A ideia inicial era lambuzar o espaço aqui com um pouco de política. Olhei em volta, senti o drama, desisti. A seguir, pensei em algo confessional, mas faltaram coragem, novidade e conteúdo. Só haveria ruminações queixosas sobre 2011, este ingrato. Mesmo assim, para não virar a crônica do cara sem assunto, vamos então a uma retrospectiva do ano, à moda da casa, tirando da parada Steve Jobs, Osama e Kadafi. Não haverá critério jornalístico. Aliás, não haverá critério de qualquer espécie, mesmo porque as ocorrências abaixo ainda carecem de confirmação. Ainda mais imprecisa, mas com boas fontes, é a história do jovem escritor em Nova York. Segue resumida, com algumas omissões, embora ocupe dois meses deste balanço de coisas nebulosas e sem importância.
Continua no malvadezas
terça-feira, 25 de outubro de 2011
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Deus
Deus é assim, não tem religião nem se considera eterno. Está tão atormentado quanto seus adoradores. Vez por outra entra em crise. Como é desprovido de vaidade, fica enjoado com orações e outras mesuras. Quando clamam por sua ajuda, Ele só lamenta: “Tudo eu, tudo eu”.
Deus contesta livros e sermões. “É ficção pura”, diz. “Não fiz o mundo em sete dias, não tenho filhos nem autorizei ninguém a falar em meu nome”.
Também não se acha responsável por mortes e tragédias. “Essas coisas podem acontecer com qualquer um, inclusive comigo”. Ele não interfere, não dá palpite, deixa rolar.
Todos os anos, Deus premia um ateu de sua preferência com férias remuneradas no Paraíso. O sujeito volta à Terra, esquecido tudo, e continua a levar sua vida de descrente. Deus adora as pessoas que não acreditam nele. Dão menos trabalho.
Deus contesta livros e sermões. “É ficção pura”, diz. “Não fiz o mundo em sete dias, não tenho filhos nem autorizei ninguém a falar em meu nome”.
Também não se acha responsável por mortes e tragédias. “Essas coisas podem acontecer com qualquer um, inclusive comigo”. Ele não interfere, não dá palpite, deixa rolar.
Todos os anos, Deus premia um ateu de sua preferência com férias remuneradas no Paraíso. O sujeito volta à Terra, esquecido tudo, e continua a levar sua vida de descrente. Deus adora as pessoas que não acreditam nele. Dão menos trabalho.
domingo, 16 de outubro de 2011
O jovem escritor e o seu duplo
Um dos riscos da criação de personagens é a criatura já existir, de fato ou de ficção. Nossa sã e malsã consciência às vezes constrói personalidades baseadas – baseadas até demais – em figuras de outros livros, pessoas conhecidas ou parentes. Ele, por exemplo, criou um doidinho enovelado por inimigos reais e imaginários, e só depois de colocar o sujeito na tela, já com uns 11 mil caracteres escritos, descobriu que se tratava do senhor Goliadkin, o conselheiro titular atormentado de “O Duplo”, de Dostoievski. Já a tentação de escrever sobre pais e mães também passa pela cabeça de quem se mete em literatura, seja num Best-seller mundial ou num blogspot.com. Muitos aceitam o chamado e jogam a família na roda, descontando nas palavras rancores de todos os tipos. Outros entram na embromação de inserir os defeitos dos progenitores – um nome muito feio, por sinal – em pessoinhas com nomes fictícios.
Os dois problemas são o suficiente por hoje, vamos nessa. O escritor russo pensou no senhor Goliadkin quando tinha apenas 24 anos. Só que isso foi em 1846. Ele, o jovem escritor, imaginou-o há um mês. Pense na decepção. Não era plágio, pois o escriba atual, em estado de prostrada depressão, nunca havia lido O Duplo. Sacou quase a mesma coisa, mas com 165 anos de atraso. A primeira sensação que teve: todos os personagens já foram criados, não adianta mais, tchau. Com o tempo – duas horas, se muito – estava catando uma justificativa para a coincidência e chegou ao veredicto: mesmo lá atrás, aconteciam essas coisas. Freud, por exemplo, sempre gostava de citar Arthur Schnitzler, como seu escritor de cabeceira, mas havia mesmo tirado do senhor Goliadkin inspiração para escrever “Das Unheimliche” (1919). É ele, o jovem escritor, que lança tais suspeitas sobre o duplo e o pai da psicanálise - não eu.
