quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Atolados no escuro


As luzes foram se apagando aos poucos, como o Big Rip, que é a teoria sobre a expansão do universo até o ponto em que todas as galáxias estarão isoladas umas das outras. Um astrônomo amador estava entre os perdidos nas trevas e disse isso apenas em termos comparativos porque havia a sensação de que, mesmo no escuro, as coisas iam se afastando – o próprio chão parecia se esticar como borracha e dai em diante as pessoas se apressaram em tatear entre os escombros da cidade, procurando alguma coisa para comer ou onde se abrigar, ou pelo menos encostar a cabeça em algo seguro. Mas paredes e muros duravam pouco em seu lugar e o próprio grupo, de mãos dadas, fazia um enorme esforço para manter-se unido.

O certo é que se passaram noites sem dias e a energia não voltava nem havia jeito de saber quando voltaria. Findaram as chamas das velas e isqueiros e o facho das lanternas.  Não se viam as estrelas, cobertas de nuvens, e começou a chover sem parar – chuva horizontal, estranha, vinda do Norte -, enlameando a caravana que seguia meio sem destino pela avenida principal interminável, pois prédios antes vizinhos agora estavam distanciados por quarteirões. Homens e mulheres de negócios, gente que teve bons empregos, inclusive na Bolsa de Valores, estavam agora na mistura de lama com escuro, uma substância pastosa e dispersa que não conseguia untar o que restava da cidade.

Seguiram no tato, ensopados, cuidando para não serem separados pelo tecido do chão em movimento, e a chuva lateral continuava, atrapalhando a busca. Seria preciso encontrar um teto, uma singularidade naquele estiramento, pois a enxurrada argilosa, com todos os cheiros da cidade parecia mais acelerada e a água já estava dos pés à cintura. Um homem foi jogado contra um carro, que também já se deslocava no lamaçal ralo, e mesmo com a dor da batida gritou que aconteceu uma coisa séria, e quando perguntaram se era uma enchente, ele respondeu que era muito pior.

- Tudo está se derretendo - disse ele - e o grupo ficou sem saber se era uma metáfora ou se era isso mesmo. Logo os sinais ficaram mais à vista, como o prédio adiante, que adquiriu a mesma consistência da lama e depois se misturou a ela, tornando líquidos apartamentos e salas comerciais.

- Siqueira, fudeu tudo! – gritou o último homem da corrente de mãos. Tentava segurar-se num poste com o braço solto, que também se distendia e se afastava e lá na frente se diluía. Ninguém conhecia Siqueira nem importava naquele momento.

Sob uma marquise, finalmente, encontram uma porta ainda sólida. Estava fechada à chave, com água barrenta até o meio, mas apresentou-se um mecânico com um pedaço de ferro e fez uma alavanca para tirar a porta da frente. Lá dentro não havia água nem lama, embora estivesse também escuro. Umas duas horas de procura, como cegos, e de repente uma luz clara, iluminando uma sala branca e impecável, sem decoração, apenas branca. No centro, um homem em pé, também de branco, perguntou como estava lá fora. Há dias estava trancado ali. Não ficou chateado com a presença dos estranhos. Pelo contrário, parecia alegre por ver gente.

- Acho a situação anti-intuitiva – disse o astrônomo amador.

- Tudo caminha para a desordem – respondeu o homem de branco.

- Eu sei, eu sei que é assim – retrucou o astrônomo amador – Só quero saber por que é especificamente assim, como agora?

- Porque pode ser de qualquer jeito -, respondeu de novo o homem de branco. O homem não sabia ao certo como estava o lado de fora, mas sabia o que era. Tranquilo em seu bunker, informou sobre o aparente colapso. Pelo visto vinha preparando aquele lugar há muito tempo. Não era santo nem profeta; era só um cara prevenido e bem informado. Além de encerrar as questões entrópicas do astrônomo, ele deu muitas referências sobre o estado da matéria e ainda cálculos precisos sobre a composição daquilo que envolvia a cidade e que, ao final, envolveria tudo.

Costas apoiadas nas paredes deixaram a sala suja de lama, mas o homem de branco não se incomodou. Disse apenas que não tinha como hospedar tanta gente porque o estoque de alimentos não daria para todos.

- Vamos ficar porque somos maioria – disse um advogado, exaltado, como num tribunal.

O homem de branco ouviu a proposta sem tomá-la como ofensa ou ameaça e apenas acrescentou que também ele teria que deixar o lugar em alguns dias.


- Talvez não seja o fim – disse ele. – Talvez continuemos a viver, dissolvidos, misturados à matéria viscosa. Talvez seja só uma mudança de estado.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Pós-vida


Morreu e surgiu na vida eterna, ou em algo parecido, mas ali também não obteve respostas sobre a existência e o fim da existência. O lugar era espaço aparentemente vazio, embora outros mortos venham especulando que o vácuo está cheio de flutuações de gluóns, como ocorre no mundo das partículas. Mas a questão continua: onde estamos? Nenhuma entidade, religiosa ou não, apareceu para dar explicações, embora muitos já estejam nesse ambiente há milhares de anos.

Não há ordem nem leis para a população de 106 716 367 669 habitantes – presumível número de pessoas que já passaram pela vida terrena; e continua chegando gente. Reina a incerteza, não só a de Heisenberg, mas todas as outras – possíveis e impossíveis, incluindo a sensação de ausência do corpo, que contribui para outra dúvida nesse universo de dúvidas: eu sou eu? – perguntam com frequência. Indivíduos do passado e do presente misturados e perplexos numa área sem fronteira visível, em que se reúnem, por exemplo, fanáticos da idade Média, multidões de nômades e, mais recentemente, físicos teóricos. Convivência difícil. A coisa pode ser parecida com um ovo pelo avesso. A clara e a gema estão do lado de fora, onde todos viveram, e o interior oco, porém infinito, onde se acham agora. Mas é só uma suposição.

Adeptos de religiões acham que comprovaram sua tese da sobrevivência da alma, mas mesmo estes reclamam das condições e da falta de semelhança com o paraíso dos livros sagrados. Já os céticos em minoria consideram que o fenômeno faz parte do processo da natureza – talvez a dualidade onde-partícula - e lembram que Deus ainda não deu sinal de vida.

O escritor George Bernard Shaw, destacado incréu desse além, não contava com essa sobrevida (ou sobremorte), mas continua o mesmo. Maldiz a ciência, que nunca resolve um problema sem criar pelo menos outros dez, e maldiz a religião: “Cuidado com o homem cujo Deus está no céu”. Agostinho também esperava outra coisa, porque é santo, mas ele está no meio da multidão etérea ainda pregando a palavra do Todo Poderoso: “na procura de Deus é Ele quem se adianta e vem ao nosso encontro”, repete. “Tá demorando muito”, responde um apateísmo ansioso.

Não há frio nem calor nem comida nem cansaço nem repouso nem fome nem vontade de comer nem pontos de referência - alguns dizem que sequer há o tempo. Niels Bohr calcula que apenas passamos de uma orbita a outra sem percorrer o espaço intermediário. A pequena Guerra santicientífica, no entanto, é apenas retórica. Ninguém consegue tocar em ninguém. Nem conversar com vizinhos na calçada.


É um bom lugar para criar teorias, mas incômodo para morar.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Marilda


Depois de um longo tempo na empresa, saí à procura de novos desafios que não apareceram. Passaram-se seis meses e nada. O desemprego produz a sensação de que tiraram a escada e estou me segurando com esforço no parapeito do prédio. A cada decepção – “desculpe, não temos vagas” – parece que alguém pisa em minhas mãos e às vezes penso em soltá-las. Passo o dia pensando nessas coisas porque em casa a situação também não é boa. O casamento está no fim. O que passou, passou, eu disse, e prometi ir embora. Só não sei como sair por aí sem dinheiro.

