terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O Herói da MPB

“Luzia, luzia”, escreveu o compositor, achando um achado ou achando que achou. Adorava trocadilhos e frases sobre luz e mar, além de verbos junto com nomes de mulheres. Tinha musas, frequentava luaus e lia Eduardo Galeano. Experimentou sua maior glória no tempo das letras de música com status de poesia. Não era grande coisa, mas dava para viver de shows em teatrinhos de sua cidade e até incursionar em outras partes do País, especialmente onde tinha amigos. Havia ainda os diretórios acadêmicos para escutar seu violão, e depois sair com parte da plateia, ou a plateia inteira, para as badalações, noites sem fim, e tome mais composições inéditas, algumas feitas na hora, com novos parceiros, muitos conhecidos naquele mesmo dia. Namorava, bebia, fumava muitos, roliúdes e béquis, e corria para casa da mamãe quando a coisa apertava.

Hoje, 30 anos depois, está na merda. Não gravou um disco nem ficou famoso, como pretendia. Chegou perto. Conheceu um produtor de gravadora no século passado e o cara achou que podia tornar sua música mais palatável para o público. Piora aqui, piora ali, e estava feito. Mais um nome nas paradas. O herói da MPB não aceitou o arranjo e o tempo foi correndo, as meninas sumiram e a vontade de transformar o mundo perdeu-se no passado. O caminho para a miséria foi curto, como sempre, e o animal extinto, o compositor popular, homem das letras, estava solto por ai, com mais de 50, três filhos de três mulheres e dois netos.

Vez por outra tenta. Toma o ônibus com o violão e as pessoas observam estáticas, mas algo me diz que estão meio escandalizadas com uma cena tão antiga. Poucos andam hoje com violões debaixo do braço. Ele conseguiu trabalho num bar. Um bar muito pequeno e modesto para suas pretensões de 30 anos atrás. Senta no banquinho, afina o instrumento e dispara o repertório exigido pela freguesia. As pessoas que vão a barzinhos, com destaque para as que usam a expressão “barzinho”, estão ali para ouvir MPB. Mas a MPB de sempre. Não é dado ao artista o direito de apresentar suas próprias músicas, mesmo que elas tenham três décadas. Não importa, são desconhecidas. Então, o pessoal está nos barzinhos para repetir o mesmo ritual, como ir à missa do domingo.

Nosso herói está numa situação desagradável. Não teve auge e termina a carreira num lugar pior onde começou, sem o assédio das meninas, sem amigos cantarolando suas letras, sem nada. Instinto de sobrevivência em estado puro. Canta, no tom burocrático, quase todos os standards da MPB. O pessoal do barzinho parece entediado. Há casais silenciosos e outros fregueses nem ai, conversando alto, às vezes no celular. A apresentação, ainda bem, está quase no fim, entra o “Bêbado e o equilibrista” (caía a tarde feito um viaduto etc.), e é hora de voltar para casa. Com o violão debaixo do braço.

A história do herói da MPB passa rápido. Dias sobre dias, o barzinho e o violão, ônibus lotados, café na padaria e grana curta. Um dia resolve gravar um CD num pequeno estúdio do bairro. Uma coletânea, pois não compôs nos últimos anos. A obra está pronta. Ouve, ouve mais uma vez e o velho senso crítico lhe diz o pior – tudo aquilo, a música que embalava as moças nos DCEs, perdeu a força, o charme, o bonde. Nem chega perto do Djavan que canta no barzinho (Aaaaaiii... Quanto querer cabe em meu coração etc.). Então ele desiste. Até que foi bom, enterrou uma era. Luzia não luzia mais.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Fumando no quarto

O e-mail chegou com a idéia do texto e mil recomendações. O assunto: cigarro. Sigo o exemplo do matador de aluguel. Não quero saber o nome do cliente nem seus propósitos. Faço o serviço, recebo a grana e vou dormir tranqüilo. Desta vez, no entanto, fiquei preocupado. Muitas restrições, embora a encomenda não tivesse jeito de propaganda contra o cigarro. Nem contra nem a favor. Estranhei.

