Quer se matar, se mate, mas já pensou se
você se mata e acorda num lugar que nem tem remédio pra dormir? Pense nisso e você vai querer se matar de
novo quando chegar lá. Morre e dá de cara com outro lugar pior e assim por
diante. Veja, por exemplo: você deve duzentos mil, não tem como pagar e por
isso quer fugir dos credores de uma forma que considera eficiente e definitiva.
Toma a cartela de remédios ou pula do prédio, sonhando com o nada, o fim da
encheção de saco deste mundo, e cai em outro onde deve quatrocentos, com
cobradores ainda mais ferozes e decididos. Como já se matou uma vez, fica mais
fácil e imagina que a solução será morrer novamente. Morre e a dívida vai
aumentando. À medida que mais se mata, mas a dívida cresce. (João Coelho,
conselheiro de investimentos).
João Saraiva já estava cansado de escrever
histórias que ninguém lia. A desgraça de sempre, fome e falta de rumo, além de
elementos químicos gosmentos que ele enfiava no enredo para dar um toque de
ficção científica. A mistura não
funcionava direito porque os desvalidos de seus contos eram os mesmos que já
estavam lá foram e o leitor não queria tanta falta de esperança, chega, bastam
as reportagens, cujos assuntos em pauta naqueles dias eram o fim dos sistemas
de energia elétrica e comunicação. Ainda havia luz e internet, mas não iria
demorar para cair tudo. João Saraiva tinha prevenido. Só que a crítica não
soube; ninguém soube. Agora precisava de um veio novo, menos niilista, coisa
difícil de fazer por falta de verossimilhança com a situação vigente. (João
Saraiva, por ele mesmo).
A encomenda é sobre uma estação espacial
prestes a cair na Terra. Só que não há mais foguetes para buscar os tripulantes
por causa de uma gigantesca crise econômica global. A bordo, russos,
norte-americanos e chineses discutem a respeito de quase tudo, com destaque
para geopolítica, sexo e morte. Pensei em colocar um canadense para tentar
convencer os demais a encontrar uma forma de voltar para casa a partir dos
próprios recursos da estação. Pelo menos nessa parte, cópia deslavada de ”O Voo
da Fênix” (1965), de Robert Aldrich, cujo elenco conta com James Stewart e,
claro, Ernest Borgnine, ator de dez entre dez filmes desse tipo naquela época.
A diferença é que o espaço substitui o Saara e a M17 – ou qualquer coisa por aí
- substitui o velho Fairchild C-82A Packet. Primeira ideia: para não ficar
igual ao filme de Aldrich, o tripulante canadense não consegue convencer os
demais e eles morrem ao reentrar na atmosfera. Categoria: ação e fracasso.
(Pedro, roteirista)
Eu só queria uma lata bem equipada, com
dechavador, sedas de variadas procedências, um palito daqueles de manicure
(para pilar, ou apilar, como se dizia antigamente); o certo é que comecei a discutir
seriamente comigo mesma as diferenças entre antes e agora. As coisas que se
foram - a lata, por exemplo - e a esbravejante incerteza de todos os lados dos
dias de hoje; ninguém se entende nem se cala no seu canto, com sua lata, como
eu fazia há muito tempo quando tive o prazer de possuir uma lata com todos os
utensílios necessários. Eu estava entre as pessoas que queriam mudar o mundo,
contando que me deixassem quietinha, num cantinho. Assim passei a minha juventude, apesar de
tudo, muito boa. Hoje, sou uma velha
perplexa com medo de ser mal interpretada, mas ainda mais assustada com o que
estou vendo. Tenho receio de escrever
essas coisas, embora o mais provável seja que ninguém leia. Mesmo assim, fique
claro que não estou falando de um caso ou outro, desta ou daquela situação em
particular; é mais ou menos sobre tudo. Bom. Acabei de fumar um e estou com tendência
a tornar as coisas muito amplas. (Lúcia, funcionária pública).
Estou de banho tomado e quase quite com o
Senhor. Sei que estou pagando, já dei
tudo que tenho e ainda devo mais, pois cometi todas as barbaridades, pior que o
Senhor no Evangelho Segundo Lucas, ordenando a matança, embora com razão,
levando em conta que as vontades de Deus são insondáveis. Vontade, não,
princípio, meio e fim de tudo, pois é Aquele que reina no cheio e no vazio. O
pior que usei do Senhor a norma seguinte: como de trata de Alguém cujo
propósito desconhecemos, como saber se o que estou fazendo e acontecendo vai ou
não de encontro a esses propósitos? Um meio de se livrar de uma acusação
questionando a essência do projeto. Não deu certo. O pastor me esclareceu tudo
e houve uma solução conciliadora, aceita pelas partes: o perdão. Não é um
caminho curto. Por isso estou aqui, catando caquinhos no lixo, à espera da hora
do culto. (Reginaldo, morador de rua, evangélico).