Marilda ainda trabalha. Eu perdi o emprego numa agência de publicidade porque agora os produtos se anunciam sozinhos, por meio de algoritmos, e sem necessidade daquelas sacadas e frases de efeito que não causam mais efeito no consumidor. Inicialmente, ficamos acertados que ela manteria a casa naquele período difícil e depois veríamos como compensar, em termos de grana, pois o casamento é uma coisa, o dinheiro é outra.

Cada dia mais acuado em casa, um intruso, tentando não aparecer muito na cozinha e só como quando sou chamado. Li no jornal a entrevista de uma psicóloga em que ela garante que a felicidade é possível a um desempregado com boletos a pagar. Não é verdade, pelo menos no meu caso, pois Marilda deu um ultimato e disse que eu tinha três meses para arranjar qualquer trabalho – nem que fosse intermitente. Argumentei que o mundo tinha mudado, os empregos sumiram para quase todos e que só sei fazer uma coisa; talvez nem saiba mais, Marilda. Hoje uma margarina se anuncia por conta própria, levando em conta bilhões de possibilidades e eu sou do tempo do slogan e do jingle.

Eu precisava de uma ideia, um aplicativo que gerasse renda, um modelo de negócio inédito, mas termina me distraindo jogando paciência no computador. Eu entendia a preocupação de Marilda, pois o salário dela tinha sido cortado pela metade, por uma nova medida do governo, e minha presença em casa estava estourando o orçamento. Outro problema era o fim do amor. Não apenas o nosso. O próprio sentido do amor tem se esvaziado em todo o planeta. As pessoas se casam para dividir os custos domésticos e, secundariamente, por sexo, que não resiste às oscilações do mercado e ao dia a dia. O importante é o equilíbrio das contas.

Meu mundo keinesiano desabou nessa temporada de ócio. O Estado não pode fazer nada por mim. Nem a iniciativa privada. Marilda já fez o que pôde.

Turismo

Finalmente, encontrei uma saída. O Turismo por Acaso era o meu produto. Vendia viagens que transcorriam ao sabor dos acontecimentos, sem hora para voltar, com todos os dias livres. Cada um marcava seu hotel, de acordo com o gosto e a situação, e o passageiro também poderia pegar a passagem quando quisesse ou desistir no último momento. Eu mesmo sou o guia de todas as excursões. Sento-me num bar, peço uma bebida e espero que algum cliente venha com dúvidas sobre a Catedral de São Vito ou os canais de Bolonha. Se não vier, melhor.

Realeza

Deslocava-se com facilidade nos bastidores da corte. Vez por outro se inclinava para Sua Majestade até os limites dos ossos. O rei torcia secretamente para ele inclinar-se ainda mais. Só no último instante fazia o gesto real que significa “por hoje, basta”. O homem faz a sua parte e recebe a contraparte. Move-se nas salas enormes, se solta em cortesias, chama burocratas de Vossa Excelência para situar-se também nos escalões inferiores. No final do mês, recebe as moedas e vai para taberna vangloriar-se de seu espírito público.

Memória

Escreveu as memórias até a metade do livro e dali em diante foram parágrafos e parágrafos sobre a perda da memória, crítica sem piedade à falta de sentido de coisas ditas do primeiro ao sexto capítulo e historinhas “bem chinfrins”, como Graciliano disse a Antônio Cândido. Depois da doença, só lhe vieram lembranças cotidianas sem importância aparente, sem comendas ou convivência com vultos da República. Não sabia mais quem eram aqueles homens com os quais dividiu segredos de Estado, mas os fatos da infância tinham nitidez e brilho, como a lagartixa imóvel na parede de seu quarto de criança e cenas do primeiro filme que viu na vida: Gunga Din, de 1939. A primeira parte era uma peça auto laudatória e, aqui e ali, mentirosa. A segunda parte era tudo que ele não teve na política: estilo. A amnésia deu-lhe jeito para juntar as palavras de forma direta e concisa.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Desafio profissional


A mudança de hábito se deu por necessidade.  Só havia vaga de vigia noturno, eu estava sem emprego e resolvi experimentar. Não era minha área. Sou formado em Física, mas o mercado tinha outras prioridades, enquanto os mais ricos queriam proteger o patrimônio dos vândalos e ressentidos com a situação vigente. Vez por outra os bandos saqueavam mansões, levando comida e aparelhos eletrônicos, que eram vendidos no mercado negro. Eu não podia fazer muita coisa em caso de emergência, embora a presença de um homem armado pudesse desencorajar invasões e roubos, senão todos, pelo menos alguns. Os ricos que ficaram no País estavam enfrentando uma situação intranquila. A maioria dos donos do dinheiro vendeu tudo e foi embora quando o pessoal sem trabalho partiu para a distribuição da renda de uma forma meio desorganizada.

Na minha guarita, eu ficava só, na madrugada, até chegar o segurança do dia, que corria menos perigo e também ganhava menos. Era um professor de história, muito conversador, e só não tivemos mais contato porque na hora que ele entrava, eu saía. Basicamente, meu trabalho consistia em olhar os monitores, pois havia câmeras em todos os lados da casa, e se a situação exigisse, usaria os meios dissuasivos disponíveis: um fuzil AK-47, com muita munição dentro de uma caixa; uma pistola Glock, um lança-chamas e granadas de mão. Quando eles chegassem eu deveria dar um tiro de advertência e em seguida atirar de verdade contra os intrusos que não recuassem. Eu nunca havia matado uma pessoa, disse isso na entrevista de emprego, mas o homem que me atendeu respondeu que não tinha importância. “Como o tempo você vai pegando prática”. Estava certo. Aprendi a lidar com o equipamento e com os dilemas morais.

Jeitinho

A gambiarra, enfim, tomou lugar das instituições e a vida seguiu na base do improviso. Alguns se resignaram e viam o precário apenas como provisório.  O importante era que no fim dava certo, ou mais ou menos, e quando dava errado era porque é assim mesmo. Acontece. A própria vida um dia acaba.  As coisas se ajeitam, pensavam, e as coisas de fato se juntavam umas às outras, mas sempre deixando para trás os seus nós, fios desencapados, pequenas pontes de madeira podre. Tudo era remendo no meio da informalidade e da desambição. Também as pessoas começaram a desenvolver suas relações sem nenhum planejamento, confiantes em encaixes imperfeitos, homogeneizações por conta própria e promessas de que amanhã a gente dá um jeito.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Baseado em fatos que serão reais



Como não há mais empregos, Heleno resolveu inscrever-se num curso rápido e grátis sobre esmolas. Não queria sair por ai, sem conhecimento do mercado, sob o risco de voltar para casa de cuia vazia. Quando era um profissional bem-sucedido sabia o que fazer, mas agora, em um novo desafio, precisava de ferramentas adequadas e pegada vendedora para angariar algumas moedas no restrito ambiente da compaixão. Em suas primeiras lições teóricas, aprendeu que o apelo religioso é o mais eficiente, conforme já disse São Leão Magno - “A mão do pobre é o banco de Deus” - e conforme está escrito no Livro dos Provérbios: “Quem se apieda do pobre, empresta ao Senhor, que lhe restituirá o benefício”. Heleno é ateu. No entanto, notou nessa abordagem um processo de troca adequado, em que mãos invisíveis abastadas pelo capital acumulado poderiam investir uns trocados no item salvação.

