quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Desafio




Não vale recorrer a pessoas pré-existentes nem a situações conhecidas, disse o professor da oficina de texto, logo acrescentando que os personagens deveriam ser enquadrados em cenas absurdas e bizarras, mas sem perder a verossimilhança. Nem vale também chamar o escrito de literatura fantástica, advertiu o professor, chamando sua proposta de "O desafio".

Então, todos os laptops foram desembainhados, numa disposição só encontrada em jovens escritores. Não houve, porém, o aperto de teclas. Só naquela momento o desafio se apresentou de fato, pois  eles não tinham o que escrever nesse espaço tão  estreito. Exceto um, uma, a mais jovem, cuja redação foi dedicada ao ato de escrever e escreveu à mão sobre como escraviza-se às letras, aos seus pensamentos medonhos, às dores resolvidas por remédios, ao modo de vida que não vive; apenas pensa e não avança à pratica. Faz outro movimento: transfere aquilo para outros, todos fictícios.

Seu mundo interno não é redondo nem quadrado, quase não geométrico, quase uma loucura fora do espaço, embora seja formalmente simétrico, sem experimentações, como gostam os demais naquele ambiente. Não é uma perdição num mundo sem Deus; só o relato de um personagem que envia cartas e cartões de Natal carregados de desespero e pessimismo e, numa aparente contradição, seu modelo para o Desafio é um homem que se compraz numa arte em que nada vale a pena, nem mesmo a arte. 

Segundo ela, em seu pequeno conto, a mensagem de fim de ano sempre vem pelo correio, como antigamente, e não traz felicitações e desejos de boas festas, mas a pisada  lamúria do homem velho sobre a existência, sempre de um jeito inconveniente para  o período natalino e agora ele reclama da luta contra o tempo, a que tudo se resume, e diz que a partir dos cinqüenta anos a luta transcorre em maior velocidade e quando notamos a correria das horas a vida já passou. O velho tem setenta anos e tornou-se um existencialista tardio num mundo cercado de cuidados com  coisas compradas e vendidas. Pelo menos é o que ele e ela acham.

É uma brincadeira, talvez sem graça, e às vezes preocupa o espírito de algum destinatário, pois chega o velho com a lembrança da finitude justamente quando as pessoas estão renovando votos e fazendo planos e enchendo os shoppings até as dez da noite. Ela, também personagem, já está acostumada com o infeliz missivista e sua dificuldade em lidar com a velhice. Num dos parágrafos, ele escreve que tenta arriscar-se no mundo das sutilezas naturais, para o tempo escorrer devagar, mas a brisa prazerosa lhe dá gripe e o mar vazio, agradável a princípio,  logo se transforma numa fonte de melancolia. Só ela lhe responde às cartas e sugere pílulas para regular o humor, como as que toma, ou aceitar as coisas como são, deixa isso pra lá, pois quem fica pensando nessa história termina louco ou suicida. O velho parece se animar apenas com a escrita das cartas e cartões natalinos e certa feita mandou um enorme tratado sobre seu estado d ’alma, tocando de leve na questão de tirar a vida, mas explicando que não quer dar trabalho a outros de forma tão intencional. 

Com o tempo, a correspondência do velho foi ficando banal, da mesma forma que hoje parece banal qualquer discussão a respeito do sentido da vida, porque não é com isso que estamos ocupados, especialmente no fim do ano. Estamos destinados a louvar o senhor que agora nasceu, morreu para nos salvar e depois subiu aos céus, conforme diz a Bíblia e conforme nossa boa vontade em aceitar essa relato. Na verdade, o velho não acredita em Jesus nem em Deus e acima de tudo detesta a idéia de morrer um dia. 

Pode ser que não tenha cumprido seu o intento, "O Desafio", mas o professor da oficina de texto concluiu que ela chegou perto, pelo menos em relação aos outros, que nem saíram do canto. O homem velho poderia ser ele mesmo, o professor, e não vale usar pessoas pré-existentes.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O velho submerso



Era meio dia quando chegamos à cidadezinha calorenta. Ninguém na rua, portas fechadas para o almoço, latidos esparsos. Mais uma volta pelo centro e o mesmo cenário se apresentava, sem sons humanos; apenas a batida de asas de pássaro. Adiante, ao lado da prefeitura, havia um pequeno terreno baldio com máquinas de terraplenagem tomadas por ferrugem e mato. O trator lembrava um navio naufragado no seco; no lugar dos peixes, lagartixas.