Prezado,
Estamos precisando de uns quatro mil caracteres sobre o cigarro. Escreva do seu jeito, mas não deixe de seguir o roteiro imposto pelo cliente. Nada de glamurizar o produto – W.H. Auden, Rita Hayworth e Humphrey Bogart estão fora, nem pense nisso, pois cairíamos no pedantismo ou no óbvio. Conheço suas limitações. Por outro lado, nem de longe relacione o cigarro com doença e morte. Macabro demais e não somos do Ministério da Saúde. Também estão fora: reflexões filosóficas, trechos de poemas e sambas-canção e literatices em geral. O texto deve ficar no mínimo do mínino, no cigarro em si: certa quantidade de fumo enrolada em papel. Com filtro, please, e sem muita fumaça. Aguardo.

Enviei o pedido em dois dias. Feito, pensei. Até o número da conta bancária foi junto com o texto. Na sexta, novo e-mail e aporrinhações inesperadas.

Caro,
Recebi um tratado sobre celulose e tabaco. Não era isso. Você falou de uma coisa, falou de outra, enrolou e mandou. Até números sobre a produção de fumo e técnicas de fabricação entraram na história. Google puro. Nem mostrei ao cliente. Sei que não é pro seu bico, mas tente ver o cigarro como Ítalo Calvino via suas cidades invisíveis. Concentre-se no pequeno tubo de papel, no fogo – fogo pode – destruindo suavemente a brasa... Enfim, nos detalhes. Mas não viaje demais. Trata-se de tabaco não de cannabis. Mãos à obra.

Passei duas noites em claro deslizando suave sobre lâminas dos vários tipos e classes de fumo, mostrando como são misturadas em diferentes proporções e como, finalmente, formam o blend, e ele me vem com esse e-mail. Fiquei deprê com a história do Google. Só estive duas vezes no site da Souza Cruz. Sinceramente não sei o que estão querendo. Vou partir para a historinha da brasa, talvez comparando com lava vulcânica, mas preciso saber se posso colocar um fumante no texto. Sem ele o cigarro não queima. Mas o fumante, meu caso, por exemplo, não deve pensar em nada, esse é o problema. Descobri um poema bacana de bandeira (“Amor-chama, e, depois, fumaça.../Medita no que vais fazer:/O fumo vem, a chama passa...”). Poema não pode.

Sentei. Escrevi a porcaria do texto em poucas horas. Que frila chato do caralho! Apostei na brasinha queimando e a vida se indo, não pelo câncer, é claro, mas indo naturalmente, seguindo seu rumo. De manhã, mais um e-mail do cara.

Querido,
Não foi de todo mal. O cliente achou simpático, gostou do seu estilo, mas o ritmo corporativo, principalmente na área sutil em que ele atua, é muito dinâmico. Desistiram do cigarro. O momento passou. Estão em outra. A boa notícia é que você fará o novo texto. É sobre um quarto vazio. Apenas quatro paredes, assoalho e teto. Não se anime tanto porque não pode citar construção civil nem desespero. Coisinha seca, crua e elegante. Quatro mil caracteres geométricos, entendeu?

Desisti do atravessador cheio de nove horas. Fiquei puto. Resolvi sacanear. Lasquei o texto sobre o quarto com um bocado de gente fumando lá dentro e conversando merda. Naquele fumacê dos diabos estavam Freud, Lacan, Pavlov. Sócrates, Platão, Kant, Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Trotsky e Lênin. Foi aprovado. Chega de intermediários. Quero conhecer o cliente.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A desordem pública

Nisso veio mais um para a briga e a confusão foi aumentando, aumentando, porque dois outros entraram com os pés, mais um jogou uma garrafa de café na cabeça do chefe e, de repente, quase todos da repartição estavam envolvidos nesse bafafá, sem saber como começou e como vai terminar. Então, a mulher do cafezinho teve o bom senso de chamar a polícia, enquanto, nas salas vizinhas, encarregados e subordinados já estavam trocando murros e safanões e até apareceu alguém com um revólver e deu um tiro, ainda bem que bateu na parede, mas nos andares de baixo, homens e mulheres pegavam qualquer coisa para bater uns nos outros, usando teclados de computadores, grampeadores, pés de mesa e até o retrato oficial do presidente da República.

