1980 - Se disser “estou cansado” não é por
falta de disposição física. Digo “estou cansado” por causa da mesma coisa todo
dia, o ramerrão, o feijão com arroz, a solidão: trabalho – metrô – casa –casa –
metrô - trabalho. Nada de especial acontece, nem no fim de semana, quando sinto
falta da rotina semanal porque no fim de semana é pior. Só TV. Vejo na TV
pessoas cheias de vida, cheias de compromissos sociais e diversões diversas.
Sozinho no sofá meu ego vai murchando e um dia vai sumir. Chegará a hora em que
perderei qualquer sinal de autoestima. Rastejarei diante das outras pessoas
para ter um pouco delas, a atenção de um olhar ou apenas um “oi”.
Quando cismo com distrações saio no sábado
á noite. Não conheço ninguém nos bares. Tento conversar com estranhos e eles
não respondem. Volto para minha cerveja em cima do balcão e poderia beber até
cair, caso gostasse de beber, mas não gosto. Nem isso. Enjoei de ficar embriagado.
Enjoei de ficar sóbrio. Enjoei de oitenta por cento das coisas deste mundo,
incluindo esportes e artes, além de bares, repletos de alegria alheia. Falta-me
vontade e imaginação para o sexo – solitário, é claro – ou a leitura de um
livro. Invejo as pessoas que se recolhem e se sentem bem solitárias.
1990 - Um bando de palavras soltas atiça
meus pensamentos. Comiseração e desordem. Desejo e volúpia. Perdido em algum
ponto dos anos 90, onde as condições de resgate são bastante complicadas, eu
encontro a minha turma. Nesses anos eu me perdi e achei um monte de gente para
animar minha existência. Adeus solidão, eu estava com as piores pessoas do
mundo, mas estava longe da minha casa tediosa e da TV. Com os (as) vagabundo
(as) dei sinais de vida para mim mesmo, namorei muito, enchi a cara, escrevi um
livro, usei substâncias proibidas e herdei sérios problemas de saúde.
O que mudou entre uma década e outra não
foi obra da psicanálise. Foi o acaso. Conheci pessoas erradas na hora errada.
Estava na pior e o pior que veio foi extremamente divertido enquanto durou, e
por isso valeu, levando em conta que a própria vida também tem seu prazo de
vencimento. A gordura no fígado e os quilos a mais foram compensados pela
melhoria do meu humor. Fiquei até mais inteligente, embora só achasse isso a
minha turma de desvalidos. Durante esse
período todas as sensações foram ativadas até o talo.
2000 – De forma geral foi uma boa
experiência. Um dia os médicos disseram “para!” e parei. Meu estado geral agora
é bom e não perdi o humor com a abstinência. Vivo numa certa neutralidade em
relação às coisas do mundo, mas inteiramente informado. Posso ter duas opiniões
sobre o mesmo assunto e me satisfaz a maneira como defendo teses que ataquei
ontem. Houve sobreviventes da turma dos 90’ e estão acalmados, inteiramente
mudados ou medicados.
Tudo bem, passou, aliás, passaram. Duas
décadas estranhas, entre o recolhimento e a bandalheira. Outro século, agora,
momento de aparente tranqüilidade, pois não sabemos se é real ou só o cuidado
com a imagem. Vou levando, mas sempre com a pergunta na cabeça: o que vem
depois disso tudo?