Nosso personagem - o jovem escritor, não Freud – também ponderou que todas as histórias derivam das peças de Shakespeare, mas isso também não é um pensamento original, como não é original afirmar que o referido autor - Shakespeare, não o jovem escritor – bebeu na mitologia e de lá extraiu quase tudo. Então, nessa toada vamos indo, uns pegando as coisas dos outros e passando adiante. Só que tem um porém: para se contar a mesma história, existe a obrigação de contá-la bem, raciocina o jovem escritor.
Daí o jovem escritor começou a simpatizar com o seu Goliadkin, também provido de um duplo, e retomou a história. Está concorrendo com Dostoievski, mas tudo bem, vamos construir um similar nacional de alto nível, embrulhado num preâmbulo de bom tamanho para explicar que o livro é uma imensa citação do autor russo, e tal procedimento se enquadraria num esquema de transtradicionalização, se é que isso existe.
Toda essa pensata, como dizem nas revistas semanais, é para especular que nem sempre pode ser pecado escrever a mesma história. Se for bom de ler, vamos em frente. No caso de a versão não ser lá essas coisas, ainda resta explicações conceituais que, em alguns casos, resolvem o problema. Basta que a citação seja boa, tão boa que a faça bem melhor do que livro e ai o livro fica sendo a sua justificativa e não a história em si. Talvez isso seja uma tendência de certa literatura, pensa o jovem escritor, que também é um personagem manjadérrimo – um truque de segunda para ancorar as linhas acima.
Os dois problemas são o suficiente por hoje, vamos nessa. O escritor russo pensou no senhor Goliadkin quando tinha apenas 24 anos. Só que isso foi em 1846. Ele, o jovem escritor, imaginou-o há um mês. Pense na decepção. Não era plágio, pois o escriba atual, em estado de prostrada depressão, nunca havia lido O Duplo. Sacou quase a mesma coisa, mas com 165 anos de atraso. A primeira sensação que teve: todos os personagens já foram criados, não adianta mais, tchau. Com o tempo – duas horas, se muito – estava catando uma justificativa para a coincidência e chegou ao veredicto: mesmo lá atrás, aconteciam essas coisas. Freud, por exemplo, sempre gostava de citar Arthur Schnitzler, como seu escritor de cabeceira, mas havia mesmo tirado do senhor Goliadkin inspiração para escrever “Das Unheimliche” (1919). É ele, o jovem escritor, que lança tais suspeitas sobre o duplo e o pai da psicanálise - não eu.
Nosso personagem - o jovem escritor, não Freud – também ponderou que todas as histórias derivam das peças de Shakespeare, mas isso também não é um pensamento original, como não é original afirmar que o referido autor - Shakespeare, não o jovem escritor – bebeu na mitologia e de lá extraiu quase tudo. Então, nessa toada vamos indo, uns pegando as coisas dos outros e passando adiante. Só que tem um porém: para se contar a mesma história, existe a obrigação de contá-la bem, raciocina o jovem escritor.
Daí o jovem escritor começou a simpatizar com o seu Goliadkin, também provido de um duplo, e retomou a história. Está concorrendo com Dostoievski, mas tudo bem, vamos construir um similar nacional de alto nível, embrulhado num preâmbulo de bom tamanho para explicar que o livro é uma imensa citação do autor russo, e tal procedimento se enquadraria num esquema de transtradicionalização, se é que isso existe.
Toda essa pensata, como dizem nas revistas semanais, é para especular que nem sempre pode ser pecado escrever a mesma história. Se for bom de ler, vamos em frente. No caso de a versão não ser lá essas coisas, ainda resta explicações conceituais que, em alguns casos, resolvem o problema. Basta que a citação seja boa, tão boa que a faça bem melhor do que livro e ai o livro fica sendo a sua justificativa e não a história em si. Talvez isso seja uma tendência de certa literatura, pensa o jovem escritor, que também é um personagem manjadérrimo – um truque de segunda para ancorar as linhas acima.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Sempre será assim
Esse homem ainda existe por ai, perdido num subúrbio remoto, alheio ao tempo que passa, com seus costumes mantidos, igual a antigamente. Cria passarinhos em gaiolas, tem uma corrente de ouro e joga no bicho. Três filhos. Um deles com curso técnico, outro no Exército e o mais novo entregue à cachaça. O emprego cabe a seu tipo, é despachante. Depois do almoço, sempre feito em casa pela mulher-silêncio – sua esposa há 30 anos -, senta na calçada. O palito de dentes volteando na boca e os olhos no movimento da rua. Tira uma soneca antes de voltar ao escritório, que fica no mesmo bairro.
