sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A última ceia



- O que temos pra hoje?  - perguntou ele, com voz de apetite, enquanto uma única panela esquentava no fogão com três batatas. Eram as últimas batatas. Eram três batatas pequenas. Os olhares em torno do fogo baixo reprovaram o jovem faminto, seu alheamento da realidade, porque esta seria a última ceia. A partir dali a família estaria oficialmente desfeita.  Nem casa nem comida nem roupa lavada.  Cada um trataria de si.

Solução prática. Alimentar todos, todos os dias, estava se tornando uma logística difícil. Ninguém tinha emprego. Ninguém tinha dinheiro. Só o jovem, filho do meio, se comportava como se ainda houvesse galinha ensopada na mesa e até frutas da estação da feira que não existe mais.  

Combinaram que alguns laços familiares seriam mantidos, dentro do possível, mas eventuais ganhos de seus membros, em trabalhos cada vez mais escassos, só para quem trabalhou. Caberia algum agrado em relação aos mais novos e idosos. Ninguém, no entanto, estava obrigado a uma contribuição regular e estabelecida.

Separar para sobreviver foi a forma escolhida pelos pais e o filho do meio achava o contrário, que era apenas uma fase; não o encerramento de um jeito de levar a vida. Na cidade, as pessoas já comiam em cochos da caridade, sem talheres ou modos. De vez quando, um cachorro era chutado para longe da refeição humana.

O rapaz não perdia o jeito de antigamente, da extinta classe média. Mesmo quando as batatas foram postas, repartidas, e só lhe restou um pequeno pedaço, ele comeu com gosto, elogiou “a entradinha” e foi pegar uma praia. 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Viagens


1 - O precipício é enorme. Ninguém sabe a profundidade. Alguns acham que não tem fundo. Há pessoas que pularam há anos e estão caindo até hoje, diz o guia de turismo, orgulhoso daquela maravilha. Surgiu ali do nada. De repente havia o buraco e logo as histórias sobre curiosos e suicidas que, em pleno mergulho, conseguiram conversar com a família, por seus celulares. Informaram que estava tudo bem, por enquanto. Uns se arrependeram; outros se divertiam.

2 - Dois homens na plataforma abandonada acenam para um trem que não vem mais. Ficam ou ficavam o dia inteiro na antiga estação sem trilhos à espera de ninguém. O município convivia naturalmente com o fato. Os dois tentam consertar a paisagem e encenam a chegada de amigos e parentes, carregam malas imaginárias e, enfim, à noite, tomam o último vagão para casa.  

3 - O voo vai atrasar duas horas, anuncia o serviço de som. Ouve-se um murmúrio de lamento, como se ouve na hora de um pênalti perdido. Alguns faltarão a reuniões de trabalho; outros não chegarão a tempo para a festa. Nesses momentos, o destino não é só a cidade para a qual o passageiro pretende se deslocar; o destino aparece em sua amplitude cósmica. Tudo contido, naturalmente, porque a vida tem que continuar, caso contrário os negócios fracassam.  Há uma tensão sutil, mas detectável em muitos passageiros: o medo da morte. Nos aeroportos esse pavor aflora, ou irrompe, quando se pensa na batalha a enfrentar lá em cima contra forças terríveis da natureza, entre elas a da gravidade.


4 - Ao completar sessenta anos, fez cálculos. Dentro de uma ou duas décadas estaria morto, considerando as extravagâncias da vida e ordem natural das coisas. Sentiu-se condenado à morte e só lhe restava a crença em outra existência, talvez menos efêmera, talvez eterna. Nenhuma certeza. Também podia ser nada, como dormir e não acordar mais nunca. Enfim, lances que passam pela cabeça de alguém quando pensa na morte; e todos pensam, algumas vezes. Só que ele pensava o tempo inteiro. Pensa até hoje, aos 94 anos, esquecido das previsões, mas certo da iminência do fim.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Em movimento 2

De repente voltamos a viajar de navio. Muita gente sem condições de pagar uma passagem aérea, então eles fretam navios, enchem de gente e soltam pelos portos do mundo. Assim, fomos nos diluindo. Fiquei por cansaço e falta de dinheiro.

Um monte de avenidas vazias. Ruas inteiras partiram. O mato cresce em bairros desabitados e o comercio registra queda todos os meses. Empregadores e empregados enfim chegaram a um acordo: não tem jeito. Por isso não achei estranho quando vi meu antigo patrão embarcando no navio. Só o cais ainda tem algum movimento. O transporte para o outro lado do mundo é o único negócio lucrativo.

Acordo cedo para arrumar comida, mas as filas são tumultuadas em frente aos caminhões da caridade. Não dá para todo mundo. Às vezes, uma pessoa gasta uma refeição no esforço de consegui-la. É uma luta até chegar perto, enfiar a mão entre muitas outras e dar o bote na cesta básica. Sempre desisto e volto ao meu pequeno estoque de enlatados – sardinhas e salsichas. Houvesse pão, faria sanduíches.

Agora é esperar por uma solução vinda de não sei onde. A informação ficou precária e nesse ramo ninguém confia em ninguém. Dai a dificuldade para entender o que se passa, por que chegamos a isso e aonde iremos parar. Muita gente daqui se enfadou de pensar no assunto. Os que partiram sonham com uma pátria que não existe mais. Os que ficaram só pensam em comer. 

Portanto não confio nas informes públicos, divulgados semanalmente. Não confio nas vagas esperanças de uns poucos. Falo o que vejo: bares vazios, filas para diversas providências de embarque, crianças procurando por seus pais. O frenesi do porto e o lixo sob a chuva