O navio corre da terra que se dissolve no
oceano e dá para ver a lama da proa e da popa. Pelo rádio, no último contato, informaram
sobre a existência de um fenômeno ainda sem nome. A preocupação das autoridades
era não criar pânico, mas isso foi há dois dias. Não se sabe se ainda há
autoridades no continente e se ainda há continente. Pelo binoculo: tudo se
passa devagar, um tsunami lento e pastoso movendo-se como no início dos tempos,
em dois sentidos. Não temos a menor ideia para uma solução parcial do drama que
nos envolve e pode mudar tudo. Em algum momento será preciso avisar aos
passageiros que o porto de destino não existe mais – nem o de origem. A bordo,
no entanto, o cruzeiro segue como cruzeiro e não como retirada de emergência:
jogos no cassino, camas arrumadas, casais de idosos na última viagem.
O barco é imenso e os passageiros não sabem
o que se passa. Quando embarcaram tudo estava normal. Para manter as pessoas
longe do convés, foi anunciada uma falsa previsão de tempestade. O navio é
seguro, mostram os folhetos, e há muita diversão a bordo. Todos na ponte de
comando estão atentos e preocupados.
Adélia está em sua cabine. Olha pela
escotilha e vê pássaros desorientados. Não há de ser nada. Não sabe sobre
pássaros e suas migrações. Pensa em
Otavio, na noite anterior, e como são chatos os cruzeiros. Por que um homem
estaria só, num transatlântico de 230 mil toneladas e 5.999 mil estranhos?
Sem comunicação com qualquer lugar do mundo,
O navio solitário inclina-se para o Sul, sob um céu nublado. Os passageiros
estão aqui para esquecer suas vidas em terra e não convém preocupá-los com
notícias desagradáveis. O capitão olha o oceano, pergunta de si para si qual
seria a textura dessa lama.
A tempestade que o comandante não esperava
que viesse, e que mentira sobre ela, estava de fato, começando. Um ataque em
dois flancos, entre a lama ainda distante e os tufões enormes de água. O
transatlântico quase foi encoberto pela água, balançou, enquanto Adélia trata
tudo isso como uma diversão. Suas amigas, nem tanto, pois mantém as mãos
apertadas no varão da cama; rostos horrorizados.
Dada a iminência do desastre, Otavio e Adélia
se reencontram por acaso, no corredor, e numa conversa subsequente – mais naturais
e cúmplices do que no bar, na noite anterior -, desconfiam sobre o destino do
navio e do público em geral. Sabem que é o fim ou algo parecido. Decidem investigar, como fazem alguns
passageiros de Os Prêmios, que Adélia leu na adolescência. Mas não investigam o
navio. Os dois querem chegar ao convés para olhar o que se passa no céu e na
água. Todas as portas estão fechadas.
Eles desconfiaram porque cruzaram com
tripulantes e leram seus rostos. Uma oficial passou pelo corredor com uma
pesada maquiagem que lhe cobria o pânico. Para Otávio, foi o choro de outro funcionário
graduado. Chorava e tapava a boca com as duas mãos; os dedos subiam para
enxugar as lágrimas.
Na ponte, a política muda. Nao há mais o
que esconder. O comandante acaba de tomar a decisão de dirigir-se aos passageiros
e contar o que está ocorrendo. A boa notícia: a onda gigante de lama havia
parado. Solidificou-se do mar a muitos metros do chão, criando uma parede no
horizonte, uma nova fronteira, entre os passageiros e os ex-continentes. Todos
deveriam permanecer no navio que, por razões técnicas, iria lançar âncora ali mesmo
e parar também. Não adiantaria ir em
frente sem saber se ainda há algo à frente. Voltar, a mesma coisa. A saída
seria ficar parado, à espera de algum contato.
Alto-falantes anunciam que os passageiros
receberão em suas cabines um comunicado sobre a situação. Todos pensam na
tempestade, enquanto o comandante e um assessor de imprensa estão na ponte
discutindo os termos do informe cujo ineditismo causa alguma dificuldade de
redação. O que dizer? A paisagem mudou? Todos os parentes das pessoas podem
estar mortos? Será dito apenas o que se sabe, ordena o comandante. Uma onda
desconhecida, uma nova topologia, a montanha de barro nos dois lados - causada
por fatores desconhecidos – e o fim da tempestade; apenas isso. A Internet
continua fora do ar. A piscina será liberada.