A situação só fez piorar quando os policiais chegaram. Eram poucos e terminaram apanhando também, mas um deles teve tempo de pedir reforços pelo celular, no justo momento em que o fogo já ardia no gabinete principal, cujo diretor tinha saído mais cedo e deixado a porta aberta. A secretária dele, uma magrinha, acabou golpeada com um carimbo e saiu de lá correndo, com medo do fogo e dos colegas. Ai chegou o Batalhão de choque, com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, mas o cara do revólver reagiu com balas de verdade e duas pessoas caíram feridas, sangrando muito, sem socorro, segundo o relato de um jornalista que chegou naquele momento para uma entrevista que nada tinha a ver com rebuliço, era sobre previdência, e ele, coitado, também terminou metido no tumulto, junto com os funcionários de todos os escalões, departamento e seções.

Pelos cálculos de PM, que sempre informa quantas pessoas têm nos lugares, ao menos 130 servidores públicos federais participaram desse início da briga, que pode não estar ocorrendo só ali, mas em vários cantos ao mesmo tempo. Nada sobre as razões desses transtornos. Mais jornalistas foram chegando, os curiosos também, e o conflito ganhou a rua e quem estava apenas vendo passou a levar cacetada e a reagir da mesma forma, esticando a baderna a quarteirões adjacentes e levando a desordem para dentro dos ônibus, táxis e estações do metrô.

Daqui a pouco acaba o estoque de sinônimos para confusão porque o pandemônio continuou, cada vez mais ampliado, envolvendo o bairro, e alguns batalhões lutam agora entre si e por motivos inexplicáveis e talvez inexistentes. O certo é que lutam, trocam tiros, gritam e ninguém socorre ninguém. É um Deus nos acuda, e Ele não acode, pelo contrario, a coisa só faz degringolar, pois se irradiou para outros lados da cidade, famílias inteiras contra outras famílias e contra elas mesmas, num impulso exagerado de violência que parece não ter fim, principalmente depois que foram anotadas escaramuças no interior do Estado e correm até boatos sobre a demissão do secretariado do governador após uma discussão feia dentro do palácio por causa desse fuzuê todo. Passaram a trocar golpes de Tae Kwon Do, judô, sumo e Capoeira de Angola. Uma comissão de inquérito criada às pressas para avaliar a situação não teve tempo de avaliar nada e logo os inquiridores estavam participando da arruaça, movidos por ódios mortais, assim parecia, embora, mais uma vez, é bom salientar, não havia motivação para tais sentimentos. Nem razão nem lógica. “Por que bati nele?”, perguntou-se, em voz alta, um dos sujeitos de paletó e logo chegou à conclusão que bateu porque apanhou e assim andou a coisa até se agravar ainda mais.

Nas sedes de partidos, houve reuniões. A ordem era sair nas ruas, com bandeiras, em nome da causa. “Que causa?”, indagaram dois militantes e ninguém soube responder. O desentendimento, então, também adentrou ao seio partidário, e o que seria uma passeata, em defesa do povo (contra quem? Por quê?) acabou em quebradeira, tacles e tesouras voadoras, como nos Reis no Ringue e no Telecatch Montilla.