Cidades pequenas têm esses silêncios do meio dia, mas ali o silêncio era maior. Quase todos já haviam abandonado o município, deixando para trás alguns renitentes. A delegacia fora desativada e em breve não haveria nem água nem luz à noite. Na verdade, não haveria mais nada.

Batemos numa dessas portas. Palmas e "ô de casa", como diziam por lá. Sem resposta. Na segunda, um velho chegou arrastando suas sandálias num corredor enorme e escuro, decorado com fotos colorizadas, azuladas, da família. Chegou com cara de sono e nos olhou sem surpresa. Informamos que era o último aviso: a cidade seria inundada para a construção de uma barragem. Lá na frente, a jusante da represa, o novo vilarejo estava pronto para receber os munícipes. Casas novas, posto de saúde e mercadinho. O homem baixou a cabeça, tomou fôlego e disse que ficaria com os mortos. Dissemos que os corpos do cemitério não estavam mais lá. Ele disse que alguma coisa ficou; umas partículas, pelo menos.

O velho tinha um senso estranho. Explicou que a cidade a ser submersa era sua última parada porque não iria parar onde não viveu, onde sua mãe viveu, onde não viveram seus mortos. A vida no novo povoado já seria o fim da vida e  portanto não estava disposto ao sacrifício de um  movimento inútil.

Daí uma questão técnica transformou-se numa questão mais complicada, pois o velho não via sentido em sair, não arredaria pé nem que fosse a pulso. Eu paro de respirar, que é o mesmo que morrer afogado, ameaçou o velho. Sei parar de respirar e sei morrer, reforçou o velho, mastigando um palito de fósforos com  muita calma. Eu mesmo pensei um pouco, só um pouquinho, nas razões deste último resistente, enquanto ele continuava me olhando, desta vez mais terno, e assegurou que não queria atrapalhar a obra, entendia meu ofício etc; só queria o direito de ficar.

Seguiu o velho com um monte de histórias antigas, a família nas calçadas, a construção do Instituto Histórico e Geográfico, os tempos da escola primaria, os trovões de madrugada, as moças do Curso Normal e o cometa que atravessou a cidade, meu Deus, nunca vou esquecer do rabo de luz estirado no céu, lembrou o velho, meio emocionado.
 
Velho inverossímil, seu rosto anguloso inverossímil, não parava de falar e daí passei a anotar para o relatório, sabendo que certas partes não eram do interesse da construtora, e talvez até pensassem que fosse invenção minha, caso desse destaque a tais alegações do velho, que não parava de falar, bem sereno, daqui não saio nem morto, disse o velho, quero ficar no fundo, em cima de torre da igreja, borbulhando um pouco diante do grupo escolar até me deitar no cemitério, debaixo d'água. Vou morrer de qualquer jeito, se ficar ou mudar, então quero morrer assim, afogado onde nasci, de volta para o líquido da minha mãe. 






quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Esperando Adélia ou não




Tanta ansiedade nesses dias de sua ausência, Adélia, nem você imagina. Aliás, imagina. Basta pensar em minha agonia elevada a uma potência cósmica, andando de lá e para cá dentro de casa, cada vez mais rápido, tentando encurtar o tempo que resta para sua volta. Pensei que faltava uma semana; faltam duas. Pensei que iria suportar; está difícil. Às vezes ouço sua voz, mas é a TV. Às vezes ouço seus passos na sala; é a imaginação ansiosa e transtornada.

Os remédios para dormir não fazem mais efeito e quando fazem, só um pouco, desfazem o sono quando estiro a mão para o lado esquerdo da cama e você não está comigo. Sempre fui assim, qualquer espera me consome, você sabe, mas agora estou tomado por movimentos involuntários. Enquanto penso em você, o corpo realiza operações desnecessárias e obsessivas. Outro dia me descobri na esquina sem notar que tinha saído de casa.  Tento reduzir o tamanho dos dias. Só que eles parecem mais longos.