A vida segue assim, como fora a de seus pais, e ali na sala estão o quadro da Santa Ceia, uma flâmula do time e fotos emolduradas da família. À noite, depois da janta, liga-se em programas populares da TV ou joga dominó com os amigos. Fuma Derby, usa bigodes e não sai sem o cortador unhas, anexado ao chaveiro.
No escritório, além de Vitorinha, a secretária, conta com um office-boy, ou melhor, um contínuo, o rapaz que faz as coisas, leva e trás, entra na fila do banco e faz a limpeza. Vitorinha é datilógrafa, nunca usou computador, nem o homem vê necessidade disso, pois tudo que interessa está no livro-caixa manuscrito, despesa e receita, e nos formulários em quatro vias, tiradas com papel carbono. O resto é reconhecimento de firma, fotocópias e autenticação de documentos. O trabalho de despachante não exige muita informática, exceto quando é preciso ir ao DETRAN e a outras repartições do Estado e do município. Mas ai é com eles.
Depois de muita luta, o filho que bebe ainda tentou algo na vida, curso de correspondência comercial, para ajudar o pai no serviço. Mas deixou pela metade. Por desinteresse, preguiça e más companhias. O homem só resmunga, dá o caso como perdido e entrega a Deus. Os outros, não, são motivo de orgulho. O que está no Exercito e serve fora da cidade mande-lhe cartas ou telefona. Em casa, o aparelho é daqueles cor de abacate, com disco e bordinha branca no bocal. Mas o homem tem um celular, dos mais simples e pré-pago, que usa no cinturão, como um revólver. Ligar e receber ligações são o suficiente. Não tem e-mail.
Quando está emburrado ou triste, recolhe-se para ouvir seus discos, a coleção quase completa de Nelson Gonçalves, pela RCA Victor, ou Jorge Veiga – “Amor não tem idade” e outros sucessos, que provocam imensa saudade do rádio, onde o próprio cantor sempre repetia: “Alô, alô, aviadores que cruzam os céus do Brasil. Aqui fala Jorge Veiga pela Rádio Nacional. Queiram dar os seus prefixos para a guia de nossas aeronaves”.
O homem não sabe que tem uma estratégia contra o passar do tempo: não deixar que ele passe; mantém-se lá atrás, apegado à moda da juventude, quando vivia de verdade. Agora recordar é viver, nostalgia não tem idade, serestas, seleção de 58 e Emulsão Scott - hoje tão raro nas farmácias. Não há muito que fazer. Apenas deixa os discos tocarem na vitrola Telefunken, modelo Dominante, comprada em 65. Às vezes prefere o silêncio. Então, fica olhando o estranho mundo lá fora, sentado na calçada, palitando os dentes.
A vida segue assim, como fora a de seus pais, e ali na sala estão o quadro da Santa Ceia, uma flâmula do time e fotos emolduradas da família. À noite, depois da janta, liga-se em programas populares da TV ou joga dominó com os amigos. Fuma Derby, usa bigodes e não sai sem o cortador unhas, anexado ao chaveiro.
No escritório, além de Vitorinha, a secretária, conta com um office-boy, ou melhor, um contínuo, o rapaz que faz as coisas, leva e trás, entra na fila do banco e faz a limpeza. Vitorinha é datilógrafa, nunca usou computador, nem o homem vê necessidade disso, pois tudo que interessa está no livro-caixa manuscrito, despesa e receita, e nos formulários em quatro vias, tiradas com papel carbono. O resto é reconhecimento de firma, fotocópias e autenticação de documentos. O trabalho de despachante não exige muita informática, exceto quando é preciso ir ao DETRAN e a outras repartições do Estado e do município. Mas ai é com eles.