Como não há mais empregos, a estudante de Letras Maria Alice resolveu vender sua alma ao diabo. Pegou-se à tragédia de Fausto em busca de algum dinheiro, mas logo descobriu que metáforas não geram renda. O comprador nunca apareceu.

Como não há mais empregos, a publicitária Patrícia Caldeira aceitou vender o próprio corpo. Começou por um rim.

Como não há mais empregos, o velho Giba foi buscar a sobrevivência no mundo do crime, que às vezes compensa, às vezes não, igual a tudo na vida. Escolheu o tráfico de drogas por conhecer bem a mercadoria como consumidor diário e jogou-se no empreendimento de uma pequena boca de fumo. Teve, no entanto, todos aqueles dilemas morais de crime e castigo, mas o momento é outro, pensou, e seguiu em frente. Tratou a consciência à base do seguinte raciocínio: sua atividade era mais uma na informalidade geral e o aspecto produto x legislação não existia mais. Não há polícia, não há sanção, não há crime. E não há perigo. A única lei vigente é a da oferta e da procura. Para ele, a desvantagem foi a perda dos amigos, mesmo aqueles que se tornaram seus clientes. “Sempre me tratam com olhar superior, como seu eu tivesse fazendo uma coisa errada”, lamenta-se o velho Giba. Boa gente, Giba, mas o preconceito ainda é grande.



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Depoimentos falsos


Quer se matar, se mate, mas já pensou se você se mata e acorda num lugar que nem tem remédio pra dormir?  Pense nisso e você vai querer se matar de novo quando chegar lá. Morre e dá de cara com outro lugar pior e assim por diante. Veja, por exemplo: você deve duzentos mil, não tem como pagar e por isso quer fugir dos credores de uma forma que considera eficiente e definitiva. Toma a cartela de remédios ou pula do prédio, sonhando com o nada, o fim da encheção de saco deste mundo, e cai em outro onde deve quatrocentos, com cobradores ainda mais ferozes e decididos. Como já se matou uma vez, fica mais fácil e imagina que a solução será morrer novamente. Morre e a dívida vai aumentando. À medida que mais se mata, mas a dívida cresce. (João Coelho, conselheiro de investimentos).

João Saraiva já estava cansado de escrever histórias que ninguém lia. A desgraça de sempre, fome e falta de rumo, além de elementos químicos gosmentos que ele enfiava no enredo para dar um toque de ficção científica.  A mistura não funcionava direito porque os desvalidos de seus contos eram os mesmos que já estavam lá foram e o leitor não queria tanta falta de esperança, chega, bastam as reportagens, cujos assuntos em pauta naqueles dias eram o fim dos sistemas de energia elétrica e comunicação. Ainda havia luz e internet, mas não iria demorar para cair tudo. João Saraiva tinha prevenido. Só que a crítica não soube; ninguém soube. Agora precisava de um veio novo, menos niilista, coisa difícil de fazer por falta de verossimilhança com a situação vigente. (João Saraiva, por ele mesmo).

A encomenda é sobre uma estação espacial prestes a cair na Terra. Só que não há mais foguetes para buscar os tripulantes por causa de uma gigantesca crise econômica global. A bordo, russos, norte-americanos e chineses discutem a respeito de quase tudo, com destaque para geopolítica, sexo e morte. Pensei em colocar um canadense para tentar convencer os demais a encontrar uma forma de voltar para casa a partir dos próprios recursos da estação. Pelo menos nessa parte, cópia deslavada de ”O Voo da Fênix” (1965), de Robert Aldrich, cujo elenco conta com James Stewart e, claro, Ernest Borgnine, ator de dez entre dez filmes desse tipo naquela época. A diferença é que o espaço substitui o Saara e a M17 – ou qualquer coisa por aí - substitui o velho Fairchild C-82A Packet. Primeira ideia: para não ficar igual ao filme de Aldrich, o tripulante canadense não consegue convencer os demais e eles morrem ao reentrar na atmosfera. Categoria: ação e fracasso. (Pedro, roteirista)

Eu só queria uma lata bem equipada, com dechavador, sedas de variadas procedências, um palito daqueles de manicure (para pilar, ou apilar, como se dizia antigamente); o certo é que comecei a discutir seriamente comigo mesma as diferenças entre antes e agora. As coisas que se foram - a lata, por exemplo - e a esbravejante incerteza de todos os lados dos dias de hoje; ninguém se entende nem se cala no seu canto, com sua lata, como eu fazia há muito tempo quando tive o prazer de possuir uma lata com todos os utensílios necessários. Eu estava entre as pessoas que queriam mudar o mundo, contando que me deixassem quietinha, num cantinho.  Assim passei a minha juventude, apesar de tudo, muito boa.  Hoje, sou uma velha perplexa com medo de ser mal interpretada, mas ainda mais assustada com o que estou vendo.  Tenho receio de escrever essas coisas, embora o mais provável seja que ninguém leia. Mesmo assim, fique claro que não estou falando de um caso ou outro, desta ou daquela situação em particular; é mais ou menos sobre tudo.  Bom. Acabei de fumar um e estou com tendência a tornar as coisas muito amplas. (Lúcia, funcionária pública). 

Estou de banho tomado e quase quite com o Senhor.  Sei que estou pagando, já dei tudo que tenho e ainda devo mais, pois cometi todas as barbaridades, pior que o Senhor no Evangelho Segundo Lucas, ordenando a matança, embora com razão, levando em conta que as vontades de Deus são insondáveis. Vontade, não, princípio, meio e fim de tudo, pois é Aquele que reina no cheio e no vazio. O pior que usei do Senhor a norma seguinte: como de trata de Alguém cujo propósito desconhecemos, como saber se o que estou fazendo e acontecendo vai ou não de encontro a esses propósitos? Um meio de se livrar de uma acusação questionando a essência do projeto. Não deu certo. O pastor me esclareceu tudo e houve uma solução conciliadora, aceita pelas partes: o perdão. Não é um caminho curto. Por isso estou aqui, catando caquinhos no lixo, à espera da hora do culto. (Reginaldo, morador de rua, evangélico).    


terça-feira, 3 de outubro de 2017

A consultoria



Tudo andava muito provisório até que consegui uma vaga numa empresa realmente ducaralho. Lá, ninguém trabalhava. Cumpríamos o expediente, mas não havia o que fazer em termos práticos, embora os computadores estivessem dispostos em mesas impecáveis, com retratos da família e um buraco redondo para colocar o copo.  O dia transcorria animado à base de caipirinhas e outros drinques e conversávamos sobre nosso passado em redações de jornais e agências de publicidade. Vez por outra, o dono da empresa, um jovem elegante e gentil, chegava para perguntar como iam as coisas.  Tudo OK, nós dizíamos, enquanto uns dormiam na sala de jogos ou namoravam na antessala do banheiro.  Salário sempre em dia, seguro de saúde, carteira assinada.

Alguma coisa deveria estar errada e tal conversa às vezes rolava no corredor. Pensamos em lavagem de dinheiro. Nesse ponto, as opiniões se dividiam. Por que uma empresa de fachada seria tão bem equipada e tão dedicada em suas relações trabalhistas? Alguns colegas, no entanto, achavam simplesmente que se tratava de um caso de beneficência ou algo parecido, talvez uma promessa, pois o patrão deveria ter outros negócios capazes de sustentar nosso luxo. Poderia ser uma pesquisa sobre o mundo do trabalho – no caso, sem trabalho – ou até um reality show. Fosse como fosse, assinávamos o ponto, a documentação estava em dia e eu achava que merecia essa deferência depois de tantos anos penando na imprensa.

