Satanás teve um sono bom. Na manhã
agradável e panorâmica, respira a poeira incandescente de estrelas, enquanto lê
a "Humani Generis”, enquanto come pãezinhos do Biscottificio Innocenti,
enquanto recebe informações sobre a chegada de pecadores. Satanás faz várias
coisas ao mesmo tempo e assim cumpre seu papel católico, hospedando os
indesejáveis de Deus, em convênio com o Paraíso. O inferno está em alta
temporada, negócios a todo vapor, ocupação em torno de noventa por cento.
Nesse dia em que acordou disposto e
expedito, Satanás tinha o sentimento do dever cumprido e olhou a imensidão de
suas posses como um fazendeiro, um senhor das terras sem limites no espaço e no
tempo. Esteve mais tarde com sua mulher, deusa grega decaída, mas de beleza
clássica mantida. Ela foi vítima do monoteísmo, vítima de Constantino, vítima
da história e da literatura. A exemplo do marido, não envelhece e acumula
conhecimento. Os dois se dão bem há séculos e não se cansam de produzir
orgasmos e filhos.
Vida tranquila e segura num lugar mal
compreendido pelos mortais antes de morte. Um empreendimento e tanto.
No prédio principal, o ambiente tem
iluminação a ignis fatuus, produzida pelos próprios viajantes da última viagem,
mas sem aquele cheiro de compostos orgânicos voláteis. Sem muita burocracia, seguem-se: Imigração das almas, Check-in no
balcão, Portal de Hades. Só um pouco lembra os livros sagrados, pois Satanás
também recorre à Philosophiae Naturalis Principia Mathematica e até obras mais
recentes para compor sua estética. O lugar – indisponível em mapas, inclusive
os astrais - é decorado à imagem e semelhança de seu dono, com um largo vão
modernista cobrindo parte do jardim até o períbolo, onde se destacam figuras
votivas e quadros assinados por artistas de eras variadas.
Nada corresponde aos pesadelos associados
ao inferno. Ninguém está pendurado pela língua sobre piscinas borbulhantes de
sangue. Nenhum rastro do Apocalipse de Pedro. Almas não são torturadas,
conforme espalhou Santa Faustina. Não existe sinal daquela desgraceira descrita
por Virgílio, que ali exerce sua antiga função de guia turístico. Os nove
círculos de sofrimento são uma metáfora, esclarece. A Psicopedagogia é outra.
Virgílio chegou como hóspede e foi ficando. “A gente resolve tudo na conversa”,
diz um dos preceptores.
No inferno fala-se o Latim, por
conveniência histórica e poética, e os folhetos na portaria informam que o
dialeto toscano também é admitido, em alguns casos. De qualquer modo, funciona
bem o serviço de tradução simultânea, destinado a línguas vivas e a línguas
mortas com seus falantes.
Muita gente trabalha para Satanás e,
portanto, resta-lhe tempo para apreciar o universo, desde o início até hoje,
por meio de sua apurada veia mais científica do que religiosa. O inferno é uma
estação de repouso, lugar de leitura e reflexão; um sanatório de Berghof com
alguns graus a mais, com o define um escritor vindo da Alemanha.