Depois de muita luta, o filho que bebe ainda tentou algo na vida, curso de correspondência comercial, para ajudar o pai no serviço. Mas deixou pela metade. Por desinteresse, preguiça e más companhias. O homem só resmunga, dá o caso como perdido e entrega a Deus. Os outros, não, são motivo de orgulho. O que está no Exercito e serve fora da cidade mande-lhe cartas ou telefona. Em casa, o aparelho é daqueles cor de abacate, com disco e bordinha branca no bocal. Mas o homem tem um celular, dos mais simples e pré-pago, que usa no cinturão, como um revólver. Ligar e receber ligações são o suficiente. Não tem e-mail.
Quando está emburrado ou triste, recolhe-se para ouvir seus discos, a coleção quase completa de Nelson Gonçalves, pela RCA Victor, ou Jorge Veiga – “Amor não tem idade” e outros sucessos, que provocam imensa saudade do rádio, onde o próprio cantor sempre repetia: “Alô, alô, aviadores que cruzam os céus do Brasil. Aqui fala Jorge Veiga pela Rádio Nacional. Queiram dar os seus prefixos para a guia de nossas aeronaves”.
O homem não sabe que tem uma estratégia contra o passar do tempo: não deixar que ele passe; mantém-se lá atrás, apegado à moda da juventude, quando vivia de verdade. Agora recordar é viver, nostalgia não tem idade, serestas, seleção de 58 e Emulsão Scott - hoje tão raro nas farmácias. Não há muito que fazer. Apenas deixa os discos tocarem na vitrola Telefunken, modelo Dominante, comprada em 65. Às vezes prefere o silêncio. Então, fica olhando o estranho mundo lá fora, sentado na calçada, palitando os dentes.
domingo, 9 de outubro de 2011
O show
Nesta idade ainda faço coisas bacanas. Uma delas é imitar a mim mesmo quando jovem. Na verdade, é um retrato meio irônico da minha geração, seus trejeitos e modismos. Quem viveu o período, acha graça. Quem ainda estava para nascer, não entende, mas fica curioso. Mostro como os homens se comportavam naquela época diante das mulheres e da vida. Lembro frases interessantes, certos reclames de rádio e pessoas pitorescas. Na platéia, senhoras quase minhas contemporâneas se esbaldam, mas suas netas e bisnetas apenas fazem perguntas. Ficamos, eu e as jovens, naquele impasse: elas não sabem como foi nosso tempo; eu não sei quase nada sobre hoje. Enquanto dou o espetáculo, elas mexem em seus telefones portáteis – inimaginavelmente pequenos – e mais se admiram pelos meus 100 anos tão viçosos do que pelo script em si.
Na forma e conteúdo é um show sobre comportamento. Creio que deveria tê-lo feito durante a juventude, ganharia em graça e atualidade, mas não faz mal. As meninas prestam alguma atenção, pelo lado épico, e eu uso aqueles momentos para olhar as mocinhas bem de perto. Suas ancestrais, ainda vivas e ali postadas, não me emocionam do ponto de vista sexual. Quando me refiro a sexo, não se enganem, estou tratando de algo subjetivo e distante, apenas o assombro de ver peles tão sedosas, em shorts justos, exibindo uma exuberância carnal lamentavelmente inexistente na segunda quadra do século passado. Por que não era assim antigamente? Por que aqueles vestidos que cobriam até os pensamentos? Sempre sonhei com mulheres quase desnudas, com as que existem agora, mas é tarde demais para anseios de ordem prática, embora algumas vezes tenha me imaginado o correr dos meus dedos nessas coxas grossas e rijas dos dias atuais. Essa Clarinha, então, poderia estar no meu colo. Ela não faria isso. Talvez por medo de triturar minha bacia.
Para não ser apenas uma aberração anacrônica, um velho centenário contando piadas de salão e ensaiando passos de maxixe, teria que remoçar ou pelo menos aprender como o funciona o universo dessas moças. Pode ser tarde, mas ando tentando. Como uma pessoa da minha idade pode sair à noite, falar em telefones que se levam para a rua, transmitir mensagens escritas e até imagens pelo mesmo aparelho? Como devo me vestir? A bengala e os suspensórios são tão presentes na minha indumentária. Lamento não ter nascido bem depois dos anos 10.
O importante é que sigo com o show e a audiência está cada vez maior. No jardim da velha casa temos chás ingleses e medicinais. As meninas trouxeram outras ervas. Elas fumam aquilo, não ligo, mas o cheiro não é muito agradável. Às vezes perco o fio da meada, fico olhando para a de saínha curta, mas logo me recomponho, pois a memória permanece viva, pelo menos para fatos com mais de 50 anos. Dia desses desandei a falar sobre 1936, ano bom, cheio de histórias e progresso material. Pulei para 54, a morte de Getúlio, e uma das moças perguntou quem era Getúlio, eu disse Getúlio Vargas e ela se lembrou por causa dos livros de história.