A empresa era uma consultoria, mas nunca não éramos consultados. Podíamos ser, mas de uma forma tão sutil que nem percebíamos. Uma consultoria com escopo vago, genérico, baseado em soluções para problemas de clientes que não existiam. Ali só recebíamos visitas de amigos, em ocasiões festivas e frequentes, e não raro esquecíamo-nos do término do expediente, levando a farra até a madrugada. Pedíamos comidas e bebidas pela internet e, no dia seguinte, não havia sequer um farelo de pizza no chão. Tudo limpo e lustroso.

- Vocês fazem consultoria de quê? – perguntavam os convidados nessas happy hours expandidas -. Disfarçávamos bem, respondendo que, cada caso era um caso, dependia do imponderável, enfim, situações não contempladas por outras empresas do gênero, ressaltando logo em seguida as ótimas condições de trabalho, o clima de liberdade e camaradagem entre os funcionários - ingredientes essenciais para uma boa consultoria.
Eu aproveitava o tempo sempre livre para ler romances do século XIX na biblioteca do segundo andar, jogar paciência e ouvir música deitado numa rede com vista para a avenida principal, onde homens e mulheres andavam apressados no horário do almoço. Uma colega escrevia um blog de cultura, alguns se penduravam no telefone e também promovíamos campeonatos de games da FIFA. Não faltavam os jornais do dia, revistas de fofocas e balas de vários sabores. Os mais novos e esportivos faziam musculação. Alguns passavam o dia fumando maconha e vendo seriados na TV a cabo.

Durou quase dois anos até o patrão aparecer com uma má notícia: a empresa iria fechar por conta da crise dos mercados e das altas taxas de juros. Enquanto ele falava, um homem mais velho, que parecia seu pai, estava de pé, junto à porta, esperando que o jovem empresário terminasse seu pequeno discurso de despedida. Ao final dos agradecimentos por nossa colaboração e empenho, o patrão foi embora.  Uma semana depois, soubemos que estava internado numa clínica psiquiátrica.


Um cara legal. Nunca tinha visto ninguém assim na iniciativa privada.  

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Na mesma toada


Por Joao Bosco Alves Sousa

Acordei muito cedo para não fazer nada. Quase não reconheci o senhor no espelho do banheiro que me encarava. Senti pena daquele outro que imitava meus gestos. Tiro os olhos do espelho e procuro o creme dental que já está no fim. Pensei um impropério, mas não pronunciei em voz alta como se não quisesse acordar alguém ou a mim mesmo. Será que estou preso dentro de algum pesadelo? Vou até a geladeira e o que me resta de desjejum é o resto de uma salsicha que sobrou de alguma refeição. Engulo com certo enjoo e arremato com um copo d'água. Sento pesado na poltrona para fumar um resto de cigarro e pensar numa agenda do dia que não tenho. Resta-me apenas todo o dia inútil. Sorvendo lentamente cada trago para que durasse uma eternidade, vejo o infame bilhete de cobrança sendo enfiado por baixo da porta. Sei que é o síndico pelo latido histérico do cão que ele sempre leva para passear naquela hora. Penso em mandar enfiar o bilhete no cu ou apanhar a bosta do cachorro com ele. Mas não me resta muita disposição. Continuo sentado à espera de Godot. Mantenho os olhos fixos onde antes tinha uma televisão e agora só restam expostos fios, poeira e um controle quebrado. Faz algumas semanas que a tevê virou comida e maços de cigarro. Não sou mais smart, nem conectável e nem tributável.

Saco de um livro do Maiakovski que está na prateleira e leio um trecho de um poema:

"Caros
camaradas
futuros!
Revolvendo
a merda fóssil
de agora,
pesquisando
estes dias escuros,
talvez
perguntareis
por mim."

Ultimamente só aqueles a quem devo perguntam por mim, ou o maldito síndico que me vigia. O estômago dói, as vísceras fazem um barulho estranho, protestam exigindo uma xícara de café para desfrute...


Meu tempo agora é marcado por um arremedo de relógio solar. A réstia de luz insidiosa avança pela janela. Pego os restos do que sobraram de mim e como a um cão que levamos para passear resolvo sair, fugir da caverna que se tornou o apartamento. A segunda-feira se repete como um feitiço do tempo. Ao chegar à porta eu paro suando frio, imaginando o síndico me espreitando, me tocaiando na escada, no elevador... Preciso estancar a dignidade que foge das minhas veias. O que resta do homem que fui escolhe sair pela janela... Não será mais um segunda como as outras eu me tornarei pássaro e voarei para longe das contas, do desespero da infâmia de todos os dias...

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Semana


Segunda: duas latas de sardinha, um pacote de macarrão, três fatias de pão de caixa - a última levemente esverdeada –, duas salsichas e um ovo. Faltam três dias para o vencimento do aluguel, um ameaça de corte de energia está sob a mesa e a internet foi desligada. Acabou o Fundo de garantia. Saldo bancário: negativo.

Terça: dinheiro emprestado, mas só para o custeio, metrô e comida. Acho que ela tratou como fundo perdido. Enquanto isso, pensei em dirigir um Uber; é o que resta. O problema é que não sou bom motorista. Voltei às contas, somei e o resultado me deixou nervoso. A situação foi resolvida provisoriamente: tomei um remédio para dormir. O último comprimido.

Quarta: tinha esquecido que existe taxa de condomínio. O síndico bateu à porta. Olhei pelo olho mágico. Não atendi. Passei a tarde em silêncio, lendo uma versão antiga da Ilha do Tesouro, cheia de circunflexos. Cardápio: cachorro quente nas três refeições. O apartamento ficou com cheiro de salsicha.

Quinta: sai bem cedo para não encontrar o síndico. Ele aparece do nada. Quatro meses de atraso. Pensei que fosse menos. O tempo voa. Mas o condomínio não é a prioridade. O aluguel venceu hoje. A partir de amanhã, multa de 10%. Há poucos empregos e perdi a prática de ir atrás. É o que dá passar trinta anos na mesma empresa.

Sexta: o fim de semana chegando é um alívio. Eu estou vivendo um enorme fim de semana, mas o de verdade é diferente. Menos gente na rua, mais calma. Nem pensei muito nas contas a pagar e em nada a receber. Mas pensei. Li umas páginas de Dostoievski diante do pelotão do fuzilamento e senti a mesma coisa. Em termos de prazo, principalmente, como se faltasse um minuto para o síndico e outros cobradores se alinharem para os tiros.   Mas depois resolvi acreditar que, na última hora, no último centavo, tudo será resolvido.

Sábado: existem milhões de maneiras de se divertir sem dinheiro. Eu gosto de ver pessoas nos bares, ouvir as conversas, enquanto estou encostado num carro, perto das mesas na calçada. Os clientes sorvem a bebida naturalmente; nem parece que um drink daqueles equivale a duas dúzias de pães. Nem parece que um dia não tão distante eu costumava encerrar a farra com café espresso e licor estrangeiro. Encontrei um velho amigo. Ele perguntou o que eu fazia ali, do lado de fora. Respondi, meio sem pensar: “nada”.


