terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Literatura e materiais de construção

Não sonhava em terminar sem nada, embora nada tivesse. Jovem trata a pobreza de outra forma, encontra diversão e arte em qualquer canto: entradas francas, bocas livres, almoços grátis, cigarros filados, mulheres e punhetas. Mas na meia idade começou a reclamar da sorte. Logo ele, tão inteligente, colegial completo, dado à escrita, estava num emprego vagabundo, há 30 anos, vendendo material de construção na loja de um amigo.

À noite escrevia um longo romance de aventuras, mas o personagem central, o herói, era sempre sacrificado pelas condições do narrador. A aventura era simplesmente sobreviver como vendedor de material de construção. Aos poucos, o livro estava cheio de blocos cerâmicos, argamassa, cantoneiras, rejuntes, cal hidratada, tijolos vazados, pias, azulejos e louças sanitárias. O personagem se movia entre coberturas de Eternit (tropicais e ondulados), enquanto sua amada cumpria expediente, no mesmo estabelecimento, na seção de iluminação, catalogando modelos de interruptores com múltiplas funções, lâmpadas halógenas (de preferência dimerizadas), abajures, lustres e arandelas.

Conseguia encadear suas idéias, mas elas pertenciam exclusivamente ao mundo da construção, acabamento e decoração de interiores. Um salto em outra direção tornou-se necessário quando ele descobriu que sua vocação era mesmo a literatura. A primeira providência: viver uma vida fora da loja. Pedir demissão. Correr o mundo. Tinha 43 anos. Saiu da loja para ser aventureiro ao estilo Rimbaud, que ele conhecia de nome, não de leitura. Trocou a carteira assinada por uma passagem de ida para a África.

Naquele pequeno país conheceu de tudo, a começar pela guerra, a fome e a insegurança. Lutou ao lado dos rebeldes, que logo tomaram o governo e viraram tão facínoras quanto seus antecessores. Daí mudou para outro país, tão precário e pobre quanto o primeiro, mas em reconstrução. Não escreveu uma linha sobre a fase africana, pois tinha ocupações demais, negócios com armas, coisa perigosa, e dois filhos para criar no meio da terra arrasada.

Aos 50 anos, chegou a hora de pensar numa vida mais segura naquele pedaço do mundo que precisava de tudo, especialmente de material de construção. Montou uma lojinha, ele e a mulher, e o casal voltou à rotina: anéis de vedação, areia, caixas d’água, sifões, suportes, massa corrida, forro PVC, telhas, bandejas para pintura plástica, cimento, ripas, sarrafos, vigas, caibros, tubos e conexões.

O livro sairia um ano depois. Nada sobre a fúria da guerrilha, nenhum parágrafo sobre a miséria, campos de refugiados ou corpos ao relento. Sua literatura estava assentada em cal e cimento, revestida com mármore e granito. Fino acabamento, concisão e leveza de materiais, sem exagero nas tintas. Uma bela obra.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O Voo

O que faz um velho sem condições de trabalhar? O dinheiro da aposentadoria não dava para o aluguel, a família sumiu, os amigos morreram e o orgulho e a dignidade impediam que saísse por ai, a pedir empréstimos e esmolas. Então decidiu morrer. Um prédio alto do centro, um voo, a queda. Os órgãos públicos, enfim, tratariam dele da melhor forma possível: limpeza do sangue no asfalto e enterro de indigente.

Deixaria uma carta seca, com observações técnicas sobre o sistema previdenciário, e um pedido de desculpas ao condomínio do edifício de onde alçaria seu voo. Nenhuma referência a suicídio. A palavra “voo”, de acordo com a reforma ortográfica, sem circunflexo, soaria menos dramática. Morrer, afinal, não é uma coisa de outro mundo, e se caísse na eternidade – duvidava -, talvez as condições fossem mais adequadas.

