domingo, 17 de julho de 2016

Ego



Chegou ao último degrau da autoestima quando, seguro de si, perdeu totalmente a compostura na hora do autoelogio, como faz sempre, mas dessa vez exaltava certo fragor da natureza que só ele era capaz de ouvir. Coisa para uns poucos especiais, sensíveis como partículas elementares, capazes de viver a vida de forma mais intensa, ao mesmo tempo ardendo e durando. Alguns dos amigos olhavam com ar de ironia, quase prendendo os lábios para não rir, enquanto o Ego seguia em frente, falando para o prazer de si próprio.

- Minha gente, vamos mudar de assunto – disse uma delas, sem saber que assunto estava sendo tratado, pois na verdade só prestou atenção a algumas palavras, como “inextrincavelmente”, por se tratar de uma palavra feita para ser escrita, não para ser dita numa conversa. De qualquer forma, não sabia o que significava “inextricavelmente” e desinteressou-se. Ele manteve o ritmo, quase discursivo. Entre os que se deram ao trabalho de ouvir, algumas subdivisões: “ele está louco”, “cada dia mais chato” e “o cara é foda”.   

Poucos admiradores fidelíssimos. Todos queriam entender como ele entende, ver com os olhos dele e finalmente sentir-se ele, ou Ele, em muitos casos. Por sorte o Ego não acredita em Deus, senão disputaria o trono do Todo Poderoso, numa briga de iguais. Seus adeptos ouvem, sempre: “não sei como você aguenta”, às vezes durante a sessão oratória. O Ego percebe o desprezo de maioria. Não se abala. Nesses momentos, dirige-se à sua seleta e minúscula confraria e derrete-se com o olhar de aprovação da dona da casa, a mais bonita da turma. Ela serve a cerveja para edulcorar a homilia do amigo mais sabido; e serve-lhe de tradutora em situações em que o Ego é obrigado a recorrer a palavras em latim e alemão. Ele gosta muito de "Vorfreude”, que é, segundo o Google, a felicidade antecipada por algo que ainda está por vir.


domingo, 10 de julho de 2016

O outro


Carros da polícia surgiram no meio do mato, enquanto eu passeava com um cigarro na boca, no tempo em que era proibido fumar.  Eu não sabia por que tantos homens naquela operação, vários destacamentos armados, e desconfiei que o negócio fosse comigo, pois num raio de quase quinhentos metros não via ninguém descumprindo a lei. Sem saber o que produziu do nada aquelas luzes vermelhas piscando no meio do mato, passei a andar mais rápido, cada vez mais apressado, quase correndo, e aí uma viatura se deslocou em minha direção e o soldado saltou dela, armado, ordenou o “mãos ao alto” e gritou: “é ele”.

Eu já tinha jogado o cigarro no chão, lá atrás, e não havia provas contra mim, pelo menos nesse caso, mas o caso era outro. Estavam atrás de um fugitivo do presídio, condenado a 30 anos, cujo rosto parecia com o meu, pois quando o policial mostrou a foto do sujeito, já examinando meus documentos, eu mesmo fiquei impressionado. Era igualzinho a mim. A primeira coisa que me veio à cabeça foi o conselheiro titular Goliadkin, personagem de Dostoievski às voltas com um homem que lhe usurpa a identidade. Além de ser a minha cara, o foragido tinha o meu nome: Jose Emiliano Pereira.

Enquanto eu era preso, algemado, desviei a atenção para um filme onde um homem se vê diante de sua cópia, num duelo, e a cópia termina matando o verdadeiro, embora a reprodução seja tão real a ponto de pensar: “matei a pessoa errada”. Naquele momento eu não sabia mais de mim, se era o José Emiliano que fugiu ou o que não tinha nada a ver com aquilo. Talvez eu fosse o conselheiro titular Goliadkin ou sua cópia.

Fui conduzido de forma muito coercitiva ao presídio e lá indicaram minha cela, arrumada de maneira familiar, como eu arrumava meu quarto, e na prateleira perto da cama a mesma sequência de pertences dispostos do meu jeito: barbeador, escova de dente, sabonete Phebo e o livro O Duplo, marcado na página onde o conselheiro titular Goliadkin realmente se enrola ao dar-se conta das atividades de seu homônimo. Eu, Emiliano José, ou ele, Emiliano José, nós dois, digamos assim, éramos acusados de assassinato, sendo que eu nunca tinha visto o outro, então fugitivo, embora tivesse a consciência de não ter cometido qualquer crime. 

Pedi para ser confrontado com ele, seja como fosse, e uma acareação resolveria nosso problema, a partir de um cotejo de informações. Eu sabia onde estive nas últimas horas e poderia provar. Desse modo, ele, meu outro, ficaria em sua cela e eu iria embora. A polícia achou minha defesa fraca, senão absurda; O advogado também achou. Ficar preso, então, tornou-se um problema secundário. Eu queria saber “quem é ele?”, ou melhor, “quem somos nós?”. Na cela, sozinho, descobri numa caixa de papelão fotos da infância dele, ou minha, uma vez que as situações ali fotografadas envolviam ocorrências do meu passado. Lembro de um retrato em polaroide de 1986. Estava lá, perdendo a cor.

Essas perguntas sem respostas que me custaram seis meses de cadeia, até encontrarem aquele que é parecido comigo, igual para ser exato, e o sistema jurídico ficou confuso. A acareação, enfim, foi feita. Eu diante de mim ou de minha cópia, deu-se numa sexta-feira, às 19 horas.

Poderia pensar na grande injustiça de estar preso no lugar de outro; eu inocente, ele culpado, naquele momento em minha frente, como se fosse um espelho. No meio, um escrivão de polícia, espantado, supôs que talvez fossemos gêmeos, mas não havia justificativa para o mesmo nome: Jose Emiliano Pereira.


O outro foi preso de bobeira, passeando no mato, com um cigarro na boca.