Adélia está deitada há horas e fita o mesmo pedaço de parede a
ponto de decorar pequenos contornos feitos pela tinta, montanhas imperceptíveis
aos olhos nus de outras pessoas, linhas vazias de relevo e vez por outra ela
passa a mão para sentir alguma coisa em sua alma tão atordoada nos últimos dias
e sente apenas a textura da parede sem informação adicional, sem uma pista ou
resposta, sem nada além de ser o que é. Está assim desde a morte de Amelia, a
irmã gêmea, seu porto seguro, sua mãe, sua dona e dona da casa, sua única fonte
de carinho e renda, pois Adelia não aprendeu a fazer nada além de pensar nos
mistérios do mundo e em sua incapacidade de seguir adiante nesse giro diário
sem sentido. Come o que resta na cozinha, muito pouco, quase nada, e já perdeu
a ideia de quantos dias passa na cama, olhando a parede, sem ver a luz do lado
de fora.
Só sabe que o jogo está acabando e não reage e espera que algo
caia do céu como um pacote de salvação para continuar viva, um quanta para
sobreviver sem Amélia. Há chances na loteria, uma herança de um parente
desconhecido ou simplesmente um emprego. Possibilidades matemáticas bem
próximas do milagre, embora dentro de sua cabeça os milagres aconteçam como
trivialidades. Só ali, deitada na cama, é capaz de não pensar em nada ou de
passar horas pensando em tudo, nos mistérios do universo, do jeito que a irmã
acreditou até ser tragada por um mal estranho, sem cura e de origem conhecida.
Adélia agora é só pensamento.
Depois da morte de Amélia, Adélia vendeu tudo, ainda sobrava-lhe
alguma iniciativa. Coisas de segunda mão perderam muito valor e ela só apurou o
bastante para o aluguel. Tinha dívidas com amigos e bancos, perdeu o crédito e
sujou seu nome na praça. Soube da situação quando foi comprar uma mesa para sua
casa sem mesa, quando a irmã já estava por um fio, sem forças e pouco sangue
nas veias. A moça da loja disse um minutinho, vamos fazer seu cadastro, e
depois de meia hora, desculpou-se, lamentou-se: seu crédito não foi aprovado.
Pensou que haviam se esquecido dela, mas os computadores anotaram seus passos,
um a um, e seus negócios mal feitos, nesses anos todos de dependência de
Amélia, que lhe provia sem reclamar.
Numa situação assim, tão beco sem saída, é normal pensar em singularidades,
vindas do infinito e, no plano prático, em alternativas informais, ilegais e
até criminosas. Só pensamento, no entanto. Poderia ser um golpe, mas queria um
golpe incapaz de prejudicar terceiros, especialmente pessoas pobres, e talvez
roubar um banco, por exemplo, caso não trouxesse tantos dilemas éticos. Os
bancos têm muito dinheiro, dinheiro de sobra, acima do necessário, e devem
estar cobertos por seguros, de seguradoras ricas, e um aumento da taxa de juros
resolveria o caso da vítima num único minuto.
A essas questões morais juntava-se a falta de experiência para
uma empreitada tão arriscada quanto complexa. Roubar um banco não é como pegar
o apurado de um pedinte cego, coisa que Adélia jamais faria, ou esconder sob o
casaco algum item do supermercado. No mundo só de ideias, e mesmo assim morrendo
de medo das câmeras, trouxe para casa um imaginário pacote de bolacha. Jamais
roubaria um armarinho ou qualquer outro pequeno estabelecimento comercial.
Supermercados são ricos, não tão ricos quanto os bancos, mas ricos o suficiente
para não dar por falta de um produto barato.
A ação no banco, no entanto, exigia planos, como num filme, e
naquele por enquanto, ela queria apenas uma quantia suficiente para levar uma
vida digna. Pois não era só a fome que incomodava. Em nosso país, ser pobre é
bem pior do que ser ladrão. O ideal seria um ladrão sem violência, fino, igual
ao batedor de carteira do filme de Robert Bresson. Numa cena memorável,
enquanto olha nos olhos da vítima, que lê em pé no trem do metrô, Michel, o
ladrão, retira-lhe a carteira do bolso do paletó, dela recolhe o dinheiro, e em
seguida a repõe a carteira com documentos de volta ao paletó do roubado. Arte
furtiva e refinada, apenas os gestos necessários.
No banco havia ainda o problema da logística. Tivesse crédito,
tiraria um empréstimo no banco e deixaria o tempo correr até sua prescrição.
Tudo dentro da lei ou mais ou menos. Outra saída seria usar o empréstimo para
comprar os itens do roubo: cordas, maçarico, máscara e dinamite, como nos
filmes. Não tinha o propósito de ferir ninguém.
Por isso a história do assalto, mãos ao alto, passe o dinheiro, estava
fora de cogitação. Deixou o plano de lado e retornou o olhar aos pequenos
himalaias azuis, relevos que podiam se mover se observados com calma, pequenos
seres atravessando o reboco, sob a mão de tinta, e de repente, num mundo ainda
mais minúsculo, Amélia carregada de energia, não precisava mais comer nem beber.
Apenas pensar que ainda existe ao lado de Amélia, num entrelaçamento eterno ou
numa loucura eterna.