Ao meio dia de uma terça-feira, o velho voou.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A russa da Lapa

Nestas malfadadas linhas segue o que me vem à cabeça sobre o dia de ontem e outras coisas. Imagens enoveladas mostram minha passagem por uma blitz da polícia. Teste do bafômetro. Só tem um porém. Não bebo, não dirijo nem tenho carro. Não saí de casa e acordei em casa. Se saí, não há vestígios. As chaves estão na fechadura e, por isso, deduzo que estive aqui desde a tarde passada. Caso tivesse saído elas estariam em cima da mesa. Nesse ponto sou metódico. Tudo nos mesmos lugares, o banheiro limpo, a cama desforrada e a estante de livros apenas com uma folga - o exemplar dos Melhores Contos de Loucura, organizado por Flávio Moreira da Costa (Ediouro), foi tirado do lugar. A intenção não é fazer mistério; é esclarecer logo o que aconteceu. Eu não sei.

Da cozinha vem uma voz feminina. Um grande susto e, logo em seguida, uma grande surpresa: Sonia, uma russa, estudante de artes, conta o que sabe num português impecável. Não é muito: “Eu tava embriagada, você me trouxe pra dormir aqui. Fui roubada”. Trouxe como? Ela diz, “de táxi”. De onde? Ela responde: “Não sei”. Lembra-se vagamente da blitz e do bafômetro. Mas foi o motorista do táxi que se submeteu ao teste. Estava bêbado e foi preso. “Pegamos outro táxi e estou aqui”, resume a Sonia russa, preparando o café e cheia de intimidades comigo. Só depois de muito custo recobrei uns dados da memória e Sonia não me pareceu estranha. Isso! Nasceu em Moscou e foi criada no Rio, na Lapa. O pai é mágico. Estive com ela há um ano, rapidamente, numa loja especializada em realismo socialista para decoração de ambientes. Sonia se interessou por um abajour com desenho de Lênin e um exemplar amarelado de Ilya Ehrenburg. Conversamos sobre suas preferências por uns dois minutos. Deu tempo de perceber que poderia ser superficialmente classificada como uma esquerdista pop, anti-soviética, ligada a movimentos de novos teóricos marxistas. Pensei numa frase boa, impressionável e fina, para dizer naquela hora, mas não veio. Era tão distante a agora se comporta com intimidade demais aqui na cozinha. Talvez seja o jeito dela. Talvez eu a tenha encontrado outras vezes e tenha esquecido. Afinal, estamos falando de amnésia.

Um parágrafo enorme e nenhuma informação relevante. Temos uma Sonia russa, táxis e blitz. Falta o principal. Como e por que sai de casa? Como encontrei a estudantes de Belas Artes e por que a trouxe para casa? Houve algo entre nós? Não tive coragem de entrar nesses detalhes últimos, mas a moça esclareceu: “não houve nada, viu. Dormi no sofá”. Para prosseguir, sem saber como termina a historia, comecei a desconfiar da russa. Ela esconde algum segredo. Como nos conhecemos, antes dos táxis, e por que esse lapso de memória? Ela jura que não sabe. Nem eu.

Escrever durante o processo tem suas vantagens e desvantagens. A russa ainda está em casa, isso é bom, e posso submetê-la a um interrogatório mais duro. Calma, é só uma maneira de dizer. Até que é gostosa, a filha da mãe, e está muito tranqüila para quem não sabe onde estávamos ontem à noite. Tudo está muito parecido com o argumento de um filme que escrevi e foi recusado. Complicado e ruim, junção perfeita, negócio de quem tem pretensões de fazer uma obra-prima. Deixa pra lá. Nisso, a russa começou a mexer nos livros, e então me pergunto: foi ela que estava lendo os contos de loucura? Foi ela que me trouxe para casa? Se eu não encontrar uma resposta, uma explicação, o texto vai para o lixo. Preciso de ajuda. A russa não pode ajudar mais, desconfio dela, então recorro aos motoristas de táxi, ao preso e ao solto. Ligo para a empresa, e depois de alguma música no pé do ouvido, mais música, música de empresa de táxi, o pior repertório do mundo. E telefone não é lugar para ouvir música.

Bom. Finalmente sou atendido, depois de discar de um lugar para outro, e agora a moça informa que, de fato, eu e a russa estivemos em dois táxis da companhia, conforme disseram os motoristas, o preso e o solto, e passamos mesmo pelo incidente do bafômetro. Não tenho porque desconfiar de ninguém, pelo menos não deveria, ou deveria, não sei. Tem ainda a telefonista. Não haverá mais telefonista.