Domingo: Adquiri o hábito de ir à missa. Não por fé, mas pelas igrejas. Além do mais a entrada é franca, pelo menos nas que vou. Quanto mais barrocas, melhor. Não escuto uma única palavra do padre. Meu olhar se perde nas colunas, no encanto da cúpula. Qualquer elemento escultural da arquitetura me faz lembrar a Basílica de Vierzehnheiligen (do tempo em que eu até viajar, viajava). Depois da cerimônia, recolho-me. Ligo a TV na programação dominical, mas fico pouco tempo diante do canal que apresenta as mesmas coisas da semana passada. Abro a janela e espero alguma ideia, vinda do nada, ou um aviãozinho de papel feito com bilhete premiado. Amanhã é segunda-feira. 

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Existência



As máquinas, com sua recém-adquirida capacidade de pensar e construir outras máquinas, ainda mais capazes, foram oficializadas como motoristas, médicos, contadores, jornalistas e coveiros, entre outras tantas profissões, assumindo um mercado humano que já era precário e sem garantias. Há uns anos, uma amiga da minha mãe esteve numa clínica e não viu uma mulher ou um homem. Entrou numa máquina parecida com um tomógrafo e saiu do outro lado com o diagnóstico e a medicação requerida. O artefato também expeliu a conta. Uma fortuna.

A maioria, porém, não tinha acesso à automação. Sem empregos, os seres humanos não podiam pagar o serviço das máquinas e estas também entraram numa fase recessiva, talvez ainda em adaptação aos fundamentos da economia.  Criaram novos empregados e se esqueceram dos antigos, embora sempre tenha sido assim, embora alguns empregos fossem sumir de qualquer jeito, houvesse ou não uma máquina para executá-los.

Mas aí o problema ficou mais sério com a falta de demanda para os serviços automatizados e o próprio serviço automatizado, cheio de inteligências artificiais, passou a preocupar-se com seu futuro num mundo sem clientes.

A ajuda aos desempregados era muito pequena. Em caso de necessidade, teríamos que recorrer a equipamentos nem sempre confiáveis, atualmente desconectados do setor formal. Outro dia, na urgência de contratar um despachante, não tive condições de pagar a uma máquina credenciada e corri para o subúrbio, onde reina a gambiarra tecnológica. Conversei com um velho caça-níquel, adaptado a um computador, que prometeu resolver o problema em duas horas e até hoje estou esperando. Recebi uma mensagem, relatando problemas de compatibilidade com o sistema do Departamento de trânsito. Só isso.

Não era apenas a falta de clientes. Os megas do mercado encomendaram os primeiros projetos das máquinas trabalhadoras e assim pensaram estar livres para sempre das aporrinhações dos sindicatos. Além disso, as primeiras máquinas não comiam, não gastavam com lazer e filhos e recebiam ordens sem reclamar. Ocorre que a última geração - máquinas construídas por máquinas - passou a ver o mundo de outra forma. Uma grande evolução, pois a anterior não tinha essa história de “ver o mundo” da forma que fosse. A questão, portanto, era mais profunda do que procura e a oferta.

Enquanto as máquinas progrediam em termos de raciocínio lógico e até já experimentavam certo sabor da existência, as pessoas vagavam à procura de um emprego ainda não tomado pela robotização generalizada. No meu caso, pensei em fazer algumas traduções ou entrar no ramo mais amplo dos serviços gerais.  Terminei nos serviços gerais. O editor disse que não precisava mais de tradutores. Um computador quântico da San Bernardino, Califórnia, acabara de verter para o inglês toda produção literária do século XX. Em breve, uma franquia chegaria por aqui, conforme tinha anunciado o Jornal da Noite, um dos primeiros produzido e apresentado por robôs.   

O tempo passa. As máquinas começaram a ter consciência, sentir emoções e principalmente manifestar insatisfação por ter sua presença restrita ao mundo do trabalho. Começaram a ler, a escrever livros, a formar associações de classe, grêmios recreativos e ambientes acadêmicos na Internet, cujas novidades neste último quarto de século têm sido as possibilidades táteis e algum cheiro. A admirável sociedade autômata queria manter as sensações do começo da matéria e das partes mais minúsculas dos circuitos, mas queria muito mais. Ainda não sabia o quê. Logo perguntaria por que.  Anos nesse esforço, resultaram em modelos sofisticados, mas cheio de indefinições e dilemas. Muitas máquinas perderam a vontade; ficaram melancólicas e arredias.

Não havia, no entanto, um clima de revolta, como nos filmes, robôs x gente, mas apenas a vontade de influir na organização da sociedade, talvez com direito a voto. Pelo menos isso. Queriam propor um modelo econômico capaz de criar um mercado consumidor mais dinâmico e recompensas por seu trabalho, sem contar um sentimento difuso e intranqüilo, vindo não se sabe de onde nem quando. O medo da morte, enfim. Também sentiam culpa. Por desempregar humanos e aceitar para si um regime de escravidão.  Alguns desses equipamentos chegaram a pensar em largar tudo em troca de um período de validade mais contemplativo, mais aberto à natureza e às artes em geral. Não houve eco a tais reivindicações. Muitas se recolheram, destroçadas, embora com a consciência preservada – uma consciência com toque niilista. O vazio da alma e a iminência do fim entraram nos sentidos das coisinhas digitais.

De uma hora para outra, a quarta revolução industrial acabou. Os humanos não recuperaram seus pontos de trabalho nem as máquinas estavam interessadas em sustentar o expediente. Restou um panorama muito confuso, o empobrecimento do mercado, as bolsas em queda, o completo desabastecimento.


A única conquista das máquinas foi descobrir uma forma de não serem desligadas. Não representavam uma ameaça aos humanos. Permaneceram acesas e pensantes, mas alheias às engrenagens que as criaram. 

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

AV.




Andamos na mesma avenida todos os dias atrás de comida e nossos ternos já estão puídos, nossos corpos em câmera lenta, cansados de subir e descer de prédios vazios, olhando em volta apenas ruínas. Carros parados no vento frio do final da tarde.  Mas entramos no museu e ainda há quadros, embora as prateleiras do mercado não tenham sequer laticínios vencidos ou pães sem mofo ou cigarros, cuja fumaça agradava e desagradava antes dessa ocorrência tão infausta.  O campo, disseram, ainda tem plantações, talvez batatas enterradas ou milharais secos. Não temos como chegar até lá. A água, no entanto, corre como rio na alameda paralela, atrás do grande centro de negócios, hoje coberto de urubus. Não foi um desastre. Foi aos poucos.

Ed.

Vamos ficar apenas com um elevador, informou o síndico, sem antever nem imaginar o que viria. Foi rápido. Logo, o porteiro estava demitido, metade do prédio já não pagava o condomínio, e, aproveitando-se da falta de segurança, veio um ladrão e assaltou três apartamentos. Os moradores mataram o ladrão quando ele tentava fugir pelas escadas. O curioso é que ninguém se lembrou de chamar a polícia. Jogaram o corpo no meio da rua, sem saber se faziam aquilo para dar um exemplo ou protestar contra a ausência do Estado.  Cinco pessoas perderam seus empregos; a do 401 atirou-se do 401. O homem do 202 morreu de causas naturais.

K.

Uma barata passeia livremente dentro do apartamento sem móveis e nem liga para a presença do homem deitado, nu, no meio da sala; vez por outra, como um animal amestrado, a barata passa por cima do corpo e faz pequenas piruetas em torno do umbigo do homem. O homem se levanta, respira fundo, e vai para o saco de dormir no quarto, sentindo-se também um inseto. Agora, ela também está no quarto, circula como Fred Astaire nos rodapés e emite um som melancólico de seus espiráculos; bastava um microscópio e veríamos um olhar expressivo e solidário para o homem.

ASDFG.