Gente que não brigava nas ruas, brigava na TV, mas só no bate- boca, embora ameaçando sair na tapa, especulando em mesas redondas sobre os motivos de tanta violência. Os cientistas políticos apostaram em insatisfação popular, os psicólogos em histeria coletiva, os juristas em crime organizado e os biólogos em alguma coisa na água. Não chegaram a qualquer conclusão razoável. Exceto que tudo ocorreu por acaso, sem mais nem menos, a partir do nada. Ocorreu, não. Está ocorrendo e vai piorar.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Sempre mais uma

“Hei, Dionísio, traga mais uma cerveja”, ela pede, aos gritos. Dionísio não é o garçom, mas o deus grego, filho de Zeus e da princesa Semele, a entidade das bebedeiras, seu preferido das aulas de Filosofia da PUC. Da mitologia, sobrou ele, para empurrá-la às farras. Todo dia a mesma coisa até ficar chapada, ininteligível e alheia, mas ainda com desejo e resistência. Severino, o garçom de verdade, deixa mais uma garrafa sobre a mesa e a noite segue sem muito futuro, pois os outros já entregaram os pontos. Menos ela.

Quase 50 anos, era hora de moderar, caso seguisse os conselhos das revistas sobre saúde e vida saudável, sua leitura de cabeceira nos últimos anos. Não. Continua no culto dionisíaco, e mesmo que ninguém se apresente parte sozinha para outro bar, embora já seja quatro da manhã. É inacreditável que continue bonita sob a enxurrada de álcool, mas não tanto para conquistar homens mais novos, com corpo e cara daquele modelo helenístico do Louvre - sua fixação sempre que bebe e bebe sempre. Então, vai com qualquer um abaixo dos 30, porque os ex-colegas de escola dos anos 80 ficaram carecas e barrigudos. Eles servem para a conversa, não para o sexo.

No dia seguinte, ela não tem ressaca moral. O negócio é aproveitar a vida, cada segundo, sem depressões. Quando não está bêbada, faz limpeza de pele e combate as estrias, apenas como fase preparatória para os turbilhões da noite. Há uma ansiedade em chegar não se sabe onde, mas talvez ela saiba ou pensa que sabe e por isso é tão frenética, mostrando-se invariavelmente mais agitada do que os lugares que freqüenta.

Acrescente-se ao descomunal aporte físico – ele não descansa - uma carga emocional e um conjunto de drogas e teríamos uma mulher à beira do colapso. Não é o que ocorre. Seus exames médicos não refletem os abusos. Todas as taxas regulares, saúde de ferro, ou “que saúde!”, como diriam nos tempos em que era a mais gostosa da praia. No fundo, só lamenta ter envelhecido por fora, mas compensa a frustração com o segundo tempo do jogo, que entra numa fase mais complexa; ela não é mais a presa, mas a predadora. A grande vantagem é saber o que está se passando. Diz que aprendeu a pisar na jaca com delicadeza. Nem sempre é assim, aliás, quase nunca, mas ela consegue passar a imagem de quem apenas se diverte e diverte os outros.

Um dos segredos é não reclamar de nada, da TPM ao mal-estar da civilização. Outro é ter dinheiro. O mais importante: apesar da extrema agitação e da vontade de viver muito exposta, ela circula à vontade no mundo da ironia. Pratica e entende, produz as mais finas, as melhores destas bandas, quase todas singulares e engraçadas, sempre no ponto, quentinhas e apimentadas, diretas e reflexivas, e na base do improviso, como sua vida. Isso é raro.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Cidades

Vivia entre duas cidades, ambas estranhas. Em nenhuma teve infância. Na dos rios, sonhava com a dos grandes prédios e alternava assim sua vida nômade, por necessidade e fuga do tédio. A viagem era como arrastar um barco num rio seco. A chegada causava-lhe dor, assim como a partida. Nas idas e vindas, a paisagem mudava, lá e cá, os costumes variavam, as ausências varriam o que restava de lembranças mais ancestrais. Os amigos foram morrendo – uns aos poucos; outros de repente. Não sobrou muita coisa, exceto os escritos, a mala velha e recortes de jornais. Nas duas cidades viveu intensamente. Depois, tudo virou um quebra-cabeça confuso, com bairros de um canto, ruas de outro; avenidas que já não existem mais, velhos casarões destruídos e quarteirões arrasados. O conjunto formava um terceiro aglomerado urbano, disforme e inconcluso, parecido com os lugares invisíveis de Calvino, mas sem a graça de Isadora, onde “os desejos agora são recordações”.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A rainha louca