No começo da noite, todas vão embora – as velhotas e as gerações seguintes. Fico sozinho, meio triste, mas preparando o novo espetáculo. Não quero ficar repetitivo. Se estiver vivo no ano que vem vou montar o que pessoal chama de Stand up comedy.
Na forma e conteúdo é um show sobre comportamento. Creio que deveria tê-lo feito durante a juventude, ganharia em graça e atualidade, mas não faz mal. As meninas prestam alguma atenção, pelo lado épico, e eu uso aqueles momentos para olhar as mocinhas bem de perto. Suas ancestrais, ainda vivas e ali postadas, não me emocionam do ponto de vista sexual. Quando me refiro a sexo, não se enganem, estou tratando de algo subjetivo e distante, apenas o assombro de ver peles tão sedosas, em shorts justos, exibindo uma exuberância carnal lamentavelmente inexistente na segunda quadra do século passado. Por que não era assim antigamente? Por que aqueles vestidos que cobriam até os pensamentos? Sempre sonhei com mulheres quase desnudas, com as que existem agora, mas é tarde demais para anseios de ordem prática, embora algumas vezes tenha me imaginado o correr dos meus dedos nessas coxas grossas e rijas dos dias atuais. Essa Clarinha, então, poderia estar no meu colo. Ela não faria isso. Talvez por medo de triturar minha bacia.
Para não ser apenas uma aberração anacrônica, um velho centenário contando piadas de salão e ensaiando passos de maxixe, teria que remoçar ou pelo menos aprender como o funciona o universo dessas moças. Pode ser tarde, mas ando tentando. Como uma pessoa da minha idade pode sair à noite, falar em telefones que se levam para a rua, transmitir mensagens escritas e até imagens pelo mesmo aparelho? Como devo me vestir? A bengala e os suspensórios são tão presentes na minha indumentária. Lamento não ter nascido bem depois dos anos 10.
O importante é que sigo com o show e a audiência está cada vez maior. No jardim da velha casa temos chás ingleses e medicinais. As meninas trouxeram outras ervas. Elas fumam aquilo, não ligo, mas o cheiro não é muito agradável. Às vezes perco o fio da meada, fico olhando para a de saínha curta, mas logo me recomponho, pois a memória permanece viva, pelo menos para fatos com mais de 50 anos. Dia desses desandei a falar sobre 1936, ano bom, cheio de histórias e progresso material. Pulei para 54, a morte de Getúlio, e uma das moças perguntou quem era Getúlio, eu disse Getúlio Vargas e ela se lembrou por causa dos livros de história.
No começo da noite, todas vão embora – as velhotas e as gerações seguintes. Fico sozinho, meio triste, mas preparando o novo espetáculo. Não quero ficar repetitivo. Se estiver vivo no ano que vem vou montar o que pessoal chama de Stand up comedy.
terça-feira, 4 de outubro de 2011
Ciúmes transcendentais
ão comece uma história sem
saber como ela vai terminarSir Walter Rawley
saber como ela vai terminarSir Walter Rawley
Começou a namorar a logo descobriu um desafio a ser enfrentado: a moça é esotérica, daquelas bem plurais, sincrética até o último chacra, dona de um altarzinho com Buda, Shiva, Jesus, gnomos, iemanjá e a foto do Doutor Matias (1890-1954), um espírito de luz. O pacote inclui ainda Tarô, I-Ching, Búzios e algo chamado “Teoria das emas totalizantes”, mistura de cabala, ensinamentos de Lao-Tse e Física Quântica. Pelo menos foi o que ele entendeu, assim, meio por cima.
Por que um cético foi parar nessa? Ele explica: “a gata é inteligente, linda, cheirosinha e engraçada. O misticismo foi encoberto por esses predicados, mas agora tenho que encarar o incenso”. Dito isto, pelo próprio personagem, vamos adiante, sublinhando alguns conflitos da relação entre o incréu de botequim e a deusa candidata ao Nirvana.
