terça-feira, 27 de maio de 2014

A bolha da fama



Houve uma época no Brasil em que era imperativo ficar famoso. Todos sonhavam em aparecer em programas de TV e na imprensa e o mercado da fama viveu uma época de expansão, chegando o pais ao ponto de ter mais celebridades do que anônimos. Não deu certo, especialmente para o jornalismo, pois famosos não liam notícias sobre outros famosos e os desconhecidos passaram a protestar, com toda razão, pois não havia critérios para o acesso à notoriedade. Chupar um Chicabom na praia era mais importante do que pesquisar as estrelas, por exemplo. Resultado: a bolha da fama estourou. Para sair da crise, as empresas jornalísticas passaram a trabalhar apenas com personagens fictícios; inicialmente nas áreas de entretenimento e sociedade e depois em todas as editorias, inclusive as de cultura e política

terça-feira, 20 de maio de 2014

A síndrome



Por volta dos cinquenta anos surgiram os primeiros sinais de adolescência tardia. Síndrome ainda pouco estudada, mas com  respeitável número de casos, é provocada pela urgência de viver o que falta de maneira extravagante e juvenil – e faltava pouco. O professor é o nosso velho paciente; já esteve em outras histórias, parecidas com esta. Experimentou as vantagens de um mundo jovem num corpo jovem e décadas depois viu-se diante de uma recidiva em plena era dos cabelos brancos e das dores nas costas.

Foi a festas e teve casos com moças mais novas, alunas de preferência, sempre com o coração aos pulos, a iminência do infarto, a pressão lá em cima e mesmo assim, com falta de ar e suores, encarou noites e mais noites em ambientes potencialmente perigosos para uma saúde de homem maduro. Pare com essa vida, disseram os amigos, viaje, regre-se, aproveite os pequenos detalhes, aprecie a natureza. Ele só parou depois do hospital, internação e duas pontes de safena - a pequena adolescência foi interrompida bruscamente.

Então o professor encontra-se agora no convés do navio, em cruzeiro, sentado numa espreguiçadeira, com as pernas sob o cobertor, olhando o mar calmo, entediado com a paisagem azul. Sente Gustave Aschenbach febril e tossindo a seu lado nessa viagem mediterrânea, enquanto pensa nas limitações do corpo porque a alma ainda quer festa e êxatase. O personagem de Morte em Veneza deixa cair um filete de sangue pelo canto da boca, confirmando a morbidez dos cruzeiros marítimos, pois a bordo também estavam cadávares de passageiros de última viagem, todos congelados, de volta ao ponto embarque. Morreram de velhice ou vítimas da Escherichia coli, bactéria comum em navios de longo percurso. O professor não se deprime nem se comove. Apenas lamenta o tempo perdido, apenas impecienta-se com o comportamento previsível da tripulação e passageiros, apenas sente falta do veranico juvenil.

Cruzeiros são também barulhentos e chatos. Crianças gritam na pérgula da piscina, mulheres de meia idade exibem vestidos caros para festas com desconhecidos e o capitão faz as honras do barco num ritual ensaiado e repetido sem variações ao longo do trajeto. Não há clima e ele sonha em abreviar a jornada, descendo no próximo porto, disposto a arriscar um retorno à vida de antes, entre jovens, contrariando orientações médicas. Foda-se, pensou ele. Morre-se do mesmo jeito, a despeito de dietas e cuidados. O risco de morrer jovem já passou; chegou a hora do tudo ou nada.

O professor permanece no convés, ruminando tais ideias diante do oceano e nenhuma graça passa-lhe a cabeça e passe-lhe somente a vontade de recolher-se à pequena cabine com seu ventilador de teto baixo,  bem perto da cabeça, um perigo a mais na viagem, mas pelo menos um lugar  sem a  estridência dos salões e do convés. Mesmo assim experimenta o sentimento perturbador de estar a milhas e milhas da costa com um monte de gente estranha.  A sensação é de interrupção da vida, por duas semanas, sempre pensando em sua decisão de abandonar o barco. Conta as horas, não consegue ler e, enfim, deprime-se de verdade e o jeito é tomar os  ansiolíticos, desses que nem deixam sonhar.
rias e outros evitam sua companhia..- cidade mudou, pois os jovens amigos sumirams percebe uma indiferença no outro lado da linh



Porto de Santos, finalmente, o professor desembarca e sobe a serra, atrás de ex-alunas e diversão de verdade. Em casa, a pressa em restabelecer os laços, perguntas sobre as boas da noite, a várias fontes, mas percebe uma indiferença no outro lado da linha e, quando sai sozinho, na ronda pelos cantos mais óbvios, descobre que em quinze dias sua cidade mudou, pois as jovens amigas sumiram; umas saíram de férias e outras evitam sua companhia. A recaída torna-se um fracasso.

