quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O processo do processo


Qual a primeira providencia a tomar numa hora dessas se não tenho jeito para tais coisas, mesmo porque desconheço os detalhes, os motivos e os nomes dos envolvidos, apenas me delegaram isso, num estranho processo em que fui designado juiz do mesmo jeito que poderia estar na posição de réu, como no livro de Kafka? A pergunta está zunindo na minha cabeça, desde ontem, quando chegou a correspondência, com carimbos e selos oficiais, protocolo para assinar e um aviso de “urgente”. Coube-me então tomar decisões, com base em depoimentos ainda não enviados, sequer colhidos, talvez, mas já tratados como assunto passado, embora ainda não saiba por que me escolheram, pois não sei absolutamente nada do que está se passando e não tenho formação jurídica. Nem testemunha poderia ser porque nos últimos anos não presenciei nada suficiente para um processo, exceto algumas infrações de trânsito, comuns em nossa cidade, mas havia outras pessoas mais bem posicionadas na hora desses eventos, e não tinha policiais por perto, e as desobediências ao Código Nacional de Trânsito não resultaram em vítimas, e o máximo que os prejudicados fizeram foi chamar os motoristas de “filha da puta”, uma reação plenamente aceitável nos dias de hoje, diria até normal, em se tratando de um povinho mal educado como o nosso. Teve ainda uma briga, que nem me lembro dos detalhes, só que não resultou em feridos e a confusão foi de pronto resolvida em primeira instância, a cargo da Turma do Deixa Disso, e tudo terminou bem e, se não me engano, cheguei a ver os dois contendores sentados no bar, trocando juras de amizade eterna.

Com certeza é algo mais grave, talvez um engano, embora a documentação traga meu nome, endereço e CPF e prazos para cumprir no decorrer do processo, numa linguagem intransponível para leigos, uma vez que a tipificação do crime não me pareceu clara e a forma como veio escrita, em linguagem altamente jurídica, não elucidava nenhuma das minhas dúvidas. Cada vez mais assustado, recorrei a manuais de Direito e neles não encontrei referência ao arrazoado que me foi entregue pelo oficial de Justiça, que por sinal não se identificou como tal, informando apenas ser um enviado do Egrégio Tribunal, com prerrogativas de acompanhar o desenvolvimento do meu trabalho em relação ao crime contra a ordem constituída, sem mais detalhes, nem mesmo artigos do Código Penal ou da Constituição Federal. Ainda perguntei ao emissário a quem recorrer para mais esclarecimentos e obtive uma resposta seca: “O senhor sabe o que fazer”, disse o intermediário, sem fornecer pistas ou nomes de seus superiores.

Como a conjuntura me pareceu próxima a de Josef K., em forma de subliteratura, resolvi voltar ao livro de Kafka, e percorrendo suas 332 páginas de puro absurdo, decidi apenas esperar uns dias, sem fazer nada, até nova visita do emissário, com outra papelada, cujo teor tinha certo tom de admoestação por minha indiferença em relação ao processo. Mais grave ainda era o pedido de detalhamento de itens nebulosos, desconhecidos por eles, do Egrégio Tribunal, e mais ainda por mim, mero personagem de uma alucinação jurídica. O emissário pediu apenas para escrever “ciente” e assinar. Resolvi então usar o pequeno espaço abaixo do texto para expor minha suspeita sobre a possibilidade daquilo não passar de um equívoco. “Não consigo entender absolutamente nada sobre o processo em questão e muito menos porque me escolheram para julgá-lo”, escrevi. “O senhor não deveria ter feito isso”, repreendeu-me o enviado, entregando-me outra cópia do documento, onde coloquei “ciente” e assinei, sem resistência, quase me sentindo culpado por atrasar o andamento do processo.

