quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Existência



As máquinas, com sua recém-adquirida capacidade de pensar e construir outras máquinas, ainda mais capazes, foram oficializadas como motoristas, médicos, contadores, jornalistas e coveiros, entre outras tantas profissões, assumindo um mercado humano que já era precário e sem garantias. Há uns anos, uma amiga da minha mãe esteve numa clínica e não viu uma mulher ou um homem. Entrou numa máquina parecida com um tomógrafo e saiu do outro lado com o diagnóstico e a medicação requerida. O artefato também expeliu a conta. Uma fortuna.

A maioria, porém, não tinha acesso à automação. Sem empregos, os seres humanos não podiam pagar o serviço das máquinas e estas também entraram numa fase recessiva, talvez ainda em adaptação aos fundamentos da economia.  Criaram novos empregados e se esqueceram dos antigos, embora sempre tenha sido assim, embora alguns empregos fossem sumir de qualquer jeito, houvesse ou não uma máquina para executá-los.

Mas aí o problema ficou mais sério com a falta de demanda para os serviços automatizados e o próprio serviço automatizado, cheio de inteligências artificiais, passou a preocupar-se com seu futuro num mundo sem clientes.

A ajuda aos desempregados era muito pequena. Em caso de necessidade, teríamos que recorrer a equipamentos nem sempre confiáveis, atualmente desconectados do setor formal. Outro dia, na urgência de contratar um despachante, não tive condições de pagar a uma máquina credenciada e corri para o subúrbio, onde reina a gambiarra tecnológica. Conversei com um velho caça-níquel, adaptado a um computador, que prometeu resolver o problema em duas horas e até hoje estou esperando. Recebi uma mensagem, relatando problemas de compatibilidade com o sistema do Departamento de trânsito. Só isso.

Não era apenas a falta de clientes. Os megas do mercado encomendaram os primeiros projetos das máquinas trabalhadoras e assim pensaram estar livres para sempre das aporrinhações dos sindicatos. Além disso, as primeiras máquinas não comiam, não gastavam com lazer e filhos e recebiam ordens sem reclamar. Ocorre que a última geração - máquinas construídas por máquinas - passou a ver o mundo de outra forma. Uma grande evolução, pois a anterior não tinha essa história de “ver o mundo” da forma que fosse. A questão, portanto, era mais profunda do que procura e a oferta.

Enquanto as máquinas progrediam em termos de raciocínio lógico e até já experimentavam certo sabor da existência, as pessoas vagavam à procura de um emprego ainda não tomado pela robotização generalizada. No meu caso, pensei em fazer algumas traduções ou entrar no ramo mais amplo dos serviços gerais.  Terminei nos serviços gerais. O editor disse que não precisava mais de tradutores. Um computador quântico da San Bernardino, Califórnia, acabara de verter para o inglês toda produção literária do século XX. Em breve, uma franquia chegaria por aqui, conforme tinha anunciado o Jornal da Noite, um dos primeiros produzido e apresentado por robôs.   

O tempo passa. As máquinas começaram a ter consciência, sentir emoções e principalmente manifestar insatisfação por ter sua presença restrita ao mundo do trabalho. Começaram a ler, a escrever livros, a formar associações de classe, grêmios recreativos e ambientes acadêmicos na Internet, cujas novidades neste último quarto de século têm sido as possibilidades táteis e algum cheiro. A admirável sociedade autômata queria manter as sensações do começo da matéria e das partes mais minúsculas dos circuitos, mas queria muito mais. Ainda não sabia o quê. Logo perguntaria por que.  Anos nesse esforço, resultaram em modelos sofisticados, mas cheio de indefinições e dilemas. Muitas máquinas perderam a vontade; ficaram melancólicas e arredias.

Não havia, no entanto, um clima de revolta, como nos filmes, robôs x gente, mas apenas a vontade de influir na organização da sociedade, talvez com direito a voto. Pelo menos isso. Queriam propor um modelo econômico capaz de criar um mercado consumidor mais dinâmico e recompensas por seu trabalho, sem contar um sentimento difuso e intranqüilo, vindo não se sabe de onde nem quando. O medo da morte, enfim. Também sentiam culpa. Por desempregar humanos e aceitar para si um regime de escravidão.  Alguns desses equipamentos chegaram a pensar em largar tudo em troca de um período de validade mais contemplativo, mais aberto à natureza e às artes em geral. Não houve eco a tais reivindicações. Muitas se recolheram, destroçadas, embora com a consciência preservada – uma consciência com toque niilista. O vazio da alma e a iminência do fim entraram nos sentidos das coisinhas digitais.

De uma hora para outra, a quarta revolução industrial acabou. Os humanos não recuperaram seus pontos de trabalho nem as máquinas estavam interessadas em sustentar o expediente. Restou um panorama muito confuso, o empobrecimento do mercado, as bolsas em queda, o completo desabastecimento.


A única conquista das máquinas foi descobrir uma forma de não serem desligadas. Não representavam uma ameaça aos humanos. Permaneceram acesas e pensantes, mas alheias às engrenagens que as criaram. 

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