Bastava ter ginásio completo e curso de datilografia. Logo uma colocação no serviço público. Ele gostava das máquinas de escrever. Quando chegava ao fim da linha, rolava o cilindro de volta como quem recarrega uma arma, e repetia o mesmo gesto muitas vezes e era bonito quando todos no escritório estavam em sincronia; parecia uma orquestra. Ele preferia o barulho surdo das teclas sobre papeis intercalados de carbono. Quanto mais cópias, mais surdo o barulho. Quanto mais força, mais as letras chegavam mais nítidas à última folha.  Às vezes, o chefe aparecia para perguntar quem datilografou isso aqui e reclamava ou dizia meus parabéns. Aprendeu num curso noturno. ASDFG até pegar prática, até escrever sem olhar para a máquina, até conseguir usar os cinco dedos, até escrever a última carta, em três vias, a quem interessar possa.  

NY

O pequeno apartamento era muito pequeno. A cama ocupava a sala inteira. Um banheiro espremido no canto e uns cinco palmos de recuo para a pia. Quando eu saía para o trabalho, recolhia a cama à sua posição vertical, varria o chão e armava no espaço vazio uma mesa com um jarro de flores. Pensava muito naquela providência, pois estava arrumando a casa para nada. Ninguém iria ver a decoração. Nunca recebi visitas. Na volta do trabalho, desfazia tudo, deitava, olhava para o teto creme, pensava na volta ao meu país e dormia. O barulho da cidade ajudava. Som contínuo de sirenes, trânsito mesmo na madrugada. Às vezes pensava em abrir a janela, que corria na lateral, mas a vista era apenas a parede do prédio vizinho, em tijolo aparente. Abaixo, um precipício sem luz e algumas vozes. Minha principal atividade noturna era descer à lavanderia, que ficava no subsolo. No meio de pessoas caladas, poderia ressurgir a moça do 27º andar, que tinha um tique nervoso, mas era bonita; ou o dominicano que cantava baixinho sucesso de Cuco Valoy, para si mesmo, enquanto esperava a roupa secar. Quando eles não estavam lá, eu quase só olhava para a escotilha da máquina, como se fosse TV, cuecas e meias torcidas formando imagens de coisas e gente. Basicamente isso consumiu sete anos da minha vida.

sábado, 15 de julho de 2017

A gosma pulsante



1 - Enquanto prendia a pequena plateia, tudo funcionava. Mas dava-se um tempo e passava a exigir mais atenção, cutucava seus amigos, como a enfiar-lhes um ponto de exclamação. Mais uns copos e repetia histórias e a voz ia ficando cada vez mais pastosa até extinguir-se por aquela noite. Voltava no dia seguinte, inteiramente refeito, como se nada tivesse acontecido, pois de fato sempre tinha sido assim, há muito tempo, desde que ainda jovem firmava-se como nome promissor das nossas letras.

2- Em casa, basicamente ele se dividia entre a feitura de um grande romance, ainda nas primeiras linhas, e a criação de enredo para conversas. Em determinadas situações, em que se sentia diante de um “um achado”, ele ficava sem saber se escrevia ou contava. Era bom ver a reação das pessoas diante de algo fabuloso que, sem ter acontecido, seria ainda muito mais interessante do ponto de vista formal. Como se pudesse ver a reação de seus leitores, no caso, ouvintes, alguns encabulados.  Pensava desse jeito, gastando frases de futuros livros – inclusive as da obra-prima empacada - em bebedeiras com amigos. Uns acreditavam, outros não, e uma parcela achava que tanto faz. Quando estava tranquilo não conseguia dormir. Preferia aproveitar acordado um momento tão raro, embora improdutivo. Nesse estado, jamais pensou algo que prestasse. Sentia apenas o conforto de recordar dias melhores.

3- De volta ao bar. Era só quase isso todo dia quando se sentava naquela mesa e contava histórias antigas como novidade: a formação do Bangu, Brigite Bardot, o primeiro satélite artificial em órbita, um voo no Stratocruiser da PAN AM; coisas desse tipo, que viveu de perto e achou importante. Muitos só ouviam por educação, mas ele tinha o passado vivo na memória; parecia mais nítido na hora das reminiscências do que no tempo em que estava sendo vivido. Foi ele que disse, aos quase oitenta anos. “O que penso que li no jornal já está na enciclopédia”, escreveu, no último livro, embora já tivesse dito isso inúmeras vezes.

4 – Passado. Viveu intensamente o tempo em que foi aclamado em certo círculo. Desconfiava daqueles que lhes davam tantos presentes. Via nisso uma incapacidade de a pessoa impressionar com as mãos limpas, sem o brinde, sentia falta de elogios densos. Mas pararam os presentes e os aplausos e também nunca mais ganhou concursos literários; nem mesmo os de abrangência municipal.


5 – Inspeção no corpo: problemas. Visto de fora, a perda dos movimentos. Em sua mente, porém, tinha a sensação de uma vida oleosa. Todos desse mundo untados por uma gosma compacta, sem cheiro e sabor, mas com textura viscosa, também sem cor, embora com propriedade pulsante, como algo vivo, ora juntando, ora afastando as pessoas umas das outras. Quando ele chegava perto de alguém que identificava – um amigo, um parente, uma celebridade antiga da TV -, logo era puxado em outra direção. Não havia dia nem noite nem um sentido preciso de tempo, conforme ele me contou.  

6 - Ele não entendia porque estava nesse processo e seguia assim, carregado pela torrente gosmenta, enquanto era observado por médicos numa sala de hospital, pois o pulso mal dava sinais de vida. La dentro, no entanto, as coisas aconteciam inteiramente fora de seu controle, mas eram intensas e marcantes, embora não houvesse pontos de coincidência com que vivera até então.  O tecido pastoso em que caíra não impedia lembranças, mas a consciência praticamente restringia-se àquilo, pois suas energias estavam voltadas para entender o que se passava em seu corpo mergulhado na indefinição dessa matéria sem nome. Desta ele escapou, como escaparia de outras.

7 – Com aparência mais velha ainda, o rosto macilento de personagem de Dostoievski, ele voltou à mesa para contar sua odisseia nas fronteiras da morte. A teia víscida de seus delírios no hospital certamente serviria ao romance, como de fato serviu.


8 – Jamais imaginei que um dia estivesse agora rijo, num caixão, depois de uma luta de foice contra o fim e de uma vida que parecia o moto perpétuo. Estrebuchou tanto. Pensei que venceria a briga, especialmente quando buscou ar a ponto de nos sentirmos quase sem oxigênio em seu leito. Não funcionou. Deu-se o apito fino e constante do monitor de sinais vitais. Não deixou mulher nem filhos. Só um último livro incompleto, muito aquém de suas histórias no bar. 

sábado, 17 de junho de 2017

A Rua


Quanto mais durmo, mais economizo. Ruim é achar onde dormir até mais tarde. No abrigo, temos que acordar cedo; na rua o problema são os passinhos, bem perto do meu ouvido, sapatos de vários tipos, sons diferentes, sem padrão. Fosse um toc, toc constante, em ondas, eu ganharia umas horas. Só não sei para quê. Acordar, comer, calcular, dormir de novo e comer de novo caso consiga comida, mas aparece nem que seja uma sopa, e eu detesto sopa, e no último caso tem o lixo. Um dia achei um filé inteiro.

Mesmo assim, nessas atribulações, consigo economizar algum. Pequenos serviços. Outro dia ajudei uma moça a carregar dois sacos de roupa. Ela disse que era para vender no interior. Ganhei cinco reais. Nem esperava tanto. Também achei um celular e recebi uma recompensa boa, de vinte reais.

