segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Mar de lama



O navio corre da terra que se dissolve no oceano e dá para ver a lama da proa e da popa. Pelo rádio, no último contato, informaram sobre a existência de um fenômeno ainda sem nome. A preocupação das autoridades era não criar pânico, mas isso foi há dois dias. Não se sabe se ainda há autoridades no continente e se ainda há continente. Pelo binoculo: tudo se passa devagar, um tsunami lento e pastoso movendo-se como no início dos tempos, em dois sentidos. Não temos a menor ideia para uma solução parcial do drama que nos envolve e pode mudar tudo. Em algum momento será preciso avisar aos passageiros que o porto de destino não existe mais – nem o de origem. A bordo, no entanto, o cruzeiro segue como cruzeiro e não como retirada de emergência: jogos no cassino, camas arrumadas, casais de idosos na última viagem.

O barco é imenso e os passageiros não sabem o que se passa. Quando embarcaram tudo estava normal. Para manter as pessoas longe do convés, foi anunciada uma falsa previsão de tempestade. O navio é seguro, mostram os folhetos, e há muita diversão a bordo. Todos na ponte de comando estão atentos e preocupados.

Adélia está em sua cabine. Olha pela escotilha e vê pássaros desorientados. Não há de ser nada. Não sabe sobre pássaros e suas migrações.  Pensa em Otavio, na noite anterior, e como são chatos os cruzeiros. Por que um homem estaria só, num transatlântico de 230 mil toneladas e 5.999 mil estranhos? 

O mar fica um pouco agitado, mas não balança o navio. As ondas de lama ainda estçao longe, lá atrás e lá na frente, mas temos vantagem sobre elas, ressaltou o comandante, pensando bem que aquilo poderia ser uma onda só e não duas. Em algum ponto se fecha em circulo e nos engole. Outro oficial pediu licença e perguntou até quando duraria a vantagem se aquilo vinha dos dois lados e quando e onde iria parar. O capitão coçou a testa, como faria num filme, e respondeu que mudará de curso para navegar entre os dois himalaias lamacentos. Na melhor das hipóteses, estaremos num fiorde.  Na pior, numa pororoca sólida, uma pasta do fim do mundo. Ele entende um pouco de Geologia.  

Sem comunicação com qualquer lugar do mundo, O navio solitário inclina-se para o Sul, sob um céu nublado. Os passageiros estão aqui para esquecer suas vidas em terra e não convém preocupá-los com notícias desagradáveis. O capitão olha o oceano, pergunta de si para si qual seria a textura dessa lama.

No último comunicado deu-se a informação de que o fenômeno não era localizado e indicou lugares agora inacessíveis, portos destruídos, cidades deslizando com a lava morna. Logo veio o ruído e depois o silêncio. Os passageiros ficaram sem internet. Mais uma vez, o comando culpou a tempestade no continente. Não havia previsão para a normalização do serviço. A maioria se conformou.

A tempestade que o comandante não esperava que viesse, e que mentira sobre ela, estava de fato, começando. Um ataque em dois flancos, entre a lama ainda distante e os tufões enormes de água. O transatlântico quase foi encoberto pela água, balançou, enquanto Adélia trata tudo isso como uma diversão. Suas amigas, nem tanto, pois mantém as mãos apertadas no varão da cama; rostos horrorizados.

Dada a iminência do desastre, Otavio e Adélia se reencontram por acaso, no corredor, e numa conversa subsequente – mais naturais e cúmplices do que no bar, na noite anterior -, desconfiam sobre o destino do navio e do público em geral. Sabem que é o fim ou algo parecido.  Decidem investigar, como fazem alguns passageiros de Os Prêmios, que Adélia leu na adolescência. Mas não investigam o navio. Os dois querem chegar ao convés para olhar o que se passa no céu e na água. Todas as portas estão fechadas.

Eles desconfiaram porque cruzaram com tripulantes e leram seus rostos. Uma oficial passou pelo corredor com uma pesada maquiagem que lhe cobria o pânico. Para Otávio, foi o choro de outro funcionário graduado. Chorava e tapava a boca com as duas mãos; os dedos subiam para enxugar as lágrimas.

Na ponte, a política muda. Nao há mais o que esconder. O comandante acaba de tomar a decisão de dirigir-se aos passageiros e contar o que está ocorrendo. A boa notícia: a onda gigante de lama havia parado. Solidificou-se do mar a muitos metros do chão, criando uma parede no horizonte, uma nova fronteira, entre os passageiros e os ex-continentes. Todos deveriam permanecer no navio que, por razões técnicas, iria lançar âncora ali mesmo e parar também.  Não adiantaria ir em frente sem saber se ainda há algo à frente. Voltar, a mesma coisa. A saída seria ficar parado, à espera de algum contato.

Alto-falantes anunciam que os passageiros receberão em suas cabines um comunicado sobre a situação. Todos pensam na tempestade, enquanto o comandante e um assessor de imprensa estão na ponte discutindo os termos do informe cujo ineditismo causa alguma dificuldade de redação. O que dizer? A paisagem mudou? Todos os parentes das pessoas podem estar mortos? Será dito apenas o que se sabe, ordena o comandante. Uma onda desconhecida, uma nova topologia, a montanha de barro nos dois lados - causada por fatores desconhecidos – e o fim da tempestade; apenas isso. A Internet continua fora do ar. A piscina será liberada.




sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Espera sem tempo



Samarone Lima 


Cada dia uma aventura, um infinito
O gosto de falar sozinho
De costas ao espelho que não existe

O infortúnio, a dor
A desigualdade das mãos
Resvalando em outras mãos
Que invento

Cada dia um sopro, um susto
Uma gargalhada que ecoa
Na memória do amor

E o não dito
O guardado
Fica como uma espera sem tempo
uma casa desabitada
com a memória dos passos
a marcar o chão