O estilo delicado só atrai mulheres loucas, carentes de amparo e necessidade de freios. Saiu outro dia no jornal: molengas não têm vez com a maioria das fêmeas. Não é o caso desta personagem – linda, rica e destrambelhada -, cujo desfile nesta página exibirá um gosto exagerado pelo perigo e, ao mesmo tempo, a cautela a ser garantida por um homem certinho, culto e subserviente. Ele fez seus gostos, cumpre ordens, segura sua bolsa enquanto ela segura o copo, chama o táxi e a protege no auge da bebedeira. Dorme a seu lado, como um lacaio, e pode encostar-se, mas só um pouquinho, porque não se aproveita da constante embriaguês da semi-namorada. É, enfim, um porto seguro.

Ela bebe demais, mas o álcool só a faz mais doidinha do que já é. Só não dirige bêbada porque ele não deixa, só não tira a roupa em público porque ele não deixa e só não dá para todo o mundo porque, ai sim, ele ficaria puto e passaria uns três dias sem aparecer. Então, nessas ocasiões, ela procura se redimir - programa uma tarde light, um cafezinho na livraria, uma ida ao cinema. Depois só um chope ou dois e voltam para casa – a dela – para ver mais filmes e dormir sem sexo.

No dia seguinte o santo baixa de novo. “Venha correndo”, ela ordena, numa mensagem de celular, e ele vai. Já encontra a moça encoxada pela galera, dançando, braços para cima, equilibrando a long neck e ouvindo cochichos. Todos, na pequena área, querendo comê-la e ele, sem jeito, tentando pôr ordem na casa. Jogo difícil, diria o locutor. Mas ela segue, toda rainha, rodeada por maloqueiros, alguns sem camisa. “Assim não dá”, ele reclama. “Não dá o quê, porra?”, pergunta a louca. A dramática situação se agrava quando ela proclama: “Vamos todos lá pra casa”.

Previsível. A casa é bem servida. Vagabundo toma prosecco pela primeira vez na vida e ele tenta tirá-la do assédio pesado, como ocorre sempre. “Acho melhor você ir dormir”, ela diz “não vou”, e puxa um belga que apareceu ali ninguém sabe como e que já se sente dono do pedaço, quase lambendo o ouvido dela, falando em francês e alemão. O namorado ou amigo – nunca soube direito seu papel nessa história -, ainda está empenhado em separar a doida do estrangeiro impertinente, porque vai dar merda, e finalmente ela cede, não ao belga, mas ao sono. A luz do dia estourando, ela cai dura no sofá e ele toma as providências de praxe. Leva-a para o quarto, liga o ar condicionado e deita-se ao seu lado. Não na cama de casal, mas num colchãozinho de ar, desses de acampamento, como um cãozinho de estimação.

Quando acordam, à tarde, ele já está na sala, lendo os jornais. Ela chega, de banho tomado, quase serena. Deita a cabeça em seu colo e pergunta:

- Jura que nunca vai me deixar?

sábado, 14 de janeiro de 2012

Filme pornô falado

Ela me contou tudo, com todos os detalhes, e alguns bônus extras. A narrativa era de filme pornô com história, desses que não existem mais, porque o espectador não tem paciência para preliminares. A introdução já é a introdução. Mas ela tinha um bom texto para a lengalenga que precede a trepada – a dela, no caso.

Naquela noite sem muito assunto não era pior coisa do mundo. A narradora seria igualmente sexy se ela estivesse recitando a lista telefônica ou o Guia 4 Rodas. Mas o papo era XXX. O rosto lindo se transfigurava de acordo com as cenas e houve até linguinha de fora para reforçar obscenidades do enredo. Pensei em oferecer-me como ator coadjuvante, mas senti em tempo hábil que a estrutura da composição era o monólogo. Poderia estragar a mise en scène e nossa amizade recente.