Não restou outra saída. Resolvi trabalhar duro em cima daquelas abstrações, reproduzindo outras abstrações, citando autores, literários e jurídicos, e salientando que o réu em questão, lembrado vagamente no processo, era inteiramente inocente do crime que não lhe era imputado.  A Justiça, enfim, fora estava feita.



terça-feira, 30 de outubro de 2012

Liga das leitoras




Quando começou a escrever em jornal seu tema era o comportamento dos jovens. A partir dos anos 80, passou por diversas etapas, dos yuppies aos grunges, descreveu os góticos numa matéria que deu chamada na primeira página, entrou no universo punk paulistano, mas um dia cansou dessa besteira toda. Agora escreve para dentro, o que se passa nas tripas e no cérebro, pensamentos alheios à moda, às vezes sexo, como vontade e representação, e está particularmente interessado na morte. Não está à beira da morte. Apenas quer investir no precipício humano e, a partir desse ponto tornar-se escritor dos bons. Não é ainda conhecido do grande público, talvez nunca seja, embora tenha lançado um livro sobre um moribundo em estado de prestação de contas sobre um passado de aventuras e culpas. Vendeu 400 exemplares.

Mesmo assim, o jovem escritor sente-se quase pronto, quase porque resta a dúvida entre ser um dos mais vendidos ou um dos mais idolatrados por uma minoria letrada. Caso escolha o primeiro caso, teria inúmeras vantagens, entre elas a possibilidade de vender os direitos para a TV, ser reconhecido na rua, etc. O inconveniente: silêncio dos suplementos literários sobre sua obra. No fundo não queria ser fácil nem difícil, nem maldito nem midiático e não queria as glórias depois de morto ou, pior ainda, ser ignorado depois de morto.

O que move a alma humana a ilusões dessa natureza? A primeira é a vontade de fazer, a segunda é a vaidade – sonha com elogios de seus pares – e a terceira, no caso dele, receber alguma a atenção do sexo oposto em termos de amor e sexo. Gosta de mulheres e literatura, nesta ordem, e usa o texto para chegar a corações femininos mais sensíveis. Descobriu também o efeito de entrar numa festinha e ganhar olhares diferenciados. A liga das leitoras abriga moças bonitas, desfazendo o preconceito de que só as feias leem. Outra descoberta.

Para manter a chama acesa entre as leitoras, é preciso uma produção constante em blogs e, vez por outra, a transformação de alguma musa em personagem esperta, bem-sucedida e cheia de referências. Elas gostam, ele sabe, e segue a fórmula. O objetivo prático da atividade, no entanto, é camuflado por explicações mais nobres sobre o ato de escrever. Mesmo o que já foi dito pega bem quando oportunamente citado e ele cria para si uma falsa aura de espírito livre e doído, obviamente azeitado por fina ironia e uma dose discreta de niilismo. Tem quase 400 leitoras fixas – talvez as mesmas que compraram seu livro – e insiste na Internet, mesmo sabendo que o território não é digno dos grandes escritores.

Uma vez ou outra se deixa contaminar sinceramente pela incredulidade e o desânimo. Nesses momentos sente-se pequeno, deprimido e alheio. Na última semana esteve preocupado com seu próprio estado ao ler sobre a relação entre criatividade e loucura. Nenhuma novidade, mas ficou preocupado. Platão não via diferença entre a irracionalidade dos loucos e a dos artistas. Em 1891, Cesare Lombroso achava que o ato de criar era uma manifestação patológica. Agora vêm com isso de novo.

Mas são dores que passam rapidamente, sempre, ele deixa pra lá. Logo, volta ao seu mundo, cortejando as leitoras, visitando partes íntimas do universo feminino, no sentido figurado e literal, e não esconde que precisa de carinho e proteção. O sexo é colateral. Hora de aproveitar sensações físicas e uma espécie de amor tão passageiro quanto sincero. Não passa por sua cabeça qualquer imagem aviltante em relação às mulheres e se martiriza quando deixa algumas delas para trás. Poderia ser mais atormentado e recluso, mas se algum desespero toca sua alma, quando sente o desprezo dos críticos por suas páginas, prefere se aninhar no colo de uma leitora - e chorar um pouquinho.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Ansiedade





Então, o momento atual remete ao momento seguinte, antes de ser absorvido por inteiro agora, valendo esta ansiosa agonia para fatos mais relevantes - amor, vida e morte. Apaixonado, previne-se contra a separação iminente, no emprego faz planos para a demissão a qualquer hora e mesmo fisicamente sadio vive sobressaltado pelo fim. Espera por copas do mundo, carnavais e verões e sente-se contrariado por não achar nada demais quando o grande dia chega. Só tem pensamentos para situações seguintes, e eis o futuro atrapalhando o presente e o passado.

