segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Desafio profissional


A mudança de hábito se deu por necessidade.  Só havia vaga de vigia noturno, eu estava sem emprego e resolvi experimentar. Não era minha área. Sou formado em Física, mas o mercado tinha outras prioridades, enquanto os mais ricos queriam proteger o patrimônio dos vândalos e ressentidos com a situação vigente. Vez por outra os bandos saqueavam mansões, levando comida e aparelhos eletrônicos, que eram vendidos no mercado negro. Eu não podia fazer muita coisa em caso de emergência, embora a presença de um homem armado pudesse desencorajar invasões e roubos, senão todos, pelo menos alguns. Os ricos que ficaram no País estavam enfrentando uma situação intranquila. A maioria dos donos do dinheiro vendeu tudo e foi embora quando o pessoal sem trabalho partiu para a distribuição da renda de uma forma meio desorganizada.

Na minha guarita, eu ficava só, na madrugada, até chegar o segurança do dia, que corria menos perigo e também ganhava menos. Era um professor de história, muito conversador, e só não tivemos mais contato porque na hora que ele entrava, eu saía. Basicamente, meu trabalho consistia em olhar os monitores, pois havia câmeras em todos os lados da casa, e se a situação exigisse, usaria os meios dissuasivos disponíveis: um fuzil AK-47, com muita munição dentro de uma caixa; uma pistola Glock, um lança-chamas e granadas de mão. Quando eles chegassem eu deveria dar um tiro de advertência e em seguida atirar de verdade contra os intrusos que não recuassem. Eu nunca havia matado uma pessoa, disse isso na entrevista de emprego, mas o homem que me atendeu respondeu que não tinha importância. “Como o tempo você vai pegando prática”. Estava certo. Aprendi a lidar com o equipamento e com os dilemas morais.

Jeitinho

A gambiarra, enfim, tomou lugar das instituições e a vida seguiu na base do improviso. Alguns se resignaram e viam o precário apenas como provisório.  O importante era que no fim dava certo, ou mais ou menos, e quando dava errado era porque é assim mesmo. Acontece. A própria vida um dia acaba.  As coisas se ajeitam, pensavam, e as coisas de fato se juntavam umas às outras, mas sempre deixando para trás os seus nós, fios desencapados, pequenas pontes de madeira podre. Tudo era remendo no meio da informalidade e da desambição. Também as pessoas começaram a desenvolver suas relações sem nenhum planejamento, confiantes em encaixes imperfeitos, homogeneizações por conta própria e promessas de que amanhã a gente dá um jeito.