Eu e a Russa, no táxi, tanto no primeiro quanto no segundo, estávamos numa animada e fluente conversa sobre tudo que você possa imaginar. Em russo, segundo os motoristas. Eu não falo russo, que é isso? Ou é só paranóia? O fato é que não sei como saí de casa. Quero saber os detalhes, como a aparição de Sonia nessa (ou nesta?) história. Uma Sônia russa, com jeitinho carioca, uma beleza.

O apagão de memória que tive é muito estranho e por isso passei a procurar pistas dentro da casa, como nas séries policiais americanas, e deparei com um DVD, sem nada escrito nele. Liguei o aparelho, coloquei o disco e estava lá, documentado, o período que passei afastado deste mundo. Um Back-up do Black-out. Tudo ou só uma parte? Não sei. Mais uma pergunta: quem fez o vídeo? Resposta: provavelmente eu. No vídeo aparecia a minha voz, nos bastidores, e a única no set, apenas de calcinha, era Sonia, a russa. Bastava mandá-la fazer tal coisa e ela fazia. Estava ali a presumível culpada e o DVD mostrará em seguida o desaparecimento da minha voz. Só que o enredo prossegue, com ela agora na direção, me dando ordem para certos procedimentos em seu corpo. O resto é o que se vê em filmes do gênero, mas estou ali ausente, como autômato, em cima de Sonia, a russa, pensando estar numa blitz da policia, pensamento mais nítido do que o vídeo, isso na minha cabeça, claro.

Sonia não se lembra de nada. Nem mostrei o vídeo, com vergonha, mas contei a história, cheio de cuidados para não cair na vulgaridade. Não citei que havia pornografia, preferi “cenas íntimas” e ela, toda despachada, disse “quero ver”. Viu. Ficou assustada, agitou os braços sem palavras e disse com uma ênfase danada: “esta não sou eu”.

Não se tem registro de um caso de amnésia acometendo duas pessoas ao mesmo tempo, um brasileiro e uma russa, especialmente quando se olha o vídeo. Somos nós dois lá. Ou não? Por isso, liguei a um amigo psicanalista, ex-lacaniano, para saber se seria possível perder a memória por causa de sexo. Antes, durante ou depois. Ele disse não ou pelo menos não conhecia (eu poderia embarcar nessa para explicar a história. Não deu).

Nesse ponto, no momento em que a russa diz que aquela não é ela e continuo sem lembrar-me de nada, inclusive se eu sou eu, ocorre uma situação bem conhecida de quem deseja inventar uma história. Uma encruzilhada, onde você tem possibilidades, ou um beco sem saída, como é o presente caso. E daí? Aconteceu o que com a russa e comigo?”“. Eu não sei. Não tenho a menor ideia. Alguém sabe?

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Melancólica FM

A transmissão começa depois da meia noite, com o locutor de voz cansada. A partir daí, os ouvintes podem sintonizar o dial mais deprimido do Brasil, talvez do mundo, pois esta no ar o programa em que as pessoas ligam para esvaziar suas almas, reclamar da vida, expor mazelas, declarar que nada vale a pena ou simplesmente mandar todo mundo à merda.

Espaço de queixumes, timbres reticentes e algumas ameaças de suicídio, o programa segue em frente, de fracasso em fracasso, levando à audiência o lado mais sombrio do samba-canção, alternando com melancólicos blues e lamentos cantados em geral. Começa, então, a esperada conversa de sempre. Não de amores traídos, mas de declarações publicas sobre a falta de sentido da existência, a morte, o ser e o nada e outras tantos becos sem saída da Filosofia Ocidental.

A ouvinte Isabela, por exemplo, aparece com freqüência para expor seu vazio, o sono agoniado dos deprimidos e o terror de ser obrigada a levar a vida adiante. Nesse canavial de lamúrias, eis que surge a figura do comentarista. Cabe a ele mediar – senão tornar ainda mais degradante – o depoimento das mulheres sozinhas e dos homens sozinhos, cada um no seu canto, à espera do nada.