Está carregando o que virá em sua história, enquanto tenta explicar como funciona o que sente, quase sem prazer, embora a atividade da escrita seja a única em      que se detém e presta atenção, livre da ansiedade.  É um caso clínico e existencial e também um caso literário. Seus textos começam por impulso, sem nada na cabeça, e ele espera que surja do nada na cabeça um pedaço de ideia, sobre si ou outros, e o passo seguinte é dispor esse pensamento em comparação com alguma coisa real, as condições do tempo ou uma mulher, por exemplo, e em seguida envolve tudo numa situação, num cenário, e dá voz aos personagens, descreve o ambiente, mas não perde tempo com muito paisagismo, pois chateia o leitor.

Normalmente os personagens caminham em direção a um final já planejado, correm sobre um roteiro, seguem um destino. Não é o caso dele. O texto só terá o momento presente. Amanhã pode ser diferente – outro rumo, outra prosa - e ele e seus fantasmas não têm um mapa. Só a estremeção inicial, transformada aos poucos em conceito, num jeito de encaixar as palavras ou numa confusão sem pé nem cabeça. Ele acumulou influência a ermo, sem método, deu nisso, mas segue adiante.

Ocorre então um problema, há personagens vagando na periferia da história, sem motivo, sem o atalho para entrar no enredo e ele tem certeza que eles devem entrar, não sabe por onde e quando, se no próximo parágrafo, daqui a dez páginas, sentirá um prenúncio. Evita provocar um encontro casual, no meio da rua, entre o pivô do enredo e o coadjuvante, vivente noutro enredo, de segunda classe. Arruma uma junção verossímil ou fantástica, contanto que seja metricamente interessante, com ritmo e ironia, se for o caso. Divaga. Era bom que assim fosse assim na vida real.


Se não consegue, tenta de novo, espera um impulso, apela aos seres rastejantes de Dostoievski e de todos os doentes da literatura. Há um imenso vazio a ser preenchido e ele vai com calma, toda calma que falta ao curso de seu dia.

domingo, 14 de outubro de 2012

Roteiro



E ouvia na noite escura uma voz saliente no beco, chamando, vem cá, ele foi, e encontraria a mesma mulher de cinco anos atrás, bem diferente, olhar de olhos brilhantes no breu e só quando ela chegou perto do poste, a luz iluminou um vestido vermelho, curto, e a maquiagem pesada. Faz uns vinte anos que ela saiu para correr esses pontos da cidade, vendo a clientela ser reduzida à medida da ação do tempo no corpo. Ainda um sinal de antes, como o fim da perna, o mocotó, mas o rosto tinha sido bastante sacrificado pelas ruas.

Era a mais bela poeta do Recife, nos anos 80, e estava agora em outra atividade, em São Paulo, catando trocados para se manter de pé. Ela sempre imaginou a vida como um poema, mais precisamente o poema em que descrevia um caldo, quase um oceano formado por este caldo, cujo interior tinha traços e círculos. Cada traço era um problema e quando um deles se resolvia, por empenho dela ou por si próprio, curvava-se, formando um circulo. Em 2012 só havia traços de círculos desfeitos e novos traços chegando a cada dia. No poema, os traçinhos e círculos não eram vistos a olho nu – só no microscópio, como num exame de sangue.