A moça seguiu cada vez mais omnisciente, manipulando o tempo e devassando o interior de seu personagem e de si própria. Custou um pouco até chegar ao elevador e a seu objeto: homem musculoso e simpático, recém-chegado ao apartamento do lado, a aparição mais bela do condomínio desde sua construção em 1992, segundo ela. Até chegar ao 16 º, olhares se alternaram entre o teto e o escaneamento mútuo de corpos. Depois, novo encontro, na piscina do prédio e, para encurtar a história – a minha, não a dela -, encostadas sutis, afagos, beijos, amassos, arremesso de calcinha e cueca e, pluft, rolou. Uma noite inteira de gemidos e gritos ecoando na vizinhança, quiçá no bairro.

Esse meio tempo, no entanto, foi rico em minúcias: períodos de maior lubrificação, posições mais cômodas, palavras apropriadas para a ocasião. Em dado momento, a moça abriu um travessão ou aspas – não conheço seu estilo por escrito – e passou a soltar sua fala impudica, cheia de “ais” e “uis”, num ritmo cada vez mais alucinante, até um desfecho explosivo e verossímil. Fiquei com taquicardia.

Mais tarde, ela confessou: era tudo mentira.

- Só queria diverti-lo um pouco. Você anda tão entediado.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Especulação sobre um casal sem amor e sexo

O casal sem amor nem sexo vivia uma amizade estranha. Os dois, neste caso homem e mulher, poderiam estar naquele ponto intermediário localizado por Proust entre a exaustão física e o tédio mental. Não se sabe. Prosseguiam juntos, há quase 20 anos, sem saber a razão da vida em comum. Não brigavam nem se divertiam. Não riam nem choravam. Não trepavam nem traíam. Não havia filhos para cuidar. O divórcio não causaria problema logístico grave. A coabitação, portanto, não era de fundo econômico. Estavam em bons empregos. Não mantinham qualquer tipo de associação. Apenas uma certidão de casamento – um contrato para fins desconhecidos.

Há anos não se tocavam e nunca chegaram a discutir o relacionamento. A casa de dois quartos funcionava como um hotel. Cada um em sua cama, mas café da manhã na mesma mesa, gostos e valores parecidos e nenhuma briga. A união não foi compulsória. Moram sob o mesmo teto por conveniência e proteção contra a vida interior e a vida lá fora, mas, neste último caso, é só especulação. Como habitantes da literatura, precisam se explicar e explicar um casamento por interesses tão precários. De histórias desse tipo, sem parábolas e compilações de sábios provérbios, espera-se o prazer da conclusão, se for seguida a receita de Harold Bloom sobre contos. Por enquanto não há desfecho à vista.

Há apenas uma rotina, com tarefas bem divididas, contas em dia e aposentadoria privada. A respeito da vida, ela soltou uma frase perdida. “Estamos aqui passando uma chuva”, disse, durante o jantar. “E depois?”, ele perguntou. “Depois, nada”, respondeu a mulher. A conversa parou por ai.

Impermeáveis em relação à vida interior ou a ausência dela, não demonstravam insatisfações, rancores, remorsos, arrependimentos e culpas. Talvez vivessem emoções secretas, mas o narrador não as conhece, nem tem como conhecê-las; apenas descreve a aparência e busca uma saída.

A pressa pode levar a um remate feliz ou à tragédia. A tentação pelo meio termo também aparece, mas qual seria o desenlace mais minimalista? Ontem à noite, um filme de Robert Bresson ("O Batedor de Carteiras"), inspirado em “Crime e Castigo”, sugeriu a frieza e algum existencialismo para este final: “Por que viver?”, indaga o personagem Michel. Não cabe, por ora, questionar o sentido da existência. O desdobramento, então, poderia ser uma viagem ao período pré-casamento de cada personagem. Mas os dois só passaram a existir depois da cerimônia nupcial. Alguma coisa aconteceu nesse dia? Não, nada demais.

