sexta-feira, 20 de junho de 2014

O que veio depois



Não podia emitir um sinal, por questões técnicas insondáveis, mas se não existia mais também não estava inteiramente fora de si, depois de morto, pois sentia e pensava, inclusive sobre tal paradoxo, e mesmo que se animasse a mandar notícias aos vivos, revelar sua grande descoberta, não sabia como fazê-lo. Não havia ninguém para dar informações naquela conjuntura pós-túmulo.

Poderia ter sido pior, um apagaao definitivoido pior, um apagutando sobre o nada.  is sentia e pensava, inclusive sobre tal paradoxo, e mesmo que se animasse ão geral, nenhuma memória, diluição absoluta. Não. O homem estava ciente, operando o conflito, embora sem saber onde estava e sem poder se mexer. Não havia o que mexer nesse espaço e tempo só pensados. Lugarzinho difícil, claro, mas ainda assim bem melhor do que nada.  

A primeira sensação do nosso personagem foi a de ter fumado um baseado muito forte, daqueles que deixam o sujeito sem iniciativa, muito embora satisfeito e confortável. As contradições se reviravam em sua mente e imagens sobrepostas vinham-lhe como ondas gigantes, sem, contudo, produzir exasperação ou medo. A novidade não abalava sua doce viagem em direção a sabe-se lá o quê. Nesses casos, como é demais conhecido, não se pode calcular se o negócio durou um segundo ou uma era, se ainda dura ou se já acabou.

No meio dessa experiência, inédita por natureza, ele não sabia o que fazer. Podia resolver tomar uma providência, como falar com a família, e logo descobria que não adiantava. Deixou pra lá. Naquelas condições não havia meios disponíveis para ações e acontecimentos. Se havia, seria mais um mistério, posterior ao mistério da morte.

Pensava, por exemplo: uma história começa e se desenvolve num certo tempo e os personagens se deslocam no espaço. Para ele, tal mobilidade não existia. Mesmo assim, era possível tirar algumas conclusões, nem sempre  de acordo com a lógica, cuja existência parecia ter sido abolida em troca de outros mecanismos de raciocínio.

Algumas sensações eram interessantes. Quando queria voltava aos pontos altos da vida, revivendo detalhes, revendo pessoas, de preferência mulheres, dispondo da vantagem de incrementar as histórias com o que deixou de fazer para torná-las melhores. Nesse ponto, a livre adaptação de lembranças – fatos e ficção –  tornou-se uma diversão e tanto.  Um livro ganhava vida, e vice-versa, e ele não deixou Adélia, como ocorreu, de verdade. Foram-se arrependimentos,  culpas, expedientes e contas a pagar. Tudo em altíssima definição.

Dúvidas persistiam, no entanto. Sua condição seria um arranjo provisório, enquanto as coisas se ajeitavam em termos de eternidade ou de limite,  ou o mecanismo tinha um funcionamento aleatório? No fundo eram perguntas primárias para respostas talvez inexistentes. Além disso, até um narrador onisciente estaria chutando se dissesse que é assim ou assado. 


Apesar do evento espetacular, a mente dele não realizava ligações entre aquilo tudo e os ensinamentos das religiões. Não era reencarnação nem vida eterna. Não estava no paraíso ou no inferno. Sentia-se dentro de um procedimento natural post-mortem, como fora a vida. Obviamente estava surpreso, mas mantinha a tranquilidade. “E isso?  Então, tá“.

sábado, 14 de junho de 2014

O mundo visto de baixo



Coisas sem valor ganham importância quando se está, como estou, numa situação de penúria, sem um tostão no bolso, mas com uma mala velha onde guardo latinhas,  jornais de ontem, pedaços de livros, garrafas PET, uma ponta de lápis. Minha principal atividade é a literatura; a outra é pedir esmolas. Nem por isso escrevo sobre miseráveis, meus pares da rua. Escrevo sobre sobre as pessoas que me dão moedas. Escrevo sobre os que passam em carros com tração nas quatro rodas, sobre aquela festa que brilha distante no casarão da esquina, sobre moças louras da Oscar Freire, onde faço ponto. Não tenho meios para publicar nem incentivos do setor público ou privado. Pouco importa. Escrevo por escrever. Minha verdadeira invenção é ser quem não sou, pois me incluo nas histórias, feito um Proust rastaquera, arrastando minhas asas decaídas para além dos restos da lixeira – pelo menos no ramo da imaginação.

Não esperem revolta ou inveja. Nem lições políticas nem crítica social. proximidade e dela tiro proveitoximidade e dela tiro proveiro para minha obra. Simplesmente gosto da crônica de costumes da alta roda, tão distante de mim quanto um prato à la carte. Neste ponto, no ponto em que me encontro, a vida dessas pessoas compõe quase um quadro de ficção fantástica, com deuses capazes de conquistar grifes sagradas e prazeres de outra dimensão; um universo de viagens a Avignon e Aspen, haras, comida contemporânea, jatinhos e bucetas cheirosas. Não ligo para a fidelidade aos fatos. Monto minha mitologia dos ricos sem critério, a partir de informações esparsas, e uso o cotoco do lápis, sobre papel de embrulho, para descrever os verdeiros escolhidos de Deus.

Sentado na rua, observo tudo de baixo para cima. Às vezes só vejo a marca dos sapatos, o cerzido perfeito das calças, o cãozinho tosado a quinhetos reais. Em pé, minha visão se amplia e os sentidos se aguçam. Posso supor o conteúdo das sacolas e dos livros de arte, a qualidade dos tecidos e dos adereços; e posso ainda ficar a dois metros de peles imaculadas e de coxas rígidas saídas da academia. Respirando fundo, sinto o aroma Lancôme na atmosfera. Nossa sociedade propocia essa proximidade e dela tiro proveito para minha obra.

Sou o contrário do que deveria ser, mais existo; existo entre o abrigo dos retirantes e as lojas com prtodutos de Milão. Só que não entro no paradoxo e não vivo de comparações. Fujo das análises, embora fosse capaz de fazê-las, ou pense que sim. Nas minhas leituras retalhadas ou vindas do passada não há Lima Barreto nem Dickens, não há nada dessa espécie. Ando pelos cômodos devastados da cidade, entre homens estranhos e mal vestidos e grosseiros, como o Rique de Anatole France, mas os excelentes produtos dessa categoria não me interessam. Prefiro especular sobre os grandes salões iluminados, os jardins impecáveis e as roupas de baile. Não vejo nisso qualquer contradição e tiver alguma ninguém vai notar. Estou longe do olhar crítico dos cadernos literários e de leitores mais atentos. Os jornais são mais úteis nas noites de frio.

Então sigo, cumprindo meu papel e meu destino, ou o acaso, tanto faz, porque uma força qualquer empurra minha narrativa na direção oposta da mendicância, que exerço sem culpas, remorsos ou comoção. Trato do que vejo à distância e um pouco de observação já serve para umas linhas e uns suspiros, eivado de certa satisfação estética. Muito foi perdido nos últimos anos, deixei por aí, no mundo, mas não lamento, não choro, não sofro. Estou fadado a contar o que se passa do outro lado, sem preocupações exageradas com verossimilhança. Nem sei se queria estar lá, de fato, entre os nobres; a cadência atual me satisfaz, como o vício em drogas baratas satisfaz meus amigos esmolés, cuja desgraça não me causa piedade nem indiferença. Eles apenas fazem parte da convivência diária, trato todos com cortesia e humildade, mas eles são descartáveis na hora da escrita.

Também não vejo nessa arte algum valor que sirva à posteridade, a uma ocasional descoberta, mesmo póstuma, e não há sinais de voyerismo puro e simples, uma vez que só que tais situações só me servem por escrito. Uma perda de tempo, é certo, mas o que não é perda de tempo neste ponto em que me encontro? É uma perda de tempo já perdido, se for o caso, mas o importante mesmo é que causa certa satisfação à pequena audiência.

Nos fins de tarde, mesmo no frio, junto os amigos da mendicância – analfabetos, mas sensíveis – e recito para eles meus contos de fadas. Ouvem com atenção e sonham com Morangos Arnaud, belas mulheres e cobertas de cashmere.



quinta-feira, 5 de junho de 2014

No vácuo



Está tudo muito estranho porque o lado de dentro não existe mais e estamos do lado de fora, esperando instruções, não se sabe de quem nem quando virão nem temos ideia dessa ocorrência. Perdemos o senso, de direção e os outros, capazes nos guiar nem que seja a lugar nenhum. Portanto, aqui presos, nesse vácuo, torcemos por alguma coisa, qualquer uma, pois não suportamos ficar no estágio atual mais um segundo sequer, seja lá o que signifique um segundo em tal situação.

De algum lugar nos viemos. Podiamos  pisar no chão, sentir o ar, pegar nos objetos. As moças corriam atrasadas para o vestibular e nem ligavam para suas saias suspensas pelo vento;  os homens construíam estrada, alimentavam o gado e emitiam memorandos. Os carros circulavam. A vida era normal no lado de dentro. Ai veio não sei o quê, de repente, sem explicação, e as atividades foram suspensas, sem ordem expressa; suspensas naturalmente, assim como a tato, a visão e a fome também sumiram. Não precisamos desses sentidos agora, seja lá o que signifique agora.

Há especulações vindas do que resta de nós, como o pensamento, e podemos tentar um passo além das reminiscências, uma vez que não contamos com assuntos presentes. Não existe acontecimentos, exceto essa dúvida em nós, ou apenas em mim. Posso estar sozinho neste processo. Talvez possa chamar uma enfermneira

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Obituário – o homem dos começos



Era do pior tipo de escritor dos três enumerados por Schopenhauer em Parerga e Paralipomena, pois escrevia baseado em reminiscências ou a partir de livros alheios. Queria ser do tipo raro, movido apenas pelo pensamento puro, compondo cada parágrafo como uma sentença definitiva sobre o século e a vida. Não chegou nem perto. Ele escrevia por dinheiro umas reportagens existenciais, normalmente crivadas de descrição de paisagens  e personagens construídos com gente de carne e osso. Mantinha o projeto do livro imortal, mas enquanto isso ia levando a vida à base de impressões de viagens e coletâneas de pequenos contos.

Para a chamada literatura séria escreveu um romance com início delicioso, miolo sem graça e final inverossímil. Ficou conhecido como escritor de começos. No primeiro parágrafo tudo parecia se encaminhar para a apoteose, mas a apoteose estava somente ali mesmo e o resto era diluição, dispersão e tédio.

Não ser um escritor jovem também o entristecia. Não podia recomeçar. Sintomas clássicos que via nos velhos de sua infância sentia em si, aos 69 anos,  e pensava na diferença entre uma ocasião e outra, mergulhando num estágio em que até  a depressão já partira, deixando em seu lugar um monstro muito pior. Ficava ruminando problemas o tempo inteiro, negócios dele e dos outros, textos que não saíam do canto, e demonstrava impaciência contra a velocidade de tudo, contra Deus, contra os costumes, contra o pessoal do telemarketing. Tais aperreios também servia à dispersão.

Queria pelo menos ser reconhecido como língua ferina; ferina e densa, cheia de conteúdo, capaz de provocar certo medo na plateia, além de vasta curiosidade nas mulheres. Assim achava, e queria outro tipo fazer um tipo, fora esse de escritor de médio alcance, porque lidava com a imensa dificuldade de escolher palavras certas, as que batessem com situações e conceitos pensados. Sem isso não funcionava.

Tinha ainda o vício de estabelecer relações entre histórias, quando não havia relação nenhuma, a não ser  para ele, tomado pela mais interna das piadas, a que só serve ao autor. O exercício de escrever, no entanto, era  seu ganha pão, principalmente depois da criação das revistas de turismo literário, um negócio entre a subliteratura e o jornalismo, que apareceu por volta de 2016. Ele estava autorizado a enxertar personagens fictícios no texto, mas os de verdade saíam melhores. Escreveu um romance razoável, mas faz tempo.

Suas teorias sobre a literatura talvez fossem mais interessantes do que o texto literário. Não o que escreveu, mas o jeito de falar  das palavras, como forma e conteúdo, imaginando leitores que pudessem ver em determinada palavra um significado bem além do significado que foi pensada pelo autor. Era sua conversa quase única, mas boa de ouvir, por causa de certa melodia. Por isso, seus ouvintes se enrolavam nas explicações, de tão entretidos com o som e molejo da história. Não conseguiu passar isso para a escrita.

Também parecia conhecer tudo em profundidade e enganava bem nessa área. O segredo era construir na mente um parágrafo elegante sobre determinado tema - um  bom lead, como diriam os jornalistas – e quase certamente seus ouvintes iriam imaginar que, dali em diante, viria um discurso longo e filosófico. Que nada. Ele soltava uma frase a respeito de uma conversa e logo lançava outra para barrar a primeira. Só parava esse joguinho na hora da literatura que, de fato, dominava. Não era um especialista em todas as coisas; era um generalista de especialidades.


Então começou a escrever e sentiu uma dor forte no peito. Parou. Mas veio a segunda, a terceira e uma quarta mais forte e ele tombou diante de uma história ainda no início, passada em um pequeno hotel do Chile durante o terremoto. Excelente parágrafo inicial, como sempre. O resto não valia a pena.