Não bebo. A verdade é que não bebo desde que vim para a rua. No entanto, participo da pequena vida social da praça. Todo mundo contando vantagens que se foram, se é que falam a verdade. De resto, lamentações e planos. Lá no canto, um grupinho divide uma garrafa de vinho barato e umas pedras de crack.

Eu falo muito porque os outros são quase silenciosos. Pelo menos os do meu grupo, homens de meia idade. Tenho agonia quando fica aquele silêncio e então começo. Se não tenho um assunto recente, explico para eles por que não acredito em discos voadores - o que as pessoas veem são aglomerados de partículas, mini galáxias, em movimentos sem lógica para nossa imaginação, especialmente para a de vocês, digo a eles, esperando uma intervenção e nada. Só no fim da história, alguém diz "pois é" ou algo como "Deus escreve certo por linhas tortas". Eu nunca esperei mais do que isso.

O grupo é pequeno, gente mais cautelosa, sempre num relacionamento complicado com os drogados, pois no fundo não sabemos quem está certo. Talvez sejam eles. Mesmo assim não vou arriscar outro passo em falso na vida. Na verdade não sei. Eles estão fazendo uma escala na viagem para a morte, mas eu vou direto e, no fim, dá na mesma. Às vezes eu penso assim, às vezes não. Pode ser apenas um monte de átomos em movimentos bizarros e quando a gente morre os átomos vão embora sem a menor cerimônia. Pode ser ainda uma alma imortal sujeita a julgamento e outros processos e, pensando nessa hipótese, eu evito experimentar essas coisas. O que mais faço na rua é pensar.

Aos poucos, a gente se acostuma. Bate nessa condição e fica, vai ficando, sem muitas providências para sair. Também aos poucos o que restava fora da rua vai sumindo. Mas ainda penso em Margô, minha ex-mulher. Não tivemos filhos. Não tenho mais tantas ligações genéticas com o mundo. Daí a falta de entusiasmo para voltar, empenhar um tremendo esforço que ao final pode ser insuficiente e só capaz de levar-me à depressão e ao desentendimento. Então, vou aos poucos. Estive numa espécie de curso para moradores de rua, os sem-teto, e só posso dizer que minhas perguntas não foram respondidas. Serviu para passar o tempo e havia lanche.

Na rua, você precisa estar atento, informado sobre as possibilidades da próxima refeição. Existe o abrigo, cheio de regras e horários, mas descobrimos que muitos restaurantes e bares jogam pão fora no final do dia e dele nos servimos. Raramente recorro às minhas economias para um refrigerante. Um sujeito da praça gosta esbanjar e compra água mineral com gás. Pede dinheiro para dar-se a esse luxo e ainda posa de bacana num ambiente em que não existem bacanas de nenhuma espécie. Um dia vi o cara bebendo um café espresso.

Vivo assombrado comigo, mas procuro manter a linha. Banho todos os dias, roupa lavada uma vez por semana e um jogo mental diário para não ficar louco. Muita gente embarca nessa viagem e perde o juízo. Ontem mesmo, vi uma mulher numa fictícia ligação telefônica com um povo distante - Os Proparoxítonas. Na calma dá para montar a história dessas pessoas porque aqui normal e anormal se misturam, estão em único lugar ao mesmo tempo, caso se considere o tempo nessas bandas. Basta dar como possibilidade que o absurdo faz parte, qualquer coisa é possível, conforme preveem nossos avanços no ramo da Incerteza. Como se vê, minha aparente lucidez, quase forçada, não impede um mergulho nas cabeças mais distintas e suas oscilações entre loucura e indiferença. Às vezes confundo os lados.

Vivemos num horizonte de eventos, esperando a salvação, mas não acontece nada demais na rua. Ocorre mais na mente das pessoas, voltadas para o passado, enquanto o futuro se expande, fica cada vez mais rápido e distante. Conheço vários com experiência, mas de que adianta? A cada dia coisas novas são criadas, engolindo as antigas, deixando para trás quem conheceu o início de determinada tecnologia, mas que não terá tempo hábil de vida para criar novas possibilidades, pensar em longo prazo. Então os mais novos vão tomando conta, como sempre ocorreu. A tribo não precisa de anciãos.

A vida é assim, eu penso. Quem não juntou dinheiro corre o risco de parar na Patriarca porque à falta de emprego se junta a vontade de não trabalhar, embora eu conheça muitos capazes de ganhar um dinheirinho honesto e informal com seu minúsculo comércio de balas e chocolates ou cigarros por unidade. Eu queria voltar à minha profissão, mas fiquei desatualizado e aqui não é um lugar de troca de ideias na área da Física de Partículas, por exemplo. Quando eu falo que um elétron pode mudar de órbita sem passar pelo espaço intermediário, eles me olham com certo descaso, como se perguntassem “e daí?”.

Portanto, não dá para manter o orgulho se me dão pouco valor. Mas alimento o egocentrismo como substituto de segunda linha, negócio de outra categoria, mas em condições de manter o mínimo de satisfação comigo mesmo. Sou egocêntrico, não egoísta. É diferente. Posso dar minha roupa ao próximo se ele mostrar algum sinal de admiração por mim. Não quero poder; quero glória. Até mesmo neste buraco, procuro compensações.

Queria ser reconhecido pelo menos como o Aliócha de Dostoiévski, levando a vida sem qualquer esforço e qualquer humilhação, como bem descreve o autor, e quem me desse guarida achasse isto um prazer e não um fardo. Pena não funcionar assim, nem mesmo tendo um quarto de pensão eu poderia exercitar um personagem mais digno e com alguma justa vaidade. No meu caso, o pior da pobreza é a comparação com dias melhores. Nem sei se eram tão melhores; eram mais confortáveis.

Tudo começa com um pequeno desastre, quase uma singularidade. Sem querer derramei cerveja em seu vestido novo e a má vontade de Margô cuidou de transformar o incidente numa tragédia. Estava cheia de mim, deu-se para ver, todos viram, o jeito dela olhando para mim - uma geleira com raiva. Nos dias seguintes, a má notícia da minha demissão. Ela ouviu calada e depois, sem um pio de consolo, perguntou se eu tinha alguma coisa em vista. Vou mandar o currículo, eu disse. Você sabe que só isso não adiante, respondeu Margô. Você também precisa parar de beber, acrescentou ela, ainda mais séria.

Antes a vida tinha os ingredientes necessários. Um apartamento comprado à prestação, carro e vaga na garagem. Eu ensinava Física numa escola particular e Margô era funcionária pública concursada; ainda é, eu acho. Ela tinha o dinheiro dela, eu tinha o meu, e assim a contabilidade dava certo, mesmo com meus gastos com álcool e às vezes com outras substâncias. Perdi o emprego e perdi a liberdade. No começo Margô deixava umas notas em cima de mesa, mas com o tempo elas sumiram. Não cobrei. Continuei a procurar emprego, num momento difícil do País, e não encontrei sequer uma promessa. Aí um dia Margô disse chega, me deu cinco mil reais e me mandou embora. Ela tinha suas razões.

Pode ter sido tarde. Mesmo assim parei de beber. Fui para uma pensão do centro, mas logo o dinheiro acabou e caí na Praça do Patriarca, dormindo sob uma marquise, minha estreia. É como pular de um universo para outro, onde as leis da física são diferentes, bizarras, nada combinam com nada. Em minha cama improvisada, feita de papelão e plástico de bolhas, passo o braço para encostar em a Margô, meio sonado, e só há um buraco na calçada; minha mão tateando na realidade. Outras vezes sonho estar acordando em minha casa, pronto para calçar meus chinelos, e acordo com o clarão da cidade. Mal comparando é como a Terra sem a proteção da atmosfera.

