A mudança de hábito se deu por
necessidade. Só havia vaga de vigia
noturno, eu estava sem emprego e resolvi experimentar. Não era minha área. Sou
formado em Física, mas o mercado tinha outras prioridades, enquanto os mais
ricos queriam proteger o patrimônio dos vândalos e ressentidos com a situação
vigente. Vez por outra os bandos saqueavam mansões, levando comida e aparelhos
eletrônicos, que eram vendidos no mercado negro. Eu não podia fazer muita coisa
em caso de emergência, embora a presença de um homem armado pudesse
desencorajar invasões e roubos, senão todos, pelo menos alguns. Os ricos que
ficaram no País estavam enfrentando uma situação intranquila. A maioria dos
donos do dinheiro vendeu tudo e foi embora quando o pessoal sem trabalho partiu
para a distribuição da renda de uma forma meio desorganizada.
Na minha guarita, eu ficava só, na
madrugada, até chegar o segurança do dia, que corria menos perigo e também
ganhava menos. Era um professor de história, muito conversador, e só não
tivemos mais contato porque na hora que ele entrava, eu saía. Basicamente, meu
trabalho consistia em olhar os monitores, pois havia câmeras em todos os lados
da casa, e se a situação exigisse, usaria os meios dissuasivos disponíveis: um
fuzil AK-47, com muita munição dentro de uma caixa; uma pistola Glock, um
lança-chamas e granadas de mão. Quando eles chegassem eu deveria dar um tiro de
advertência e em seguida atirar de verdade contra os intrusos que não recuassem.
Eu nunca havia matado uma pessoa, disse isso na entrevista de emprego, mas o
homem que me atendeu respondeu que não tinha importância. “Como o tempo você
vai pegando prática”. Estava certo. Aprendi a lidar com o equipamento e com os
dilemas morais.
Jeitinho
A gambiarra, enfim, tomou lugar das
instituições e a vida seguiu na base do improviso. Alguns se resignaram e viam
o precário apenas como provisório. O
importante era que no fim dava certo, ou mais ou menos, e quando dava errado
era porque é assim mesmo. Acontece. A própria vida um dia acaba. As coisas se ajeitam, pensavam, e as coisas
de fato se juntavam umas às outras, mas sempre deixando para trás os seus nós,
fios desencapados, pequenas pontes de madeira podre. Tudo era remendo no meio
da informalidade e da desambição. Também as pessoas começaram a desenvolver
suas relações sem nenhum planejamento, confiantes em encaixes imperfeitos, homogeneizações
por conta própria e promessas de que amanhã a gente dá um jeito.