sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Duas décadas






1980 - Se disser “estou cansado” não é por falta de disposição física. Digo “estou cansado” por causa da mesma coisa todo dia, o ramerrão, o feijão com arroz, a solidão: trabalho – metrô – casa –casa – metrô - trabalho. Nada de especial acontece, nem no fim de semana, quando sinto falta da rotina semanal porque no fim de semana é pior. Só TV. Vejo na TV pessoas cheias de vida, cheias de compromissos sociais e diversões diversas. Sozinho no sofá meu ego vai murchando e um dia vai sumir. Chegará a hora em que perderei qualquer sinal de autoestima. Rastejarei diante das outras pessoas para ter um pouco delas, a atenção de um olhar ou apenas um “oi”.

Quando cismo com distrações saio no sábado á noite. Não conheço ninguém nos bares. Tento conversar com estranhos e eles não respondem. Volto para minha cerveja em cima do balcão e poderia beber até cair, caso gostasse de beber, mas não gosto. Nem isso. Enjoei de ficar embriagado. Enjoei de ficar sóbrio. Enjoei de oitenta por cento das coisas deste mundo, incluindo esportes e artes, além de bares, repletos de alegria alheia. Falta-me vontade e imaginação para o sexo – solitário, é claro – ou a leitura de um livro. Invejo as pessoas que se recolhem e se sentem bem solitárias.

1990 - Um bando de palavras soltas atiça meus pensamentos. Comiseração e desordem. Desejo e volúpia. Perdido em algum ponto dos anos 90, onde as condições de resgate são bastante complicadas, eu encontro a minha turma. Nesses anos eu me perdi e achei um monte de gente para animar minha existência. Adeus solidão, eu estava com as piores pessoas do mundo, mas estava longe da minha casa tediosa e da TV. Com os (as) vagabundo (as) dei sinais de vida para mim mesmo, namorei muito, enchi a cara, escrevi um livro, usei substâncias proibidas e herdei sérios problemas de saúde.

O que mudou entre uma década e outra não foi obra da psicanálise. Foi o acaso. Conheci pessoas erradas na hora errada. Estava na pior e o pior que veio foi extremamente divertido enquanto durou, e por isso valeu, levando em conta que a própria vida também tem seu prazo de vencimento. A gordura no fígado e os quilos a mais foram compensados pela melhoria do meu humor. Fiquei até mais inteligente, embora só achasse isso a minha turma de desvalidos.  Durante esse período todas as sensações foram ativadas até o talo.




2000 – De forma geral foi uma boa experiência. Um dia os médicos disseram “para!” e parei. Meu estado geral agora é bom e não perdi o humor com a abstinência. Vivo numa certa neutralidade em relação às coisas do mundo, mas inteiramente informado. Posso ter duas opiniões sobre o mesmo assunto e me satisfaz a maneira como defendo teses que ataquei ontem. Houve sobreviventes da turma dos 90’ e estão acalmados, inteiramente mudados ou medicados.

Tudo bem, passou, aliás, passaram. Duas décadas estranhas, entre o recolhimento e a bandalheira. Outro século, agora, momento de aparente tranqüilidade, pois não sabemos se é real ou só o cuidado com a imagem. Vou levando, mas sempre com a pergunta na cabeça: o que vem depois disso tudo? 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O professor volta para morrer





Debruçado em um tratado sobre a classe média, o professor esquecia-se de tomar seus remédios conforme a bula. Uma dúzia de comprimidos por dia, cada um num horário, todos essenciais à sobrevivência. O professor foi atingido por um conjunto de doenças e fosse religioso perguntaria a Deus por que chegava ao fim da vida com dores em cada centímetro do corpo. Não havia a quem reclamar, enfim, e a concentração no trabalho regia tudo e parecia exercer sobre ele um efeito terapêutico, a ponto de fazê-lo aguentar pontadas terríveis enquanto descrevia a afinidades entre poder aquisitivo e ética nas relações sociais.

O acadêmico é um personagem recorrente, em alguns escritos perdidos, sempre botando banca, e agora volta para morrer de forma asséptica e elegante, diante do magnífico reitor, o corpo docente e os corpos indecentes das alunas da graduação. Gostava de casos com elas e se martirizava mais por questões estatutárias da pontifícia universidade do que pelos sentimentos - dele ou delas. De qualquer forma, nenhuma regra tinha sentido naqueles momentos derradeiros da existência e da conclusão do tratado sobre a classe média. Coisas bastante entrelaçadas, sem dúvida. A vaidade seria satisfeita, mesmo de forma póstuma. Para um ateu, restava antecipar as glórias, imaginá-las, tê-las em perspectiva, com frases de discurso, comentários de seus pares, os parágrafos graciosos dos obituários. Sem contar o choro escondido de algumas orientandas.

Primeira preocupação é não ser piegas. Continua a levar uma vida normal para o público externo – todas as pessoas deste mundo – e a publicar artigos em que trata a enfermidade de forma concreta, narrando procedimentos médicos, aos moldes de Christopher Hitchens (1949-2011, câncer do esôfago), cujo livro de despedida é sempre descrito como ácido e sarcástico, mas sem sentimentalismos. Para o professor, a vida é apenas uma aventura intelectual. O ponto final em seu último ensaio. 




segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Autoajuda





- A consciência disso não lhe apavora? – perguntou o sábio da auto-ajuda, sentando num trono manuelino, fumando um cigarro –. O candidato a escritor de “livros sérios” apenas balançou a cabeça, dizendo “não”, porque se fosse pensar nisso não sairia do lugar ou se jogava do prédio. Diz que não pensar na morte e procura tratá-la com naturalidade, embora não ache provável uma segunda chance.