Não era o primeiro encontro nessas condições. Há uns dez anos ele esteve com ela, por acaso, numa boate de stripers.  Comemorar o aniversário, com amigos, e de repente subiu ao palco a número cinco. Foi perfeita até ser percebida. Ele também se assustou, mas resolveu tirar proveito da cena, simplesmente deu um risinho cúmplice e logo, logo ela estava sentada à mesa, bastante envergonhada, tentando dar um traço artístico àquela mudança de vida tão brusca. “Quero experimentar tudo”, disse ela, informando que não deixara de escrever e o tema era um mundo inteiramente novo, consistentemente erótico, conforme sentenciou. Não deu muito certo. Ela terminou indo dormir com ele, e no quarto e sala ela derramou-se, chorou a noite inteira, com intervalos para beber.

Entre goles de vodka, recitaram poemas e prosas, diante da TV sem som e era mais ou menos assim o começo do roteiro, pois ele seguia, como terceira pessoa, os passos de Grahan Greene, seu ídolo, em o Terceiro Homem. Green achava difícil, senão impossível, construir uma história para um filme, com seu ambiente e atmosfera, sem conceber antes um livro, pois o ato inicial da criação em forma de roteiro poderia tornar o enredo muito enxuto e insípido. Então pensou num livro inteiro sobre ela, narrando o que aconteceu de fato e inventando outras partes.

História dividida em duas partes. O primeiro e o segundo encontro, sendo que o segundo, na sequência do filme, é o primeiro. Tempo passado, mas como se fosse presente. Ela está em casa com ele, bebendo vodka, chorando e recitando poemas. Vez por outra se justifica, ataca o sistema e diz que seus anos de prostituição não foram inteiramente perdidos

Já a primeira vez, que vale como última, a situação será diferente, não haverá mais desculpas, motivações, choro ou poemas. Ela o encontrará, sob a luz do poste, e apenas dirá, meio amarga, C'est la vie, e caso ele não se conforme, queira saber o que houve, ela repetirá, antes de sair de quadro,  C'est la vie. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Formato cético para o sobrenatural




Se de repente ele se visse confrontado com explicações diferentes dos seus conceitos, com todas as evidências, mudaria de lado na mesma hora, mas constrangido e a contragosto. Seria o caso de lhe provarem a existência de um determinismo, um propósito em todos os atos humanos e no movimento dos astros. Ele, um cético, cederia. Imediatamente iria atrás de um modelito teórico, agora de cunho religioso, para enquadrar o problema do seu jeito. O autor entraria em nova fase intelectual, sempre do lado da verdade, e acima de tudo porque se uma coisa é assim, não há por que dizer que não é.

Então, diante de um acontecimento transcendental, ele tentará uma adaptação a tudo aquilo, sem perder o principal, a razão. Apela à razão para explicar a irracionalidade, não sabe se é possível, pois se lhe aparece um fantasma, por exemplo, a própria memória, construída a partir de conceitos racionais, perderá o sentido. Uma aporrinhação, sem dúvida. Toda bibliografia irá embora e será substituída por situações que ele não domina. Cederia para viver, mas viveria em posição secundária diante de pessoas que sempre acreditaram nessas coisas.

A salvação viria pelo amor à forma e descreveria o Paraíso recém-apresentado de um jeitinho seco, poucas palavras, comparações capazes de resumir um parágrafo de paisagismos. Seria econômico na forma, desprezando aquele conteúdo implausível, e cheio de clichês religiosos. Sim, porque todos os delírios da religião estariam ao dispor, incluindo o Paraíso, a vida eterna e o inferno, mas em seu texto sairia com outra sonoridade e ritmo, sem enfeites, como se uma montanha cheia de cataratas fosse apenas uma pedra molhada. Talvez convencesse os donos desses absurdos transformados em realidade, ou coisa que o valha, que estava certo de seu modelo formal, embora eles, os donos da verdade, sejam absolutos em conteúdo. O mundo, enfim, não era como ele pensava. Está ali Deus, sentadinho em seu trono, para atestar que tudo é exatamente igual à descrição dos livros sagrados, assim como também existe vida depois da morte, no Éden ou nas fornalhas do Diabo.