A alternativa é terminar como sempre foi - vidinhas inexplicáveis, seguindo seu rumo, deixando as coisas em ordem. Sem expectativas e sem Shakespeare. Um mergulho na alma dos personagens demanda tempo e nunca saberemos se vale a pena.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Vícios

Sob o efeito de determinada substância, ele escrevia contos tchecovianos. O cânhamo, famoso por provocar esquecimento, aquecia a memória, aumentava a criatividade e aguçava a ironia. Sem o béqui, o mundo era uma página em branco. Não havia literatura, grande ou pequena. Por isso, consultou-se com médicos e críticos, escribas caretas e xamãs. Não teve jeito. O parágrafo só saia à custa de algum delírio induzido. A solução era deixar o pango e, por conseqüência, parar de escrever. Mas ele não seguiu o conselho.

Um vício leva a outro, é o que dizem. O sujeito começa com um baseado e um textinho leve e, quando dá por si, já está atolado até a alma em produtos mais pesados, quem sabe um romance com cocaína. Por isso não saía do conto, gênero mais ligeiro, com necessário arremate, a conselho de Mr. Bloom. Até ai tudo bem. Mas uma história comprida, capaz de ficar de pé na estante, é sempre uma tentação. Essas coisas ocorrem - e ocorreram com ele.

Cada dia mais pilhado, coração saindo da boca, passou a escrever dia e noite, sempre acompanhado de uma carreira atrás da outra, até concluir o romance sobre o escritor drogado, ele mesmo, tagarela solitário e imbecil em quase todos os sentidos, menos num: o livro era bom. A obra póstuma foi um sucesso de crítica.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Experimento com o dorso

O dorso é a parte mais interessante, enquanto ela se debruça sobre a última prateleira da estante. Quer apresentar um volume raro, adquirido num sebo de Paris. Finjo curiosidade para apreciar melhor a parte descoberta entre o final da blusa e o começo da saia, região rija e bronzeada e acontecimento que está me valendo o dia e a noite. E ela ainda se ergue, no fim do espetáculo, para entregar-me o clássico. Não sei decifrar o título em francês, embora apalpe as páginas, sentindo a textura. Tudo mentira. Digo “interessante, com reticências, pensando de fato naquele momento de despretensiosa exibição. Não deu tempo sequer de analisar a bunda. O dorso bem plantado no corpão pós-40 já bastava, por ora.

Somos apenas bons amigos, como ela enfatiza sempre, embora considere essa observação um sinal de derrota para minhas tímidas investidas. Pior quando começa a contar, sem pudores, encontros com homens mais novos, gatos, como ela os chama. É difícil. Eu escrevo “querida”; ela responde “querido amigo”. Elogio seus lábios; ela destaca minha aguda percepção sobre temas gerais. Escolheu minha amizade e eu penso em seu dorso. Isso não combina.

Às vezes, dependendo da ocasião e do olhar, as partes do corpo chegam à mente com nomes mais rudes, dorso vira lombo, como a face póstero-superior da perna é o mocotó. Seja como for, a área em questão é abrangente, antiga e moderna, La Venus del espejo turbinada, saindo da academia, ligeiramente suada. Chego mais perto, apalpo de leve, com breve comentário sobre as qualidades estéticas da pose anterior. Ela ri e cai fora, não oferece muita resistência nem mostra entusiasmo. É sempre assim.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Aquela gente

É sempre assim. No dia 28 dezembro eles vão para o mesmo condomínio na praia dispostos a comemorar o fim do ano com uma bebedeira de quatro dias, numa epopéia etílica sem precedentes na história do litoral brasileiro. Não há intervalo para ressacas. Bebe-se de manhã à noite, entra-se na madrugada e quando o sol aparece já se ouve o estalo de uma latinha de cerveja sendo aberta. Logo em seguida, uns poucos vão ao mar, para beber, enquanto a maioria fica bebendo ali mesmo, em acaloradas discussões sobre o porre do dia anterior e o planejamento do porre do dia seguinte. No condomínio, o álcool é o meio e a mensagem.

