domingo, 5 de fevereiro de 2012

A inveja de si mesmo e a armadilha acadêmica

Há 20 anos atuamos no ramo da produção de teses de doutorado e mestrado, monografias e dissertações em geral. Por força da lei não entregamos trabalhos prontos. A encadernação, por exemplo, fica a cargo cliente. Mas temos uma gráfica rápida aqui do lado. Nessas duas décadas, colecionamos diversos cases em Ciências Humanas, nossa especialidade, e um dos textos mais originais, feito para uma universidade norte-americana, terminou virando um famoso e elogiado livro sobre o funcionamento das instituições. Não podemos declinar o nome do trabalho nem o do autor oficial, hoje reconhecido scholar nos EUA. Uma pena.

Escrevo numa fase de frustração de nosso pessoal. Como sócio-fundador da empresa tenho que segurar sentimentos difíceis de lidar. Vocês não sabem o que é enfrentar noites a fio debruçado sobre uma imensa bibliografia, compor um arrazoado de qualidade e depois vê-lo circular pelos meios acadêmicos sob outra assinatura. Um dos meus auxiliares mais profícuos, que nem curso universitário tem, anda deprimido. Quase coloca nosso empreendimento em risco, ao contar, durante uma bebedeira, suas façanhas sob a ótica de Webber. Aliás, gostamos muito desse modelo: alguma coisa sob a ótica de alguém. Funciona sempre.

Também acompanhamos de perto os modos e modas da academia. Sabia que os franceses estão baixa? Agora é a vez dos americanos. É o que dizem até na Sorbonne. Em caso de dúvida, quando o cliente não tem a menor idéia do tema, sugerimos Hobbes, Leibniz, Durkheim, Locke e, obviamente, Webber. Normalmente, ele não sabe quem são, mas deixam por nossa conta. Na sequência, treinamos o sujeito para enfrentar a banca, na base da mnemônica, a vulgar decoreba. Muitos passaram com louvor e não é surpresa vermos um dos nossos ex-clientes na função de julgador supremo. Então, nesses casos, o pacto de silêncio torna a coisa ainda mais tranqüila.

Antes da Internet era um sufoco. Vivíamos em bibliotecas e a máquina Xerox moía durante as 24 horas do dia. Hoje, está tudo mais fácil, com o Google e o Google Acadêmico. O segredo é um cozido bem feito, com começo meio e fim, e não é raro usarmos nossas próprias teses como fonte de referência ou vermos teses de reconhecidos monstros sagrados da academia com trechos inteiros da nossa lavra. Nessas ocasiões, sentimos orgulho e um pouco de autopiedade também. O anonimato é alma do negócio, mas uma alma sofrida. O ego precisa de seu alimento e ai entrei com um lema, tirado do panteísmo psicofísico do velho Spinoza: "Não Chore. Não se revolte. Compreenda."

Por que estou deixando estas linhas? É a vaidade, meus caros. O lema spinoziano é uma armadilha para o cliente e não um toque de conforto para meu orgulho. Vou entregar todo mundo na hora agá. No leito da morte ou na Vara de Falência. Darei nomes aos bois. A tal confidencialidade irá para o brejo, anotei todos os detalhes, tenho gravações, vai ser um deus nos acuda. Prefiro passar à história como escroto a ter meu nome ausente das bibliotecas universitárias. Se existe “morrer de inveja de si mesmo”, este é o meu caso quando leio esses caras. Eles roubaram a cena à custa do meu negócio. Gastei tudo que tinha – anos de cultura acumulada - em introduções, considerações finais e abstracts; em linhas espetaculares que são minhas, mas não são. Quero de volta tudo que entreguei (a preço de banana) sobre história da filosofia e da literatura ocidental: os conceitos, a solidez do conteúdo, a beleza do texto e as frases de efeito.

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