tag:blogger.com,1999:blog-15486860486823492832024-03-12T17:00:24.888-07:00lula falcãoJornalista e escritor, atuou em algumas das principais redações do País – O Globo, Veja e o Estado de S. Paulo. É co-autor de Frevo – 100 anos de Folia e autor de "Todo dia me Atiro do Térreo", "Iberê, segundo Paulo" e "Urubus na Sala"h.koblitz.ehttp://www.blogger.com/profile/17687391587371211794noreply@blogger.comBlogger455125tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-29690740000611259902022-05-30T10:39:00.000-07:002022-05-30T10:39:03.756-07:00Uma visão do Céu<p> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Para os crentes, o céu é o limite. O dono
do céu, no entanto, pensa diferente. Em sua infinita sabedoria e curiosidade,
Deus quer saber o que veio antes dele e o que virá depois. Conhece a
circunscrição de seus conhecimentos, mas sabe que é produto daquela explosão
primordial. O que ficou para trás desse episódio é um mistério que intriga o
Todo Poderoso em seu Paraíso sempre repleto de almas e dúvidas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Chegar lá envolve pouca logística - basta
estar morto - e alguma incerteza. As chances são de três para um (céu,
purgatório, inferno). Portando, não é a ausência de pecado que leva os humanos
mortos para o céu; é o acaso. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O céu não é propriamente um lugar. É uma
situação. Ao contrário do inferno, não dispõe de paisagens. Tudo é etéreo
demais para ser descrito. Flui como um rio de névoa, embora a comparação não
seja exata e escape às ciências terrenas. Existe, porém, interações de
pensamentos num nível muito fraco. Deus conversa com os seus abrigados por
ondas muito fracas, tão fracas que seus receptores as confundem com
interferências. Mas Deus olha partes mais distantes do Universo. Suas lentes
gravitacionais são o que o chamávamos de “óculos fundos de garrafa” antes da invenção
da alta dioptria. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Deus e seu estado são uma coisa. O mundo
dos abrigados nesse colosso indefinido é outra. Depende da crença de cada um,
da capacidade de imaginar seu paraíso de modo a reproduzir, com a intensa
sensação da verdade, todos os detalhes dos seus respectivos livros sagrados.
Todos monoteístas. O católico, por exemplo, viverá sua experiência eterna na
matrix santificada do modo como aprendeu no catecismo e terá todas as
experiências apropriadas ao modelo cristão. Pode até encontrar São Pedro na
porta, com as chaves dos apartamentos, ou Nossa senhora circulando por ai,
seguida por anjinhos. É uma ilusão, mas o que não é? A vida também foi? <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Espíritas caem em outra terra, igualzinha a
essa, mas com pequenas diferenças, que eles nem notam. Alguns sequer sabem se
morreram. Os ateus, casos à parte, acham que estão sonhando e como não acordam
nunca – acordam, mas em sonhos – continuam certos de que não há vida após a
morte. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS", sans-serif;">Mesmo nessa condição, os mortos ali vivos
não têm a certeza de que há um Deus. Mantém a fé como mantinham em vida e levam
tudo como se fosse uma etapa, pois não têm contato direto como o Todo Poderoso
que, em seu reino, não se sente tão poderoso assim.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Deus
tem ciência dessa cadeia de eventos – ciência pura -, mas tem dúvidas sobre o
monoteísmo como principio e fim. Pensa, às vezes, na existência de outros
paraísos, num poder compartilhado entre divindades a não sei quantos anos-luz
de sua paróquia. Estudou bem o caso da índia e de suas 330 milhões de
divindades, e acha estranho não ter indianos entre seus hóspedes - uma matéria
escura a desafiar suas especulações diárias. Pensa ainda que ele próprio é uma
peça da engrenagem e que jamais será possível criar uma teoria de tudo, mesmo
com a eternidade á disposição.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><br /></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><span style="color: red; font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="tab-stops: 3.0cm; text-align: justify;"><span style="color: red; font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">S</span></p>Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-58939430925123776782021-02-17T20:45:00.007-08:002021-02-17T20:57:12.036-08:00Urubus na sala<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKoO18wQdI6SyTXq4N4i6-5sW0sm-OT7daddo8os5hyphenhyphenPr57X2VZ2fWrXs0hWHM5bDnH8iA3FaP6A1O3mZMeqXJpyE5f1XGEDbZqlO3Bc91z-wx1Shk8OW66SLB_oo1A1VUkaN5EpTDctEi/s1500/VULTURES.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1500" data-original-width="1013" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKoO18wQdI6SyTXq4N4i6-5sW0sm-OT7daddo8os5hyphenhyphenPr57X2VZ2fWrXs0hWHM5bDnH8iA3FaP6A1O3mZMeqXJpyE5f1XGEDbZqlO3Bc91z-wx1Shk8OW66SLB_oo1A1VUkaN5EpTDctEi/s320/VULTURES.jpg" /></a></div><br /><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br /></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: #0f1419; font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; font-size: 11.5pt; line-height: 107%; mso-bidi-font-family: "Segoe UI";">Saiu a tradução para o inglês do meu livro “Urubus na
Sala” (Vultures in the Living Room), com histórias publicadas aqui. A edição da
editora Casa Forte Press, de Atlanta (EUA), é bilingue. Tradução de Helena
Cavendish. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal">
</p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br /></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br /></p><span style="font-family: trebuchet;"><a href="https://bityli.com/LlSKU">https://bityli.com/LlSKU</a></span><br /><p></p>Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-56410179134665636042020-10-14T09:37:00.005-07:002020-10-14T09:38:17.891-07:00ELE e ELA<p> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span face=""Trebuchet MS",sans-serif">A
