Debruçado em um tratado sobre a classe
média, o professor esquecia-se de tomar seus remédios conforme a bula. Uma
dúzia de comprimidos por dia, cada um num horário, todos essenciais à
sobrevivência. O professor foi atingido por um conjunto de doenças e fosse
religioso perguntaria a Deus por que chegava ao fim da vida com dores em cada
centímetro do corpo. Não havia a quem reclamar, enfim, e a concentração no
trabalho regia tudo e parecia exercer sobre ele um efeito terapêutico, a ponto
de fazê-lo aguentar pontadas terríveis enquanto descrevia a afinidades entre
poder aquisitivo e ética nas relações sociais.
O acadêmico é um personagem recorrente, em
alguns escritos perdidos, sempre botando banca, e agora volta para morrer de
forma asséptica e elegante, diante do magnífico reitor, o corpo docente e os
corpos indecentes das alunas da graduação. Gostava de casos com elas e se
martirizava mais por questões estatutárias da pontifícia universidade do que
pelos sentimentos - dele ou delas. De qualquer forma, nenhuma regra tinha
sentido naqueles momentos derradeiros da existência e da conclusão do tratado
sobre a classe média. Coisas bastante entrelaçadas, sem dúvida. A vaidade seria
satisfeita, mesmo de forma póstuma. Para um ateu, restava antecipar as glórias,
imaginá-las, tê-las em perspectiva, com frases de discurso, comentários de seus
pares, os parágrafos graciosos dos obituários. Sem contar o choro escondido de
algumas orientandas.
Primeira preocupação é não ser piegas.
Continua a levar uma vida normal para o público externo – todas as pessoas
deste mundo – e a publicar artigos em que trata a enfermidade de forma
concreta, narrando procedimentos médicos, aos moldes de Christopher Hitchens
(1949-2011, câncer do esôfago), cujo livro de despedida é sempre descrito como ácido
e sarcástico, mas sem sentimentalismos. Para o professor, a vida é apenas uma aventura intelectual. O ponto final em seu último ensaio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário