quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O hóspede



Ele poderia morar no hotel pelo resto da vida. A impessoalidade era essencial à elaboração de um pensamento neutro, sem influências das coisas e odores da casa. Não queria recolhimento e solidão. Saia à noite, tinha amigos, eventualmente namorava. Amplamente sociável, usava boas frases no momento certo, bebia com moderação, barbeava-se cuidadosamente antes de adentrar ao lobby. Não estava ali cinematograficamente: garrafas vazias pelo chão, folhas rasgadas de romances mal começados e cheiro de cigarro. Não. O personagem, depois da aposentadoria precoce, escolheu o hotel pela razão mais pura: a combinação perfeita entre seu jeito de ser e o ambiente do quarto. O frigobar com suas necessidades sempre repostas, a arrumação diária, o comportamento discreto dos funcionários conseguiam deixá-lo livre para construir um mundo sem interferências. Sem rastros nem escombros.

Conheci o cara sábado à noite. No hotel. Não falou nada que revelasse características de quem passaria o resto da vida pegando a chave na portaria. Também não foi inventado a partir do nada. O modo de operar o cotidiano era a principal pista. Ao contrário dos demais hóspedes, ele não demonstrava qualquer sinal de afetação, por menor que fosse. Comportava-se como se estivesse em casa. Melhor: numa casa, com suas relíquias e lençóis retorcidos, jamais teria o desembaraço que estava a exibir naquele dia e nos dias seguintes. O inquilino do 510 amava o ambiente hoteleiro, com especial destaque para os canais a cabo, a cadeira verde-musgo e a dobradura das roupas de cama. A cada vez que voltava, sentia-se aliviado em não ter ali um passado. Tudo era solucionado de forma prática: livros lidos, eram vendidos ao sebo. Não havia o sentido da coleção. Nem pequenos objetos trazidos da rua, como o Cristo cafona que acendia, passavam mais de uma noite em seus aposentos. Iam ao lixo com os jornais de ontem, as garrafas de refrigerante e o papel higiênico usado.

Avançar mais um pouco em sua vida seria especulação, como está sendo um pouco, mas o homem do 510 não deixava dúvidas. O fato de morar ao lado de tantos desconhecidos, renovados diariamente, abria espaço para a construção daquela personalidade. Primeiro, trata-se de um cidadão sem culpas, embora tenha razões subjetivas para tê-las. Mas, concretamente, estava dentro dos parâmetros requeridos pelas regras sociais. Em suma, não havia cometido crimes e nunca pensou em cometê-los. Pelo contrário, era um típico cosmopolita civilizado, incapaz de furar uma fila ou de não devolver qualquer centavo aos Achados e Perdidos.

Esperei sinceramente que, ao longo da semana, sua máscara caísse. Aparecesse enfim abatido com a escolha, reconhecesse uma derrota qualquer ou simplesmente se atirasse do quinto andar. Não. O mesmo comportamento, certa alegria com a chegada de um ônibus de turistas estrangeiros. Parecia entender cada língua deste planeta e se divertia ao presenciar a felicidade de mocinhas croatas, o shortinho das alemãs, a piada do irlandês sobre o Brasil e a eterna insatisfação dos franceses em relação aos serviços das camareiras e à vida em geral. Jamais alguém teria no recesso de um lar tamanha variedade de seres a circular pelos corredores.

As diversões cotidianas, no entanto, apenas emolduravam sua existência. No quarto, tinha paz e sossego para pensar e escrever e construir um mundo particular sem o olhar de parentes. Mas tinha família, adorava pais e filhos, enviava e-mails constantes para a irmã do meio. Sexualmente, estava dentro dos padrões. Nenhuma anormalidade capaz de chamar a atenção dos outros – ou até da sua. Não freqüentava putas, não se masturbava em excesso, visitava as namoradas e poderia dormir fora de seu habitat, embora achasse ser mais confortável ter sempre à mão as toalhas brancas limpas, o controle remoto e uma revista qualquer.

Queria sentir-se radicalmente consigo mesmo num ambiente sem intimidades e sem afeto de outros. Uma opção pela vida seca, sem adereços. Outra vantagem: a cidade também não lhe pertencia. Caminhava nas ruas como turista, embarcava em excursões guiadas, ia ao teatro, conversava com estranhos. Mas sempre sonhava com a hora da volta. O quarto trancado – seu único bem nesta vida.

@_lulafalcao

sábado, 20 de agosto de 2011

Na prisão

Além de pão e água, nesta cadeia nojenta em que me encontro, preciso de papel e lápis. Algumas idéias me ocorreram quando cheguei aqui, acusado de corrupção, carreira política acabada por um anacronismo jurídico. É sempre assim: usam um como bode expiatório para deleite dos indignados de sempre, moralistas do público e da imprensa, quando a prática é quase uma tradição nacional, um modo de vida das nossas elites e do povaréu, um jeito de fazer as coisas andarem com mais rapidez. Mas não adianta. Mesmo seus aliados nos negócios tidos como escusos vão fazer aquela cara de nojo diante das câmeras, clamarão por CPIs, apurações doam a quem doer e outras coisas da boca para fora. Não paro de pensar naquelas algemas, fotos nos jornais, desmoralização. Por que eu? Quero papel e lápis antes que os ratos comecem a entrar pela minha boca nesta cela úmida. Nada de biografia, por enquanto. É ficção. Não vou voltar ao parlamento, mas planejo uma saída literária deste inferno. Quer dizer, pode ser até que eu volte – a política, como dizem, é dinâmica.

O texto começa a sair. A prisão é real, mas esse laptop não combina com memórias do cárcere, daí o papel e o lápis. Mamãe, coitada, correu para cá com ravióli ótimo e também trouxe a TV e os livros. O pessoal do partido mandou uns intermediários, estão mexendo os pauzinhos, eu acho, mas também preocupados com revelações desnecessárias. Não vou abrir a boca, se é isso que eles temem, e o advogado, um dos melhores da cidade, também desaconselha qualquer movimento brusco. Espero o habeas-corpus e escrevo.

Queria mesmo era um diário, em capítulos, numa revista da moda, antes de lançar o livro pela editora do amigo que ganhou aquela licitação. Fiz um esforço enorme, no ministério, e espero naturalmente uma contrapartida, nesta altura bem pequena, porque nem os tais 15% apareceram. Os jornalistas precisam saber que às vezes é coisa de pai para filho, sem compensações financeiras. A gente também atua por amizade e até por admiração pelo trabalho de certos correligionários. Foi o caso da editora.

Agora que tudo escorreu pelo ralo, só tenho medo da solidão. Não é mais a solidão do poder; é a solidão da ausência de poder, o desprezo, o exílio na fazenda em Goiás, a pérgula vazia da piscina, o celular mudo e mamãe coitada, chorando pelos cantos. Dinheiro não é mesmo tudo na vida. Daria tudo por um tapinha nas costas. Queria mesmo uma sequência de tapinhas nas costas, um beija-mão, aplausos na convenção do partido, um telefonema do governador. Por isso escrevo enquanto espero o habeas-corpus. Tenho medo e pena de mamãe. Por que eu?

Lula Falcão

sábado, 13 de agosto de 2011

O fraudador e as mulheres imaginárias

Seu trabalho, neste mato sem cachorro, era criar gente de mentira, nomes falsos, notas frias, aposentadorias fantasmas e histórias nebulosas. Não se considerava no mundo do crime, mas no campo das artes e da ciência. A freguesia queria boas desculpas para as autoridades; ele as construía com esmero e rapidez. De um morto fazia um vivo e vice-versa, dependendo da necessidade do cliente, e ia montando uma vida, com biografia, fatos necessários ao objetivo, documentos em estilo da época requerida, um passado entre outros seres imaginários, um presente para uso imediato, além de músicas prediletas e, se fosse o caso, cartas, bilhetes, escritos para a posteridade, livros de cabeceira, jeitão de ser, aparência e aventuras amorosas. Religião, time para torcer e partido para votar.

A minúcia caia no exagero na hora de compor uma mulher. A parte física era mais fácil, pois ela era o conjunto de várias fêmeas do planeta, moídas e retocadas no fotoshop, e depois saia um álbum de fotografia, RG, CPF, uma nota na coluna social, um perfil no Facebook. O trabalho mais longo, pensativo e penoso, era o caráter, as maneiras, o modo de olhar e o pensamento, ou seja, o miolo, o enchimento da existência, a parte de dentro, as entranhas, os líquidos, a alma. Tinha ainda um nome que combinasse com tudo isso e nessas horas recorria a programas de computadores que cruzavam todas as possibilidades, desde sonias com asma a clarinhas bipolares, heleninhas bem magrinhas e marcelas com doutorado.

Em relação às mulheres ele sempre queria mais. Não apenas seres que circulassem nos canais obscuros da burocracia, fraudando o governo e a rede bancária. Sonhava em fazer mulheres que deixassem o vento bater em suas saias, bebessem nos bares, contassem piadas e escrevessem blogs.

@_lulafalcao

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O pequeno Pedro Nava


Desde cedo, dez anos de idade, começou a escrever sobre o um único assunto: sua família. Não era ficção, no início. Anotava tudo o que se passava em casa numa espécie de diário em papel pautado. Detalhes inocentes sobre a vida sexual dos pais e das irmãs, questões econômicas, cardápio de frango quase todo dia, problemas com o carro, doenças, relação com vizinhos, mentiras, pequenas traições, ódios e ataques de fúria. Mantinha uma disciplina quase profissional. Escrevia à tarde, depois da escola, cuidando de pesquisar assuntos mais recorrentes, como as menstruações e a temporada de cistos no ovário, por volta de setembro, sabe-se lá por que. As mulheres, como sempre, rendiam mais. O pai, gerente de supermercado, não despertava bons ou maus sentimentos. Era ausente e oco.

Aos 12, o menino havia acumulado cerca de mil páginas sobre o universo familiar, com o diário manuscrito passado para o Word. Pouco tempo depois, graças à Internet, pôde rever algumas de seus enganos de ordem técnica. A procriação, por exemplo. Sabia desde o começo que o sexo estava relacionado com o nascimento da prole, mas não esperava que fosse de forma tão direta. O ginecologista era apenas um observador do processo, conforme constatou em um site. Seres sobrenaturais, entre ales a cegonha, há muito haviam saltado da suspeita para a mitologia

Com 14 anos, já um pequeno Pedro Nava em tempo real, estava precocemente na idade da razão. Sentia-se seguro para entrar no mundo dos adjetivos e das comparações. Resolveu então criar imagens deploráveis para si e para os outros – “percorro os esgotos da família como tartaruga Ninja” – e seguiu adiante, dissecando a parentalha de forma cada vez mais impiedosa.

Com o tempo, a precisão da infância foi se esvaindo, se esvaindo e o diário virou um livro de ficção, com nomes trocados, porque a irmã mais velha entraria na prostituição, o pai se daria ao álcool, a mãe trairia abjetamente como o primeiro que aparecesse.

E foi assim que entrou na adolescência. Não era mais o memorialista meticuloso, o pequeno Pedro Nava, mas um Nelson Rodrigues reencarnado, escrevendo um livro-bolero à Vicente Celestino, turbinado com incestos, alcoolismo de sarjeta e pecados mortais. Certo moralismo católico caiu em suas páginas, mas a experiência narrativa, o senso de romance e o comando das aliterações terminaram por transformar aquela casa normal, com suas crises corriqueiras, num mafuá de episódios ignóbeis e em estado de permanente depravação.

Nada batia com a realidade. O que fora escrito antes servia apenas de cenário. Seus personagens viraram pó, lama, podridão; pais e irmãs enlouqueceram em praça pública, sob o olhar de censura da vizinhança. O retrato do cruel esfacelamento de uma típica família brasileira deu ao ex-pequeno Pedro Nava o prêmio Juriti de autor revelação.

Lula Falcão

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Ela, vinte e poucos anos



O lado mais desagradável da convivência com os jovens era o fato de não ser mais um deles. O professor, no entanto, insistia. Estava sempre nas mesas de bares com alunas e agregadas nascidas depois de sua tese de doutorado em Filosofia na prestigiosa Universidade de Princeton. Por que não procurava sua turma? O problema é que ficava entediado com colegas acadêmicos, divididos entre Fenomenologia e artroses, quase todos vovôs, em vias de embarcar na aposentadoria e, pluft, na morte. Então ele escolheu a galera, extasiado com o sorriso d’Ela, eternamente curioso em mundo que não lhe pertencia. No mais, tinha certa destreza no trato com as meninas: cuidadoso para não parecer insinuante, mas não ao ponto de ser considerado fora de cogitação para o sexo. Sonhava com um caso mais duradouro ou amor eterno. Com Ela, vinte e poucos anos.

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domingo, 7 de agosto de 2011

Teoria e prática

O que dizer de moças que verbalizam sua sexualidade com palavras nuas e cruas e correm do sexo propriamente dito? Quem sabe não é o gosto pela palavra acima de tudo? No mundo online ou em terra firme, especialmente mesas de bares, as ninjas intelectuais constroem e desconstroem o discurso amoroso e sexual com extrema destreza. Seria uma temeridade interromper aquela palestra envolvente com propostas objetivas. O melhor a fazer é ficar na plateia. Já é um privilégio e tanto.

Sexo de fato tornou-se coisa de patricinhas, é o que dizem por aqui. São elas que saem à noite com real disposição para concretizá-lo. Em busca de prazer e aventura – essências da balada -, mas sempre com a esperança de encontrar o amor de suas vidas – um efeito colateral desejado e nem sempre explicitado. Estilo: jeans apertados e sapatinhos altos, método no lugar de teoria e guia da semana bailando no Facebook.


No primeiro caso, as perguntas giram em torno do que você disse ontem à noite. No segundo, o que vale é o que você fez.


Há uma terceira possibilidade: muitas vezes, o olhar de vistas cansadas produz maniqueísmos ou simplesmente deixam o observador privado de informações de bastidores. Ou seja: pode não ser nada disso – ou isso seja só uma pequena parte de um todo ainda a ser entendido.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Historinha do além

Uma forte dor no peito, o baque. De repente estava morto, no outro mundo, Olhou em volta, um hall elegante, duas recepcionistas do seu lado – dessas de eventos chiques.


-Deus existe?

- Não necessariamente - informou uma das moças - Temos um CEO.

- Céu?

- Não. C.E. O, Chief Executive Officer


Para um ateu em vida, tudo era estranho. Mas a principio gostou da decoração moderninha do ambiente e especialmente das garotas, vestidas de preto básico. Usavam crachás: Cláudia e Fernanda.

Logo na entrada ele ganhou um kit: livro capa dura com informações sobre o local, camiseta para uso obrigatório, DVD e pulseirinha. No primeiro dia haveria festa, com a presença dos principais executivos da corporação, e boas bandas que se foram daqui, mas estão lá, nas paradas. Se é que dá para entender. A balada teve certa formalidade, pouca gente na pista de dança, mas os aperitivos e salgadinhos eram da melhor qualidade.

O dia seguinte, no entanto, foi de trabalho duro. Quase igualzinho ao que era Terra. Muito stress, cafezinhos, fofocas e aniversários da morte de colegas.