Viver a própria idade não é uma saída. A síndrome exige movimento, noitadas radicais e sexo tenro. Sobram-lhe a rua escura em que anda cabisbaixo e uma cerveja no balcão da padaria no momento em que as pessoas chegam para o café da manhã. Falta um enredo para sua história a partir deste instante de vazio em terra firme. Talvez faltasse a morte, o vazio que não se sente, uma opção a ser levada em conta, ou o elixir da eterna juventude, se existisse. Desiste, no entanto, de moer o sonho derrotado e o impulso de suicídio. Não por amor à vida, no momento, mas por achar um desfecho batido, pouco literário, e porque quase ninguém gosta de suicidas, mesmo daqueles que deixam cartas criativas. Conformou-se.

Para a síndrome não há remédio conhecido nem pesquisas a caminho nem paliativos. No  caso do professor, as crises só se agravam, especialmente na hora de olhar no espelho a imagem especifica dos pelos que crescem nas orelhas, sintomas de idade. O mal avança e, como um vírus, pode levar ao fim ou sumir de repente, sem deixar sequelas. Para ele passou. Agora, o professor olha o horizonte, no terraço de casa, sem muitas lembranças, quase nada para pensar. Todas aquelas cenas de barriguinhas à mostra se desfazem, por desencanto, no final da tarde.  




segunda-feira, 5 de maio de 2014

Amante imobiliário



Era um sujeito que se casava por interesse imobiliário. Os aluguéis estão caros. Não tinha planos de dar o golpe do baú; apenas recolhia-se ao apartamento da namorada mais recente, com sua mudança, e lá ia ficando até as coisas se estabilizarem. Ele ficava, por uns tempos, as coisas nunca se estabilizavam, mas se aparecesse um lugar maior, com mais canais na TV a cabo, ele embarcava em outro casamento e assim seguia a vida, num desvario com método, oscilando o jeito de ser de acordo com a morada da vez.

Enquanto estava hospedado agia como marido perfeito, em qualquer circunstância, mesmo com Tânia, que o traía, ou Olívia, a anti-penúltima, rainha do mau humor.  Se o apartamento fosse grande e bem localizado, ele fazia amigos entre os amigos da mulher, contava mentiras sobre negócios e jogava tênis. Se a acomodação fosse pequena e suburbana, ei-lo entre seus pares da esquina, jogando dominó e fumando um.  Tratava as duas experiências com igual peso e valor.  

Seu estilo, no entanto, era conhecido. Ninguém poderia alegar surpresa diante de chegadas ou saída; todas sabiam as regras do jogo. Mesmo assim, ele deixou para trás algumas almas sofridas, rastejantes, enlouquecidas pelo fim  do casamento. Uma se matou, Aldira; outra está internada com depressão, Suzana. Fora esses, não foram registrados incidentes mais graves com ex-mulheres.

Teve casos em que ele foi expulso de casa, depois de uma briga com a mulher, e não tinha para aonde ir. Nessas situações, contemporizava ou saía sem rumo pelos bares. Em emergências, casava-se com mulheres que não admirava; Suzana, 32 anos, três quartos -  um com suíte -, foi uma delas.  Adriana, 39, casa de dois cômodos com problemas de vazamento, foi outra.  


O personagem, inverossímil por natureza, existiu de fato, nesta cidade,  e à beira dos cinquenta ainda manteve a estratégia e o modelo de vida, mesmo depois de Eugênia, dois quartos, a  que era para sempre e não foi. Perdeu Eugênia, perdeu o viço, virou um apaixonado padrão e seguiu sua sina em casas e apartamentos cada vez menores. A lembrança de Eugênia batendo na trave, causando dores, junto com as dores da idade. Sofreu e continuou sofrendo sob o teto de Eulália, dois quartos, sem suíte. Eulália, esposa dedicada e enfermeira, cuidava dele para a próxima mudança, talvez a última.