terça-feira, 19 de maio de 2015

Impossibilidade




A voz que não me pertence pergunta se somos nós ou são outros aqueles que estão adiante, muito parecidos comigo, talvez iguais, pois chegamos aqui há três dias, eu e a voz, ou já perdi a conta como perdi parte da memória e não sei se a voz está certa ou errada ao sugerir a ausência de limites entre nós e eles, entre corpo e reflexo, entre reflexo e outro reflexo, e é provável uma sequência disso, ad aeternum, sem limites, sem tempo, num sonho, numa real, numa imitação de real ou depois de tudo. Aí ela bateu à porta e perguntou quem está ali dentro e eu respondi não sei. 

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Bloco de notas 2



Na semana passada, um pastor quis repetir minha façanha mais conhecida. Tentou andar sobre as águas e terminou morrendo afogado. Quem mandou?  Não é assim, não, meu filho. Aquilo deu trabalho, uma produção enorme, como se veria depois em Mateus 14:22-33, Marcos 6:45-52 e João 6:16-21. Na certa o pastor pretendia superar minha marca do Mar da Galileia, mas não se trata livro do Recordes; se trata da Bíblia, o livrão sagrado. Sem contar que ainda salvei a vida Pedro. Não sei por que ele pulou do barco para me resgatar, quando o negócio era o contrário. Vim para salvar todo mundo. Pedro não sabia nadar e muito menos andar sobre as águas. O pastor incorreu no mesmo erro e deixei-o afundar. Fazer o que fiz não é questão de fé; é questão de berço.

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Quando acabar a privacidade, dentro e fora da Internet, nosso jogo será de esconde-esconde. Busca por buracos sem sinal, tocas de urso, cavernas e cidades-fantasma. Ninguém irá atrás da fama, pois o anonimato será uma graça alcançada. Apagaremos tudo: e-mails, blogs e mensagens; esqueceremos as senhas. Nada disso vai adiantar.

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O séquito da Cinderela está de sobreaviso. Hora de tirar a princesinha do recinto. Depois da meia noite ela se transforma, vira outra, personalidade inadequada e inconveniente. Quando uma vez foi deixada, bebeu na boca da garrafa, subiu na mesa e levantou a saia. Muita gente acha que ela estraga a festa; outros acham que ela é a festa. Sem a plateia, Cinderela sofre, com uma dor funda no peito e vontade de morrer. Tem tentado vários médicos e remédios, mas até agora nenhum resultado.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Bloco de notas


Esfolados ao fim de mais uma, quase exaustos, mas ainda dispostos para outra sequência, já era noite e nenhum percebeu. Sumiu o fio de luz saindo do furo da cortina e mesmo assim seguiram adiante pela simples razão de que estava ótimo. Todos os compromissos foram adiados naturalmente apenas com o passar do tempo entre flexões e o movimento dos líquidos.  Aproveitamento total da vida curta, sentidos acesos, amanhã será o desconhecido e, que bom, só foi mais um dia. Tomaram caminhos opostos depois do breve Motel Paraíso, mas não perderam o contato. Às vezes passavam anos sem se falar; às vezes passavam semanas trancados no quarto.

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As redes sociais mudaram desde sua partida, em agosto, mas nem tanto. Agora, o Facebook também é uma teia de situações reais. Saiu das telas para bares climatizados, azuis e brancos, em todo o mundo, das Ilhas Virgens a Ouricuri. Nessas casas de bebidas à farta e alegria a todo custo, as pessoas dizem na cara o que estão pensando, dão cutucadas de verdade, estabelecem relacionamentos seríssimos e fazem selfies para publicar no facebook virtual, que ainda permanece como regulador de nossos usos e costumes.

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Vem morar comigo. Faremos um casamento tranquilo, sem sobressaltos e ciúmes. Não precisa ter sexo, caso você não queira. Caso você queira, vamos pensar. A esta altura não queremos grandes emoções. Infelizmente fazem mal à saúde. Nem sinto tanta falta de doce de leite, sinto mais falta de ficar emocionado, mas passa se estivermos juntos. Então, nosso casamento será assim, sem emoções, por ordem médica, pois qualquer desejo é danoso à saúde; à nossa, principalmente.

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O W é uma letra hostil e desajeitada. Espeta, não se deixa acariciar e alguém caído do céu poderia enfiar-se em suas pontas e morrer cravado por esses punhais do alfabeto. O W é um M como tartaruga virada de costas, esperneando, louca para voltar a ser M.