A embriaguez líquida e certa, para usar um lugar comum, dissolve quase tudo, de reputações a credos, pois vem acompanhada de outra categoria de entretenimento, a fofoca. Só que falar pelas costas não funciona. As casas são contíguas e há agentes duplos em quantidade suficiente para fazer os fatos e versões circularem numa velocidade próxima a da luz. Então, depois que todos falam mal de todos começa a fase em que a maledicência e seus derivados passam a ser produzidos a partir de ocorrências do próprio condomínio. A maior parte do noticiário local é sobre sexo (quem comeu quem), mas o álcool sempre está em cena por razões óbvias. Como alguém comeu alguém naquele estado deplorável em que estava ontem à noite? Nas mesas dos quintais e jardins, tais comentários costumam também rolar na presença dos envolvidos que, pelas regras, não devem esboçar reação, mas esperar sua vez de ciscar sobre a próxima vítima.

Nesse meio tempo, já se formaram grupos de vizinhos, uns contra os outros, como se fosse uma disputa esportiva ou uma forma de recreação. Tudo, naturalmente, alimentado por quantidades colossais de cerveja (manhã), wisque (tarde) e tudo (noite). Por tudo, leia-se TUDO. Há facções mais radicais, como a da casa 62, cujos moradores simplesmente cortaram o sono de suas preocupações. Os quatro dias passam como um bloco inteiro, noites e dias emendados, olhos arregalados e muita esperança para o ano que vai chegar e se não chegar, foda-se.


Mesmo bêbadas, as pessoas são civilizadas. Existe fair play na hora de engolir sapos e mesmo quando o sujeito escuta que sua mulher ainda não voltou de uma festa nas redondezas – saiu ontem à noite e já são duas da tarde -, reage com tiradas de bom humor, em geral auto-depreciativas, e todos se divertem. O que chateia são as questões de ordem prática, como arrumar casas, cuidar de crianças, fazer compras e administrar empregadas evangélicas. Casos mais graves - sumiço de copos, cadeiras e até de feijoadas - são tratados de maneira sumária, atribuindo o crime ao pessoal da casa 62. Além de não dormir, essa espécie só se alimenta na madrugada, em furtivas caçadas nas cozinhas adjacentes. Coisas do mundo animal.

Outra mania interna é o questionamento constante sobre a saúde mental de determinados condôminos. As mulheres são mais afeitas a observações nessa linha, umas acusando outras de serem loucas varridas, e sempre pontuando o diagnóstico com afirmações do tipo “não é possível que isso seja só álcool”. A Caras não se interessaria sobre esse ti-ti-ti de anônimos, mas certamente a Revista Brasileira de Psicanálise teria o que fazer por lá.

A lavagem coletiva de almas é um processo de amigos. Estranhos eventualmente convidados, devem se restringir a questões gerais, como a crise européia e a previsão do tempo, porque suas vidas não são do interesse de ninguém, suas piadas não têm graça e suas intervenções sobre o comportamento de outros são publicamente reprovadas ou tratadas com gélida indiferença.

A festa diuturna se encaminha para seu auge – a passagem do ano numa praia próxima -, mas até a chegada do réveillon a exposição pública da vida privada já estará exaurida e o ápice termina virando anticlímax. Finalmente bate a ressaca sobre os mais fracos, embora ainda existam dois dias pela frente – 1º e 2 de janeiro. A turma da 62, no entanto, continua a mil, eventualmente rastejando entre corpos já abatidos pelo sono.

Apesar do clima de juízo final, poucas amizades são abaladas pela temporada de catarse ébria. No máximo alguns poucos dirão: “nunca mais volto aqui”. Mas é mentira. Ainda neste ano, estarão de volta, no dia 28 de dezembro, cheios de planos para 2013, muitas caixas de vodka e um estoque de latinhas capaz de influir no market share das cervejarias.