Nesses casos, o cara não pode simplesmente detonar todas as teses da namorada. Primeiro porque são muitas, interligadas, cheias de nuances e citações de mestres desconhecidos. Seria também deselegante. Nada de posar de dono da verdade, mesmo convencido da impossibilidade daquele arranjo metafísico. Um sujeito qualquer teria aderido de vez às convicções astrais da garota em troca de uns amassos. Merecia. Ele, não. O herege romântico queria ser verdadeiro.
O jeito era escutar, fazer alguns paralelos antropológicos e literários (“oba, tem o Borges”) e dedicar-se com mais afinco à leitura de temas nunca dantes navegados. Pelo Google descobriu um mundo habitado por serpentes energéticas, editores com terceiro olho, criaturinhas luminescentes, deuses ETs e outros mistérios do universo além da vida e da morte. Só nas cartas, havia matéria para o resto da existência, com nomes e procedências variadas, desde egípcias, ciganas e marselhesas às das bruxas, de Crowley, de Wicca, de Dali, entre as de outros e outras. Aquele gibi fantástico era a religião da amada.
Como a vida não é apenas sexo, seria preciso penetrar (no sentido exegético, é claro), nos abismos filosóficos da moça. Com algum conhecimento, ele tentou obter mais detalhes com a própria, especialmente dados mitológicos, com os quais poderia manobrar com facilidade. Leu “O Poder do Mito”, de Joseph Campbell. Deu assim para ir levando, enquanto beijos, abraços e carinhos sem ter fim continuaram sendo a melhor coisa da vida, acima de todos os deuses, astros e estrelas.
Tudo caminhava bem no amor e no mundo das fadinhas. Até o dia em que ela anunciou a chegada de seu guru. A primeira imagem que lhe veio á cabeça não preocupava: um senhor idoso, barbudo e de cabelos brancos, magro como um faquir, casto e paterno. Mas no caso não era o caso. Apareceu o guru. Um garoto cheio de vida, quase um surfista, mas certamente dotado de rara sabedoria para envolver suas seguidoras em inebriantes transes e transas. O pior estava por vir – e veio: sexo tântrico, ritual necessário à compreensão do corpo e da alma. Ela tentou explicar, “é só a teoria, não se preocupe”, mas não deu certo.
O ateu, até então compreensivo, foi tomado pelos mais baixos instintos e toda aquela intersecção entre filosofia e misticismo foi por água abaixo. Ele bateu pé, não quis que o guru californiano ficasse hospedado na casa da namorada e muito menos viesse com essa conversa de sexo tântrico, teórico ou prático. Nem pensar. Ela chorou, mas a decisão estava tomada: guru e sexo tântrico.
Poucas horas depois, já entorpecido por substâncias terrenas – sete cervejas e meia garrafa de uísque –, começou a relembrar o sorriso da ex-namorada, a Sininho da Vila Madalena. Depois passou a maldizer o guru e o chifre transcendental talvez já acontecendo, numa trepada de hiper-orgasmos e algo mais acima da compreensão humana. Também soltou impropérios contra o politeísmo ingrato e traidor. Enquanto isso bebia álcool e lágrimas para aplacar sua alma de descrente e a dor do abandono.
O bolero seguiu em frente, noite adentro, e ele só acordou muitas horas mais tarde nos braços ternos de Sininho, refeita de sua experiência tântrica com o guru e inteiramente a postos para aplicar seus novos conhecimentos com o homem de sua vida. O cenário não era o bar, mas um lugar estranho e agradável. O paraíso na Terra ou fora dela. Todas as visões do Éden estavam ali reunidas, com seres outrora imaginários em festa pela união do casal. Não havia tempo e todos podiam voar sobre as enormes cachoeiras, florestas infinitas e cidades limpas e fenomenais. Ao lado de dois dragões bonzinhos, quatro duendes, um par de Teletubbies e divindades de toda natureza, ele pode perceber a presença do guru californiano. Para seu alívio não tinha sexo, apenas a palavra “Aeon”, em grego, tatuada na virilha, e estava cercado de borboletas gigantes e tagarelas. Naquela dimensão desconhecida, ele e Sininho iniciaram um jogo de carícias em que cada orgasmo equivalia a um Bing bang.
