Não podia
emitir um sinal, por questões técnicas insondáveis, mas se não existia mais também
não estava inteiramente fora de si, depois de morto, pois sentia e pensava,
inclusive sobre tal paradoxo, e mesmo que se animasse a mandar notícias aos
vivos, revelar sua grande descoberta, não sabia como fazê-lo. Não havia ninguém
para dar informações naquela conjuntura pós-túmulo.
Poderia ter
sido pior, um apag ão
geral, nenhuma memória, diluição absoluta. Não. O homem estava ciente, operando
o conflito, embora sem saber onde estava e sem poder se mexer. Não havia o que
mexer nesse espaço e tempo só pensados. Lugarzinho difícil, claro, mas ainda
assim bem melhor do que nada.
A
primeira sensação do nosso personagem foi a de ter fumado um baseado muito
forte, daqueles que deixam o sujeito sem iniciativa, muito embora satisfeito e
confortável. As contradições se reviravam em sua mente e imagens sobrepostas
vinham-lhe como ondas gigantes, sem, contudo, produzir exasperação ou medo. A
novidade não abalava sua doce viagem em direção a sabe-se lá o quê. Nesses
casos, como é demais conhecido, não se pode calcular se o negócio durou um segundo
ou uma era, se ainda dura ou se já acabou.
No meio
dessa experiência, inédita por natureza, ele não sabia o que fazer. Podia resolver
tomar uma providência, como falar com a família, e logo descobria que não
adiantava. Deixou pra lá. Naquelas condições não havia meios disponíveis para ações
e acontecimentos. Se havia, seria mais um mistério, posterior ao mistério da
morte.
Pensava,
por exemplo: uma história começa e se desenvolve num certo tempo e os
personagens se deslocam no espaço. Para ele, tal mobilidade não existia. Mesmo
assim, era possível tirar algumas conclusões, nem sempre de acordo com a lógica, cuja existência
parecia ter sido abolida em troca de outros mecanismos de raciocínio.
Algumas
sensações eram interessantes. Quando queria voltava aos pontos altos da vida,
revivendo detalhes, revendo pessoas, de preferência mulheres, dispondo da
vantagem de incrementar as histórias com o que deixou de fazer para torná-las
melhores. Nesse ponto, a livre adaptação de lembranças – fatos e ficção – tornou-se uma diversão e tanto. Um livro ganhava vida, e vice-versa, e ele não
deixou Adélia, como ocorreu, de verdade. Foram-se arrependimentos, culpas, expedientes e contas a pagar. Tudo em
altíssima definição.
Dúvidas
persistiam, no entanto. Sua condição seria um arranjo provisório, enquanto as
coisas se ajeitavam em termos de eternidade ou de limite, ou o mecanismo tinha um funcionamento
aleatório? No fundo eram perguntas primárias para respostas talvez
inexistentes. Além disso, até um narrador onisciente estaria chutando se
dissesse que é assim ou assado.
Apesar do
evento espetacular, a mente dele não realizava ligações entre aquilo tudo e os
ensinamentos das religiões. Não era reencarnação nem vida eterna. Não estava no
paraíso ou no inferno. Sentia-se dentro de um procedimento natural post-mortem,
como fora a vida. Obviamente estava surpreso, mas mantinha a tranquilidade. “E
isso? Então, tá“.