Há e-mails a serem respondidos, com destaque para os pedidos de socorro – neste caso não há muita coisa a fazer – e os sentimentos mais atrozes, entre os quais a indiferença ocupa o primeiro plano. O niilismo dá tom da correspondência, com algumas expressões em alemão, Freud no original, Die Zukunft einer Illusion, para mostrar que o homem é associal por natureza e também para exibir um pouco de pedantismo, outra praga humana, pesadamente presente no horário. O mediador às vezes reclama: “aqui não é lugar de exaltação do ego; pode citar até Schopenhauer, mas tem que ser à vera, porque o sujeito deve estar dentro de seu objeto ou dentro do objeto do autor que usa no presente instante”. Ou seja: a pessoa tem que estar realmente fodida e não aparecer ali apenas para despejar cultura.

Mas a vaidade humana é inevitável. Mesmo os deprimidos de fato querem fazer seu o show, com longos comentários sobre o mal-estar da civilização, a banalização do mal, o crime e castigo, o apagamento do sentido do sujeito, as dores do mundo, concepções nietzschianas, Turgueniev, Cioran, Artaud e Vicente Celestino. Quando não é isso, é a farmacologia tarja preta em estado puro, com adeptos e adversários em densos bate-bocas sobre as vantagens e desvantagens do cloridrato de paroxetina e outras substâncias do gênero.

No final vê-se que o programa funciona para aliviar o pesado fardo da vida. Alguns ouvintes conseguem até dormir sem o seu Stilnox ou vão aos bares continuar conversa sobre o eterno retorno, o existencialismo, a ansiedade generalizada e, vejam só, futebol, carnaval e sacanagem.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

A terapia do precipício

Segui seus passos até o precipício. Ela ainda se encontra lá, relutante, observando a profundidade do buraco e planejando um salto com compostura. Cerca de 100 metros para completar o serviço. Estou bem atrás, conforme as instruções, e mantenho uma inesperada calma; acho que ela não pula e se pular cumpre-se uma etapa. Vale informar que não é a primeira vez. Tornou-se um ritual. No fim ela volta, chora, e passa meses de bem com a vida. Até uma nova crise. Os medicamentos não funcionaram. Só a beira do precipício tem dado resultados – mesmo assim, temporários. Quase duas horas de espera.

Enquanto isso, alterno atenção com descaso. Leio um jornal, o caderno de esportes, mas logo volto as vistas para seu corpo perfeito e para o outro lado do Canyon. A combinação é não dizer uma única palavra. Apenas espero pela decisão. O tratamento é de risco, mas o único. Se não vier aqui se tranca no quarto por uns três dias e, depois disso, começa a bater a cabeça contra a parede. Já teve concussões graves e fraturou o crânio. Nenhuma entidade, privada ou pública, pôde cuidar dela nessas situações. Então viemos para cá e, como sempre, aguardo com otimismo. Não haverá salto; ela só quer olhar, pensar, alisar o cabelo para trás com as duas mãos, num sinal de desespero, e também de dúvida. O que fazer da vida?

A princípio não concordei com a terapêutica, mas é uma indicação psiquiátrica. Heterodoxa, eu sei, mas eficiente. Pelo menos, nesses intervalos, passamos dias felizes, vamos aos restaurantes e cinemas, bebemos todos os vinhos e trepamos com regularidade. Quando sair dali, caminhando para meus braços, sei que será outra mulher. O desespero vai-se embora e ela recitará vários poemas com a cabeça deitada em meu colo.

Digo que não, mas me preocupo. Se ela pular se sentirá ludibriada e depois não saberemos como reagirá. Ficará para sempre entre a demência e os golpes de cabeça contra a parede? Encontrará uma forma de morrer ou será curada com o susto? Lá embaixo, entre as duas margens do canyon, há uma imensa rede, forte e quase invisível. Alpinistas estão a postos para resgatá-la – um deles é médico. Ela não tem conhecimento dessa logística. O tratamento, não previsto no plano de saúde, tem me custado os olhos da cara. Mas vale a pena.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Notícias


No Recife, o Bloco do Nada sairá na segunda-feira de carnaval (foto). Seus integrantes seguirão atrás de um estandarte branco, sem qualquer inscrição, desfilando no vácuo de outras agremiações, nos poucos espaços vazios da cidade. Teoricamente, o bloco não existe; é um pseudoproblema, segundo Kant. Mas é uma palavra e tem um hino.