Nunca acreditou nisso, e ainda conta com a possibilidade de um sonho ou alucinação. Seria uma peça pregada pelo inconsciente? Supondo um acontecimento de tal majestade, suas certezas serão pó, ultrapassadas, e dessa maneira passará à Eternidade como um equívoco. Nesse canavial metafísico, encontrará velhos amigos católicos, com cara solene e grave, sempre repetindo “eu não disse?” Ainda aturdido, ele verá os anjos, e adiante, antigas certezas a escorrer pelo Jordão ou outro curso d’água sagrado.

Chego aqui, com minhas explicações circulares, certo de não ter sido claro sobre o personagem em questão. Recapitulo, pois, alguns pontos acima, ou tento resumir, iniciativas pouco aceitáveis neste mundo da escrita, ainda com risco de provocar a interrupção da leitura. Adiante. As conjecturas de um cético confrontado com o sobrenatural poderiam dar um romance católico. O autor, recém convertido por forca de evidências, passa a descrever sua nova situação sob a linguagem típica de um cético cínico, como o Ivan Lessa reportando uma viagem ao Reino dos Céus. Ele permanece cético, de algum modo, cético na forma. Mesmo espantado, não quer um texto derramado, laudatório, exclamativo. Não, basta a conversão, já deu, agora é levar a vida diante de Deus, bem pertinho dele, como se estivesse com um novo roomate.

Tudo que pensou e pensava se refere ao ato de escrever, disse ele, em voz alta, diante do Senhor, e pouco importava se estava errado, antes, se conseguisse reproduzir seus anos de erro de forma atraente para o leitor. Ficção é ficção, não precisa se contentar com a nova ordem provocada pela prova inelutável da existência de Deus. Usaria a realidade como fantasia e seus tempos de incréu como realidade, e vice-versa, enveredando pela literatura fantástica, mas com armas da boa prosa.

Ocorre que o novo mundo não trouxe grandes surpresas. Com o tempo, passou a conviver com males terrenos, a indisposição física junto à impaciência, cansaço e ansiedade, remédios de laboratórios, quando poderia reivindicar um milagre.

O mundo revelado virou transtorno, e ali, na frente do Senhor, ele entregou os pontos, embora tudo fosse ainda uma hipótese.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Edifícios duros, mulheres macias e a cidade sem lei


Arquitetura e mulheres são as duas coisas mais interessantes que uma cidade pode oferecer ao visitante era o que anunciava o estranho cartaz pregado na estação, logo na chegada, alardeando a fama do município nesses dois itens, mulheres e arquitetura. Pode parecer mentira descer do trem e em seguida encontrar a poucos metros dos trilhos um manancial de cintilantes damas, jovens e mais velhas, todas elegantes, vestidas para uma festa, só que era um dia comum e elas sempre foram assim, como se estivessem num filme. Mais na frente, diante do táxi, ele também divisou os prédios, representando estilos de diversas eras arquitetônicas, com destaque para o que antigamente chamávamos de pós-moderno.

A primeira impressão persistiu por décadas. Edifícios duros, mulheres macias, céu azul, temperatura agradável, mas faltava algo, tinha certeza, era a própria cidade, faltando a si mesma, enfim, um ambiente falso. Ele chegou a pensar num cenário. Não seria tudo aquilo um imenso tapume desenhado, em 3D, iludindo os sentidos? Estava em seu destino, não sabia se de fato ou de alucinação, mas estava. Saiu da província natal por que estava difícil ficar num lugar onde algumas pessoas levam em conta a possibilidade de o judiciário ser injusto com elas. Muitos, no entanto, permaneceram lá. O comportamento desses animais acuados é feio, reticente, e diante de um enviado da majestade, agem num misto de intranquilidade e subserviência. Ele não aceitou aquilo, foi embora.