Sua primeira viagem a negócios. Bom para você, péssimo para mim. Mas não quero atrapalhar, embora não consiga deixar de pensar em você em todos os momentos, num sentimento indeterminado entre saudade e desespero. Falar nisso estive duas vezes no hospital, emergência, pensei que ia morrer. Perdi o mundo de vista, me vi encaixotado e depois apaguei. Os médicos passaram mais remédios para reduzir a ansiedade e o pânico.

Para você preocupar-se é mais uma preocupação, tudo parece OK. Desculpe-me, então, por insistir nesses termos, mas é uma maneira de passar o tempo até a sua volta. Ando confuso e por isso confiro esse mal-estar à sua ausência e pode não ser isso. Vivo em pensamentos tolos, remoendo coisas antigos, como por exemplo o dia em que me vi sem Deus e perguntei e agora, o que será de mim?

Eu sei, nada disso perturba seu jeito de encarar o mundo, sem dramas, sem os fantasmas inexistentes que enfrento dia e noite, numa guerra constante em que já perdi a maioria das batalhas. É o que mais admiro em você - ser diferente de mim em quase todos os aspectos. 

Como estou escrevendo agora, sujeito a mudanças de opinião, deixo aqui também uma dúvida: caso você seja a causa do meu desespero por que devo esperá-la com tanta ganância? Não seria melhor esquece-la? Você é a causa ou conseqüência do meu drama? Enfim, posso estar apenas doente, sendo a paixão  um sintoma, que pode combatido com medicamentos e álcool. O problema é o que provoca tudo isso. Talvez não seja você,  e caso seja não seria aconselhável trazer para perto alguém cuja ausência detona tanto desordenamento. 


Pensando bem, Adélia, acho melhor você não voltar

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cinema do futuro



“Olha para a câmera, meu bem ”, disse a assistente à atriz, quase em tom de deboche. De vez em quando era ela quem gritava “ação”, pois o diretor nem sempre estava no set, quase nunca, para falar a verdade. Estava em outro país, supervisionando as filmagens da franquia. Até em suas férias, o mundo do cinema girava e a imensa rede do diretor mantinha o ritmo de cem filmes por ano. Todos assinados por ele.

Na verdade, quem estava em cena era uma das nossas divas, uma Fernanda Montenegro desta quadra do tempo, levando esporro de uma estagiária e segurando o choro e a saudade da TV. Tudo é possível depois que o cinema virou uma indústria de verdade, sem preocupações estéticas, cheio de ações Dow Jones. O mundo voltou a ter seis artes.

Os filmes de agora contam basicamente a mesma história, mas há lotes com algumas variações, de acordo com a cultura do lugar. A Vingança 17, por exemplo, se passa no Brasil, com personagens locais. Não há mais filmes brasileiros. O mercado mundial está dominado pelo diretor e seu concorrente, apesar das denúncias de formação de cartel.

Alguns ainda lamentam o fim do cinema de autor e recorrem aos dois cineclubes do Pais. Enquanto isso, as sessões de Vingança 17 – Brazil estão lotadas. Máquinas velozes e ferozes correndo pela Avenida Vieira Souto, embicando em Foz do Iguaçu e surgindo no Pelourinho, onde toca o Olodum . Troca de tiros e explosões no sambódromo. Eis o máximo que temos no campo da regionalização.

O diretor-produtor-empresário também canibaliza o que o velho cinema produziu, embora não leve em conta os diálogos, especialmente os de filmes europeus, e acima de tudo se repete, e repete a fórmula que traz público: coisas correndo, coisas atirando, coisas explodindo e gente morrendo. Os cinéfilos são raros. O público que está no cinema poderia estar numa montanha russa. O que se procura é emoção em estado bruto, descargas de adrenalina. Nas partes mais animadas do filme, a platéia ensaia uma ola.

O homem deu tudo para ter seus filmes no topo das bilheterias, inclusive cheiro de pólvora nas salas de cinema e cadeiras que sacolejam de acordo com a cena. Gritinhos, sustos, sensação de estar saltando no espaço  substituem com vantagens qualquer René Clair ou qualquer outro diretor do passado, todos desconhecidos nesta simulação de futuro.