-0-

A história do homem oco começa no dia em que ele conseguiu dominar as técnicas da meditação transcendental. Esvaziou a mente, conforme as instruções, mas ocorreu um problema sério no processo. O homem não retomou seus pensamentos, que se foram para bem longe e não voltaram, deixando o pobre meditador inteiramente vazio de memória e incapaz de esboçar qualquer reação ao mundo real.

-0-

O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a prisão domiciliar a um morador de rua detido em flagrante, acusado de furto. Deverá ser preso por não cumprimento da decisão judicial. Precisa de um sofá para sentar na Praça da república, abrir um jornal e tirar os chinelos.

-0-

Só agora, depois de três décadas, resolvi escrever. Do modo como ainda fazíamos no início dos anos 80: carta pelo correio. Não sei como você está e até o endereço comercial, capturado no Google, pode ser de outra Kathy, com o mesmo sobrenome, a mesma profissão. Vai assim mesmo, como garrafa ao mar. Em primeiro lugar, assumo: a culpa é minha. Sai dos EUA como quem sai para comprar cigarros e some. Saí da sua vida e de seus planos. Fugi do casamento direto para o aeroporto Kennedy. Chegou a hora decisiva: fazer balanços e pagar dívidas antigas ou acumular todas, ir empilhando, deixando para depois, depois e depois.

-0-

“Temos dinheiro de sobra para concluir o negócio, mas esperamos alguma compreensão de sua parte. Feche suas empresas e receberá um bom dinheiro por elas. Caso contrário, entramos pesado no mercado e quebramos vocês em menos de três meses”. A delicada explanação do diretor de vendas da grande empresa foi aceita sem hesitação pelo concorrente. Sem um pio. Ele confia no capitalismo e achou absolutamente normal o formato da negociação. Quisera estar no lugar do monopolista. Não estava. É a regra do jogo.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A inveja de si mesmo e a armadilha acadêmica

Há 20 anos atuamos no ramo da produção de teses de doutorado e mestrado, monografias e dissertações em geral. Por força da lei não entregamos trabalhos prontos. A encadernação, por exemplo, fica a cargo cliente. Mas temos uma gráfica rápida aqui do lado. Nessas duas décadas, colecionamos diversos cases em Ciências Humanas, nossa especialidade, e um dos textos mais originais, feito para uma universidade norte-americana, terminou virando um famoso e elogiado livro sobre o funcionamento das instituições. Não podemos declinar o nome do trabalho nem o do autor oficial, hoje reconhecido scholar nos EUA. Uma pena.

Escrevo numa fase de frustração de nosso pessoal. Como sócio-fundador da empresa tenho que segurar sentimentos difíceis de lidar. Vocês não sabem o que é enfrentar noites a fio debruçado sobre uma imensa bibliografia, compor um arrazoado de qualidade e depois vê-lo circular pelos meios acadêmicos sob outra assinatura. Um dos meus auxiliares mais profícuos, que nem curso universitário tem, anda deprimido. Quase coloca nosso empreendimento em risco, ao contar, durante uma bebedeira, suas façanhas sob a ótica de Webber. Aliás, gostamos muito desse modelo: alguma coisa sob a ótica de alguém. Funciona sempre.

Também acompanhamos de perto os modos e modas da academia. Sabia que os franceses estão baixa? Agora é a vez dos americanos. É o que dizem até na Sorbonne. Em caso de dúvida, quando o cliente não tem a menor idéia do tema, sugerimos Hobbes, Leibniz, Durkheim, Locke e, obviamente, Webber. Normalmente, ele não sabe quem são, mas deixam por nossa conta. Na sequência, treinamos o sujeito para enfrentar a banca, na base da mnemônica, a vulgar decoreba. Muitos passaram com louvor e não é surpresa vermos um dos nossos ex-clientes na função de julgador supremo. Então, nesses casos, o pacto de silêncio torna a coisa ainda mais tranqüila.