Pena. Era delírio alcoólico. Pena. Este final medíocre.
sábado, 1 de outubro de 2011
Ateísmo: tipos
Sempre dizem que eles terminam cedendo na hora do juízo, nas últimas, mas a explicação é simples: no aperto, se apela até ao que não se acredita. Além disso, o ateu autêntico é apegado à dúvida, considera a possibilidade de estar errado. Assim, por que não manifestar essa incerteza na hora da morte? Ao contrário, muitos religiosos jamais põem em dúvida sua crença e, tranquilamente, vão com ela até o fim. É mais confortável. A fé não é para todos – eles pregam. O ateu contra-ataca: a fé é justamente a fuga da dúvida.
O debate é eterno, mas neste caso diz respeito aos tipos de ateus, a partir de um personagem cuja história é contada, e bem contada, pelo excelente dentista Halley Maroja. Existia na terra de Halley, Caruaru (se não exista, não vem ao caso), um farmacêutico que, todos os dias, colocava seu tamborete na porta farmácia, olhava pro céu e desafiava: “se Deus existe, que me jogue um raio agora em cima de mim”. Esperava alguns minutos e depois recolhia o baquinho. Saía fazendo muxoxos de desdém. Trata-se de um tipo de ateu muito específico, o que tem fé. Acredita piamente na não existência de Deus.
Há ainda o ateu por conveniência. No fundo acredita que existe alguma coisa mais além, uma energia, mas como a namorada é incrédula até a alma, ele adere, declara-se seu amor e sua descrença. Afinal, a tal energia não deve estar ai para punir ninguém. O fato de acreditar ou não acreditar nela não vai interferir em sua existência ou não existência. É só uma energia e pronto. Este é o ateu sem culpa.
O ateu em conflito é outra espécie. Também desprovido de fé, não acha plausível a existência de Deus, mas a constatação o deprime. O fato de a vida ser apenas isso aqui, e lamentavelmente pode ser mesmo, joga o homem numa parada existencialista que o leva à leitura de filósofos da Igreja, como Santo Agostinho e São Thomaz de Aquino. Com eles, não encontra conforto para suas angústias, mas gosta do estilo e pelo menos se arrumou com os intelectuais católicos e eles devem ter alguma influência com o Criador, na possibilidade remota de ele existir.
Por último, hoje, há o ateu militante. É metido em organizações ateístas de várias procedências e um brigão pelo estado laico. Alguns, não são apenas incréus. São contra Deus e até existência da idéia de Deus. Não leva em conta a possibilidade de estar errado e se o Supremo aparecer na sua frente, cercado de anjos, ele está pronto para convencer o próprio de sua inexistência.
O debate é eterno, mas neste caso diz respeito aos tipos de ateus, a partir de um personagem cuja história é contada, e bem contada, pelo excelente dentista Halley Maroja. Existia na terra de Halley, Caruaru (se não exista, não vem ao caso), um farmacêutico que, todos os dias, colocava seu tamborete na porta farmácia, olhava pro céu e desafiava: “se Deus existe, que me jogue um raio agora em cima de mim”. Esperava alguns minutos e depois recolhia o baquinho. Saía fazendo muxoxos de desdém. Trata-se de um tipo de ateu muito específico, o que tem fé. Acredita piamente na não existência de Deus.
Há ainda o ateu por conveniência. No fundo acredita que existe alguma coisa mais além, uma energia, mas como a namorada é incrédula até a alma, ele adere, declara-se seu amor e sua descrença. Afinal, a tal energia não deve estar ai para punir ninguém. O fato de acreditar ou não acreditar nela não vai interferir em sua existência ou não existência. É só uma energia e pronto. Este é o ateu sem culpa.
O ateu em conflito é outra espécie. Também desprovido de fé, não acha plausível a existência de Deus, mas a constatação o deprime. O fato de a vida ser apenas isso aqui, e lamentavelmente pode ser mesmo, joga o homem numa parada existencialista que o leva à leitura de filósofos da Igreja, como Santo Agostinho e São Thomaz de Aquino. Com eles, não encontra conforto para suas angústias, mas gosta do estilo e pelo menos se arrumou com os intelectuais católicos e eles devem ter alguma influência com o Criador, na possibilidade remota de ele existir.
Por último, hoje, há o ateu militante. É metido em organizações ateístas de várias procedências e um brigão pelo estado laico. Alguns, não são apenas incréus. São contra Deus e até existência da idéia de Deus. Não leva em conta a possibilidade de estar errado e se o Supremo aparecer na sua frente, cercado de anjos, ele está pronto para convencer o próprio de sua inexistência.
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