- À beira dos 50 – prosseguiu o sábio, obviamente referindo-se ao aniversário do interlocutor –, a qualidade da carne vai decaindo, e você vai procurar conforto em outras camadas; alguns vão à cultura, outros à soneca. Só que a intensidade não será a mesma. As suas emoções não serão as mesmas, como a do primeiro amor etc e tal.  Ao mesmo tempo, as emoções dos jovens talvez lhe interessem, mas serão inalcançáveis para você. Entendeu?

- Parece um treinamento para o Juízo Final – disse o interlocutor, amigo do sábio há décadas, entre brincalhão e preocupado.

- Mais ou menos – respondeu o sábio -, mais ou menos. Até por questões físicas não dá mais para encarar as melhores coisas da vida e conhecendo você sei que se evadirá para aquele território de velhos que se dizem satisfeitos com tal condição, embora não estejam. Você dirá que acumulou isso e aquilo, mas não acumulou nada, está apenas em fase de declínio, procurando emoções sutis, como a literatura, mas ainda assim insatisfatórias.

- Caro sábio – disse o interlocutor, mostrando alguma reação -, meu caríssimo sábio, sobraria pelo menos a memória, e se sobra, em que posso usá-la? O que já passou vale alguma coisa?

- O tempo também devasta a memória. Você passa a dar importância exagerada a histórias banais para os outros, passando a se repetir, torna-se enfadonho inclusive para si próprio.

O candidato a escritor, com agenda marcada desde o ano passada, não queria voltar de sua viagem aos Pirineus com as mãos e a alma vazias, tomado pelo pessimismo e o niilismo, sem gosto pela vida da meia idade, sem significados. Voltou-se então ao sábio com sua dúvida crucial:

- E ai? – simplificou.

- E ai – disse o mestre, ainda fumando o cigarro – e aí, eu não sei direito, para dizer a verdade, não sei. Só entendo do meu mercado, penso para ele, sigo as tendências, mas com um molho bacana. Hoje em dia o leitor de auto-ajuda está mais exigente, quer um pouco de Filosofia Pura, interpretada para iniciantes, mas quer. Então, seria demagógico da minha parte dizer que há alguma grandeza na condição humana sem antes refletir um pouco sobre isso. De forma customizada, se que é você entende. “O que se leva da vida é a vida que a gente leva”. Não vou sair dizendo isso por ai, mas digo a mesma coisa de outro modo, em parágrafos aflitivos e filtragem da Filosofia para o desejo da classe média. Nietzsche serve para tudo. Uns acham que ele nos propõe um beco sem saída; outros acham que as palavras de Nietzsche são a saída. Tenho usado muito ultimamente. Tudo isso para chegar ao ponto: não quero envolver você nessa enganação, você não leria um livro meu. Então, não sei. Não sei mesmo.

- Mas você falou sobre os males da idade. Penso mais ou menos do mesmo jeito. Não esperava uma solução de sua parte...

- O diagnóstico é esse, querido. Só que trabalho com soluções. Meus livros são o remédio para almas penadas em livrarias de aeroportos e lojas de conveniência. Não é exatamente literatura. Faço guias práticos para vidinhas de merda e tudo se encaixa.  Minhas frases são citadas em redes sociais, tenho milhares de seguidores no twitter, porque as pessoas querem o óbvio, óbvio embalado em Spinoza, mas o óbvio. Não adianta mais empurrar frases desacompanhadas (“Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...”). O caminho é a interpretação pela ótica de fulano ou sicrano, cuja leitura direta será penosa para meus clientes. Traduzo para eles, a gosto. Reduzo, torno tudo mais raso e sirvo. Às vezes nada sobra do pensador em questão.  

-Bom, sábio, marquei a consulta só para vê-lo depois de tanto tempo. Você foi sincero comigo, fui sincero com você nessa conversa meio absurda. Você mudou, hein? O importante é que ambos não acreditamos em auto-ajuda. E tem mais o seguinte: o fato é que tenho um livrinho, feito de sacanagem, mas em condições de ser levado a sério por gente do seu público. Pensei talvez, talvez você pudesse dar uma força lá com a editora...





sábado, 3 de novembro de 2012

Primeira sessão




- Eu me vi ontem à noite no outro lado da rua. Tenho certeza: usava a mesma roupa, era igual a mim em detalhes, até no jeito de andar.  Eu estava lá e cá, nos dois lados da rua. Olhamo-nos rapidamente, perplexos, ambos tentamos uma aproximação, mas desistimos. Eu (ele) desisti; Ele (eu) desistiu. Medo das conseqüências.

- Você vendo você... Só há um “você”.

- Um duplo, talvez. Andei lendo a respeito de outras dimensões. Uma imagem de mim mesmo pode ter vazado de lá...

- Há também O Duplo, de Dostoievski. Senhor Goliadkin pensa que é um outro, um outro diferente dele, mas um outro que só existe pra ele...

- Loucura, né?

- Não vamos tratar dessa forma. Digamos: um transtorno. Fale mais sobre ele (você)?

- Não é a primeira vez. Segui seus passos uma vez. Ele (eu) repetia meus gestos, como o argentino que segue os passantes, imitando seus gestos. Não era argentino. Éramos eu (ele) e ele (eu).

- Havia espelhos por perto?

- Não.

- Era uma possibilidade. Pode ter sido um reflexo qualquer, uma informação errada passada pelo cérebro. Você tomou alguma coisa antes de vê-lo?

- Água com gás e café.

- Já pensou em abordá-lo?

- Abordar quem?

- Ele, você, tanto faz.