas, até ela voltar para casa, indignada, mas silenciosa, mesmo diante das perguntas do marido sobre seu jeito estranho e macambúzio. Mas a substituição foi imediata. Depois, Adeildo começou a apresentar uns sintomas estranhos. Ninguém entendia. Falaram de envenenamento, culparam as feministas. Entre as hipóteses espalhadas pelo bairro, de doenças raras a conspiração, também havia suspeita de um complô Arlete-Cleide.  

Só sei que foi de uma hora pra outra. Hoje Adeildo olha sem envolvimento dos olhos, fita o nada enquanto os dentes sorriem autônomos, como um desenho na cara, quase perfurando a carne, e às vezes transforma o quadro do rosto em quebra-cabeça, peças misturadas, talvez faltando. Um olho ri, outro chora. De um lado a boca traça uma expressão de alívio e do outro parece entrar em desespero. Os músculos desentrosados esboçam alegria, mas o sujeito de perfil só aparenta tristeza. À noite, Adeildo se recolhe para lamentar aquilo, na frente do espelho, e mesmo no sono induzido por remédios as convulsões continuam. Na falta de nome melhor, ou diagnóstico convincente, os médicos tratam o caso como Emoções Desorganizadas.