Mas estava estranho, sempre foi, e embora fosse estranho ele persistiu na Cidade das Mulheres por mais uns dias, e depois anos, sempre sentindo falta de alguma coisa – e excesso de outras. A comida contemporânea embalada a vácuo, por exemplo, quase não tinha gosto. O tempo passou rápido demais, meses pareciam semanas, e ele envelheceu sem conhecer direito as beldades desta terra e sem saber explicar porque elas se parecem tanto umas com as outras, do jeito de falar ao jeito de serem belas, tornando a própria beleza uma situação permanente e, com o passar dos dias, absolutamente tediosa.

Alguém a esperar um fecho e ele continuou perdido em sensações desagradáveis num universo desejado por uns setenta por cento da população masculina economicamente ativa. Havia homens, mas invisíveis, às vezes como nas cidades invisíveis. Eram insignificantes, coadjuvantes das mulheres mais lindas e frias do Planeta. Todas agiam como eficientes funcionárias, imperturbáveis com ensaiada amabilidade.

- O que o senhor deseja? – perguntavam sempre e reagiam sem espanto se ele dissesse, por exemplo, “sexo”. Imediatamente tudo seria providenciado, num esquema drive thru, e o novo morador poderia escolher qualquer uma delas, classificadas por tipo físico, especialidade e QI. No princípio teve espasmos feministas, não era possível uma mulher submeter-se a tamanha degradação. Com o tempo, no entanto, descobriu que os modos e costumes locais em nada se assemelhavam à antiga prostituição, não havia um drama moral envolvido com o serviço de sexo, pelo contrário, era uma vocação municipal, um negócio a disputar seu espaço com a arquitetura, também exercida por mulheres. Ele gostava das tenistas, uma fantasia antiga, mais pelas saínhas, subindo nos saques, coxa acima, porque o jogo em si ele achava chato. Até das tenistas ele enjoou. Também enjoou da permanente construção de novos prédios envidraçados e cheios de referências.

O arquiteto em seu delírio – sim, claro, ele é arquiteto – fazia flexões de dia e reflexões à noite, levando o quase sempre a pensar em sexo e arquitetura e o porquê de ter se enfastiado das duas razões de sua vida. Desejo por sexo não se sacia, nunca, e por isso a natureza dá um jeito de enfraquecer o sujeito na velhice para tentar aplacar a vontade. Ocorre que o cérebro do arquiteto, mesmo no final da vida, era povoado das mais intensas sensações de cunho sexual. Também estavam lá os edifícios que planejou e nunca foram construídos, ou seja, a paisagem lá fora era igual à paisagem interna. Poderia, neste caso, estar apenas pensando, sonhando ou alucinado por um segundo efeito retardado de todas as drogas que usou durante mais de 40 anos.

Não era provável. Seu passado, com fotos e poucos amigos, estava registrado nas duas cidades: a cidade sem lei, onde nasceu, e a das mulheres, onde se encontra, há muitos anos. Não compreendia porque rabiscou tantas plantas e só surgiam edificações desenhadas pelas arquitetas e por que recebia um alto salário para ver sua produção jogada no lixo. Havia conforto, dinheiro e saúde. O que faltava? Faltava alguma referência mais sólida de outros séculos, um prédio não reciclado, autêntico, como o Martinelli. No âmbito dos excessos, só aquela art decó misturada com futurismo, branco em toda parte e uma assepsia danada. Faltava ainda vida num sentido que ele só conhecera em sua cidade sem lei, na época que tinha alguma, onde cada dia era diferente, mesmo em relação às edificações e às mulheres.

Deu saudades da menina de mini-saia jeans e alpargatas, arrastando-se na praia, vendo a lua, conversando sobre coisas sobre as quais ele discordava, mas dizia que concordava porque ela falava de uma maneira muito linda, muito doce. Depois umas cervejinhas, a fuga para o apartamento de uma amiga, a noite mais bacana do mundo, cheia de aventuras e palpitações. Imagens e sensações retornando, aos poucos: a luz incidindo sobre ruas sem calçamento, o cheiro de suor de moreninhas brejeiras, maresia, casarões do século XIX, frutas tropicais, potes de doce...  

Aí ele acordou na cidade sem lei, mas tudo tinha acontecido de verdade.