sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Fumando no quarto

O e-mail chegou com a idéia do texto e mil recomendações. O assunto: cigarro. Sigo o exemplo do matador de aluguel. Não quero saber o nome do cliente nem seus propósitos. Faço o serviço, recebo a grana e vou dormir tranqüilo. Desta vez, no entanto, fiquei preocupado. Muitas restrições, embora a encomenda não tivesse jeito de propaganda contra o cigarro. Nem contra nem a favor. Estranhei.

Prezado,
Estamos precisando de uns quatro mil caracteres sobre o cigarro. Escreva do seu jeito, mas não deixe de seguir o roteiro imposto pelo cliente. Nada de glamurizar o produto – W.H. Auden, Rita Hayworth e Humphrey Bogart estão fora, nem pense nisso, pois cairíamos no pedantismo ou no óbvio. Conheço suas limitações. Por outro lado, nem de longe relacione o cigarro com doença e morte. Macabro demais e não somos do Ministério da Saúde. Também estão fora: reflexões filosóficas, trechos de poemas e sambas-canção e literatices em geral. O texto deve ficar no mínimo do mínino, no cigarro em si: certa quantidade de fumo enrolada em papel. Com filtro, please, e sem muita fumaça. Aguardo.

Enviei o pedido em dois dias. Feito, pensei. Até o número da conta bancária foi junto com o texto. Na sexta, novo e-mail e aporrinhações inesperadas.

Caro,
Recebi um tratado sobre celulose e tabaco. Não era isso. Você falou de uma coisa, falou de outra, enrolou e mandou. Até números sobre a produção de fumo e técnicas de fabricação entraram na história. Google puro. Nem mostrei ao cliente. Sei que não é pro seu bico, mas tente ver o cigarro como Ítalo Calvino via suas cidades invisíveis. Concentre-se no pequeno tubo de papel, no fogo – fogo pode – destruindo suavemente a brasa... Enfim, nos detalhes. Mas não viaje demais. Trata-se de tabaco não de cannabis. Mãos à obra.

Passei duas noites em claro deslizando suave sobre lâminas dos vários tipos e classes de fumo, mostrando como são misturadas em diferentes proporções e como, finalmente, formam o blend, e ele me vem com esse e-mail. Fiquei deprê com a história do Google. Só estive duas vezes no site da Souza Cruz. Sinceramente não sei o que estão querendo. Vou partir para a historinha da brasa, talvez comparando com lava vulcânica, mas preciso saber se posso colocar um fumante no texto. Sem ele o cigarro não queima. Mas o fumante, meu caso, por exemplo, não deve pensar em nada, esse é o problema. Descobri um poema bacana de bandeira (“Amor-chama, e, depois, fumaça.../Medita no que vais fazer:/O fumo vem, a chama passa...”). Poema não pode.

Sentei. Escrevi a porcaria do texto em poucas horas. Que frila chato do caralho! Apostei na brasinha queimando e a vida se indo, não pelo câncer, é claro, mas indo naturalmente, seguindo seu rumo. De manhã, mais um e-mail do cara.

Querido,
Não foi de todo mal. O cliente achou simpático, gostou do seu estilo, mas o ritmo corporativo, principalmente na área sutil em que ele atua, é muito dinâmico. Desistiram do cigarro. O momento passou. Estão em outra. A boa notícia é que você fará o novo texto. É sobre um quarto vazio. Apenas quatro paredes, assoalho e teto. Não se anime tanto porque não pode citar construção civil nem desespero. Coisinha seca, crua e elegante. Quatro mil caracteres geométricos, entendeu?

Desisti do atravessador cheio de nove horas. Fiquei puto. Resolvi sacanear. Lasquei o texto sobre o quarto com um bocado de gente fumando lá dentro e conversando merda. Naquele fumacê dos diabos estavam Freud, Lacan, Pavlov. Sócrates, Platão, Kant, Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Trotsky e Lênin. Foi aprovado. Chega de intermediários. Quero conhecer o cliente.

Um comentário:

Cristina Lopes disse...

Simplesmente adorei. E sou fumante...

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