Antes da Internet era um sufoco. Vivíamos em bibliotecas e a máquina Xerox moía durante as 24 horas do dia. Hoje, está tudo mais fácil, com o Google e o Google Acadêmico. O segredo é um cozido bem feito, com começo meio e fim, e não é raro usarmos nossas próprias teses como fonte de referência ou vermos teses de reconhecidos monstros sagrados da academia com trechos inteiros da nossa lavra. Nessas ocasiões, sentimos orgulho e um pouco de autopiedade também. O anonimato é alma do negócio, mas uma alma sofrida. O ego precisa de seu alimento e ai entrei com um lema, tirado do panteísmo psicofísico do velho Spinoza: "Não Chore. Não se revolte. Compreenda."

Por que estou deixando estas linhas? É a vaidade, meus caros. O lema spinoziano é uma armadilha para o cliente e não um toque de conforto para meu orgulho. Vou entregar todo mundo na hora agá. No leito da morte ou na Vara de Falência. Darei nomes aos bois. A tal confidencialidade irá para o brejo, anotei todos os detalhes, tenho gravações, vai ser um deus nos acuda. Prefiro passar à história como escroto a ter meu nome ausente das bibliotecas universitárias. Se existe “morrer de inveja de si mesmo”, este é o meu caso quando leio esses caras. Eles roubaram a cena à custa do meu negócio. Gastei tudo que tinha – anos de cultura acumulada - em introduções, considerações finais e abstracts; em linhas espetaculares que são minhas, mas não são. Quero de volta tudo que entreguei (a preço de banana) sobre história da filosofia e da literatura ocidental: os conceitos, a solidez do conteúdo, a beleza do texto e as frases de efeito.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O sentido da vida e as moças no palco

Duas moças estão no palco. Eles discutem o sentido da vida. Para ser mais preciso, elas discutem se vale a pena chegar à velhice ou é melhor morrer na flor da idade, enquanto o corpo funciona e a mente envia sinais de desejo. Para ser ainda mais específico, elas discutem o nada. Uma se adianta, chega mais perto da plateia, e está cheia de perguntas sem respostas. Por exemplo: queremos viver o presente, mas o presente logo se extingue e se transforma em recordação. Então, vamos acumulando momentos ou apenas servimos para abastecer uma memória finita?

O discurso da peça, como se vê, é niilista, e chega a hora em que o público se divide. Uns nunca pensam nisso nem querem pensar; outros só pensam nisso. Há uma exceção: o crítico, com todo método e inteira razão, só enxerga vestígios existencialistas no texto da peça. Provavelmente, o autor é alguém perdido no tempo e nas eras estéticas. Estava, enfim, professando um existencialismo tardio.

Mas as moças vão em frente, na mesma toada, questionando coisas que muita gente prefere escondidas, como a possibilidade de morrer, morrer e pronto, acabou, e como engolimos ou não o fato de não existir o depois. Mesmo assim, continuamos construindo prédios e idéias, criando coisas novas, pagando o IPVA e batendo o ponto na repartição. A vida continua enquanto continua. Parece bastar. O show, no entanto, prossegue.

Agora é a vez de Beckett e Nietzsche, interpretados por mais duas moças. Muito lindas, por sinal. O objetivo é deixar os espectadores cabisbaixos e pensativos. Mostrar que não há saídas, Deus está morto e elas preparam o enterro do Todo Poderoso com pompa e flores nobres, num caixão da Casa Agra, a funerária predileta de Augusto dos Anjos. Não há muito encadeamento nas cenas. Todo o texto parece uma pregação sobre o vazio, que já invade o mundo do entretenimento e da celebração pagã. As atrizes citam o Bloco do Nada, que sairá na segunda-feira do Carnaval do Recife, provavelmente sem acordes de frevo. Sem nada, a não ser seu estandarte branco e seus filósofos com explicações plausíveis e implausíveis sobre a (in) existência. William Shakespeare surge agora, também mulher, apenas para uma fala, de sua autoria: "Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes."

A peça ainda não está em cartaz. Foi apenas uma pré-estreia, num teatro sombrio e obscuro. No final, quase todo o público foi embora sem muita conversa. Ficaram os de sempre, para um chopinho do bar da esquina. Ali, concluíram que a vida pode ter sentido ou não, pouco importa. O que não tem mesmo sentido é o texto apresentado naquela noite. Salvaram-se as atrizes, deliciosas recitantes, especialmente Beckett, de minissaia, e Nietzsche, com seu piercing no umbigo. Sem falar de Shakespeare, que entrou em cena apenas com sua gola bufante.