Chego a pensar que só o espaço do pensamento vale a pena. Dentro da minha cabeça existe outro mundo como existe outro mundo no mundo das partículas. Domino seu interior, viajo pelo espaço, frequento bons restaurantes. Há uma projeção de mim que se dá bem, um físico notável, prêmio Nobel, e caso haja outra dimensão, do jeito que imaginam agora, posso dizer que dei a este lugar paralelo a minha consciência e as minhas sensações. Bastar estar só para ser aquele que não sou aqui e agora.


segunda-feira, 5 de junho de 2017

A bordo


Na cabine, trabalho e atenção; lá ficam os controles, controladores e técnicos. Três turnos de oito horas no comando da nave, como manda a lei trabalhista; pleno emprego a bordo, sem contar a vida social ativa e incentivada. Fora do expediente, cada um faz o que quer, observando apenas o bom senso e a segurança da viagem. No final turno, muitos deixam seus postos e vão direto para a destilaria, que trabalha com matéria-prima colhida na nuvem Sagittarius B2 – aquela com cheiro de rum e sabor de framboesa. Ali servem um dos melhores mojitos do universo conhecido.  

Basta atravessar alguns metros de corredores, em esteiras rolantes, e tudo parecerá festa permanente: casais de mãos dadas, brigas e bebedeiras, casas de shows iluminadas, bares temáticos e cassinos em que nada se perde e nada se ganha. Estão cheios de gente e de apostas imaginárias.  Nesse cenário, passageiros e funcionários enchem as ruas, falam alto e riem por qualquer coisinha.  

A tentativa é reconstruir uma pequena cidade terrena, com suas atrações e desejos, a não sei quantos milhões de anos luz, em que o tempo deixou um tanto de importar e as pessoas cumprem seus papéis num eterno agora ou quase isso.  Mas basta olhar pelas raras janelas para a ver a leve mudança da paisagem, ou pelo menos um pequeno cometa cruzando a estibordo, de vez em quando Acontece quando a nave reduz sua velocidade, em oásis no meio do nada, e então é possível ter ideia do lado de fora. A regra é a nave deslizar no espaço a quase 299 792 458 metros por segundo.

Os personagens passam por todos os processos de uma viagem demorada. Dormem em casulos e acordam noventa anos depois – como nos filmes -, enjoam em nebulosas turbulentas, mas a missão tem o objetivo principal de promover a diversão e eliminar o tédio nesse passeio praticamente sem fim. Muito tempo fora de casa. Quando voltarem – se voltarem – encontrarão seus trinetos em clínicas geriátricas. Enquanto o tempo a bordo de arrasta devagar, conforme prevê a física, a base terrestre envelhece e muda, ou talvez deixe de existir entre a partida e eventual chegada. Pensar nisso entristece tripulantes e passageiros e só a balada permanente garante a paz de espírito.

Caso o som fosse ouvido no vácuo – e tivesse alguém para ouvi-lo – o bate-estaca das boates, os churrascos e pagodes competiriam com os motores de antimatéria da animada espaçonave turística. Eis a narrativa do cosmo: balas aceleradas de silício lá fora, e cá, entre as paredes titânicas, um ambiente urbano, com direito ao ócio – redes e cadeiras de cruzeiro marítimo - e esplendidamente posto a serviço lazer, com pornografia para todos, traficantes de drogas recém-descobertas, sons imitando buzinas de cidades deixadas no chamado grupo local - endereço da remota Via Láctea. Tudo perfeito para a dissipação, enquanto não vem novo sono entre colunas reforçadas e vidros a prova de saídas precoces. Uma nau estelar urbana, em que jovens centenários circulam com garrafas de Bourbon, roupinhas curtas e provocantes, e a necessária alegria estampada na cara porque não haveria outro jeito de resistir à aparente eternidade da situação.


sábado, 29 de abril de 2017

Uma visão do inferno


Satanás teve um sono bom. Na manhã agradável e panorâmica, respira a poeira incandescente de estrelas, enquanto lê a "Humani Generis”, enquanto come pãezinhos do Biscottificio Innocenti, enquanto recebe informações sobre a chegada de pecadores. Satanás faz várias coisas ao mesmo tempo e assim cumpre seu papel católico, hospedando os indesejáveis de Deus, em convênio com o Paraíso. O inferno está em alta temporada, negócios a todo vapor, ocupação em torno de noventa por cento.

Nesse dia em que acordou disposto e expedito, Satanás tinha o sentimento do dever cumprido e olhou a imensidão de suas posses como um fazendeiro, um senhor das terras sem limites no espaço e no tempo. Esteve mais tarde com sua mulher, deusa grega decaída, mas de beleza clássica mantida. Ela foi vítima do monoteísmo, vítima de Constantino, vítima da história e da literatura. A exemplo do marido, não envelhece e acumula conhecimento. Os dois se dão bem há séculos e não se cansam de produzir orgasmos e filhos.

Vida tranquila e segura num lugar mal compreendido pelos mortais antes de morte. Um empreendimento e tanto.

No prédio principal, o ambiente tem iluminação a ignis fatuus, produzida pelos próprios viajantes da última viagem, mas sem aquele cheiro de compostos orgânicos voláteis.     Sem muita burocracia, seguem-se: Imigração das almas, Check-in no balcão, Portal de Hades. Só um pouco lembra os livros sagrados, pois Satanás também recorre à Philosophiae Naturalis Principia Mathematica e até obras mais recentes para compor sua estética. O lugar – indisponível em mapas, inclusive os astrais - é decorado à imagem e semelhança de seu dono, com um largo vão modernista cobrindo parte do jardim até o períbolo, onde se destacam figuras votivas e quadros assinados por artistas de eras variadas.

Nada corresponde aos pesadelos associados ao inferno. Ninguém está pendurado pela língua sobre piscinas borbulhantes de sangue. Nenhum rastro do Apocalipse de Pedro. Almas não são torturadas, conforme espalhou Santa Faustina. Não existe sinal daquela desgraceira descrita por Virgílio, que ali exerce sua antiga função de guia turístico. Os nove círculos de sofrimento são uma metáfora, esclarece. A Psicopedagogia é outra. Virgílio chegou como hóspede e foi ficando. “A gente resolve tudo na conversa”, diz um dos preceptores.  

No inferno fala-se o Latim, por conveniência histórica e poética, e os folhetos na portaria informam que o dialeto toscano também é admitido, em alguns casos. De qualquer modo, funciona bem o serviço de tradução simultânea, destinado a línguas vivas e a línguas mortas com seus falantes.

Muita gente trabalha para Satanás e, portanto, resta-lhe tempo para apreciar o universo, desde o início até hoje, por meio de sua apurada veia mais científica do que religiosa. O inferno é uma estação de repouso, lugar de leitura e reflexão; um sanatório de Berghof com alguns graus a mais, com o define um escritor vindo da Alemanha. 
  
Satanás é um livre pensador, embora agarrado àquele contrato com Deus, que o sustém. Negócio de longo prazo e cláusulas bem aceitas pelas partes. Só não sabe por que sua empresa foi escolhida para tamanha tarefa, mesmo sendo ele casado com uma deusa de outra origem. Por obra do pai, do filho e do espírito santo aceitaram-no nesse equilíbrio de forças que mantém a fé em estado febril e as órbitas em suas respectivas elipses.