sensação de estar ficando louco começou numa tarde em que ele e Ela estavam
conversando sobre o passado e de repente suas lembranças eram da vida dela,
nítidas, nítidas, porque ele não havia cursado o clássico, que era exclusivo
das moças, e até aquele momento era assim, segundo o que lhe informava o lado
de fora de sua cabeça, enquanto ele olhava para Ela com assombro e admiração, pois
estava certo que tais recordações não lhe pertenciam. Não era o caso de ser
outra pessoa nem de implante de memória nem de amnésia nem de telepatia porque os
pensamentos emergiam com naturalidade. Ele também se lembrava de seu próprio
passado, embora o dela fosse melhor. <o:p></o:p></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">De
repente, ele passou a contar a Ela que se lembrava de sua prisão por causa de
drogas, coisa pouca, mas o suficiente para marcar sua vida, ainda mais porque
era mulher. Chegou a dormir na cadeia. Naqueles anos usar maconha era muito
mais proibido do que hoje e às vezes até pessoas da classe média também
dançavam. Foi um escândalo na família, pensava ele, conforme revivia a cena e
recitava detalhes da ocorrência para Ela, como vi na 312 Norte. Naquele
presente momento de 1971 os dois tinham em mente as mesmas passagens e o mesmo
medo. Ele também pensou que sua vida tinha um papel secundário, uma vida
desimportante, passada debaixo do prédio com amigos meio calados.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ficavam ali olhando quem subia ou descia. Quase
só isso.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span face=""Trebuchet MS",sans-serif">Naquele
momento as lembranças dele e dela estavam mais ou menos sincronizadas. Ele tinha
dois passados para recordar. A dualidade poderia ser uma manifestação de
loucura, porém muito perfeita, porque Ela estava espantada com os detalhes de
suas lembranças guardadas por ele, iguais às dela, sem contar que ele não
presenciara nenhum desses fatos renitentes na vida de Ela. Também alinhou
memórias sobre dúvidas, receitas de comida, um pronunciamento do general Médici,
gordines envenenados nas 24 horas de Brasília, narizes ensanguentados, pirulito
Zorro e a primeira vez na rodoviária. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Tudo parecia que foi ontem.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Ela
gostava de ser adolescente. Na infância já era adolescente e na fase adulta
continuou adolescente. Gostava da palavra “hiato”. Brasília tem grandes hiatos,
eu e ela pensávamos, e logo vinha a imagem de cerrado vazio entre superquadras
– “ali é a 306, a dos militares” -, ouvíamos, dentro das cabeças. Naquela hora,
Ela intuiu que seu passado também me pertencia. Ela deu grito e disse que não
podia ser assim, mas era. Depois Ela disse que precisava respirar e saiu para
fumar um Continental na janela. Com o olhar perdido em Brasília ainda em
construção, o olhar e Brasília, pensávamos, eu e ela, como sempre, no primeiro
voo de avião em que nossa empregada pegou uns bolinhos de manteiga e imaginou
que era outra coisa e comeu. Viajou tentando deglutir aquilo, não deu o braço a
torcer.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Quase
todas os pensamentos remetem ao que poderia acontecer dali em diante porque a
história dela abriu uma espécie de filial na minha cabeça e isso não tinha
explicação.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Mas havia ainda outros
problemas a resolver na vida de Ela, também muito tensos e sem solução à vista.
Em pouco tempo, talvez uns dois meses, ele já estava acostumado a ter os
pensamentos de Ela, mas ela estava perplexa e incomodada, conforme ele viu e
pensou. Além da raiva por não saber o que era aquilo, por ele estar com seus pensamentos,
até sobre coisas miúdas, desconfortáveis e cretinas. Por vergonha de expor-se
dessa forma, mesmo a um amigo, e por achar que também estava ficando louca, que
parecia a melhor saída; pelo menos dava para explicar.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Ele
não achava incômodo. Ela detestava porque sempre que pensava sobre coisas que
deveria pensar, ele imediatamente captava. Já estava tão treinado que não fazia
qualquer gesto ao pensar em situações completamente absurdas, enquanto ela,
além de irritada com tudo isso, achava injusto só ele ter os pensamentos dela.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Se
não há uma explicação médica para aquele acontecimento, talvez restrito só a
duas pessoas, seria complicado chegar a um psiquiatra e perguntar o que
era.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele e Ela seriam enquadrados como
loucos – sem contar que ambos levavam essa possibilidade em consideração. Ainda
havia um forte preconceito contra pacientes psiquiátricos nos anos de 1970.
Então, só os dois, e eu, sabíamos o que se passava e ainda passa, agora com
menos frequência porque sobrevieram outras preocupações e outras ideias dentro
das cabeças que se separaram por décadas. Desde então, o mundo conheceu muitas
verdades da ciência. Menos a verdade sobre ele e ele Ela.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span face=""Trebuchet MS",sans-serif"><o:p> </o:p></span></p>Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-38238613629387161352020-07-08T19:39:00.002-07:002020-07-08T19:40:36.071-07:00Carnaval <br />
<br />
Antes disso, quando ainda era carnaval, passamos numa tenda de adivinhações e diante de uma cigana, ou uma só uma moça fantasiada de cigana, perguntamos sobre aquela novidade na folia, quem teve a ideia, se vendiam cervejas ou só se apenas liam as mãos. A cigana respondeu que tinham as duas coisas e resolvemos ficar ali, livres do sol, enquanto ela nos olhava com certo espanto. De repente falou: Sabia que vai mudar? Perguntei o que iria mudar e ela respondeu: tudo.<br />
<br />
Eu, que desdenho os videntes, até mesmo profetas, pois o futuro ainda não existe, segundo creio, notei uma segurança terrível em suas palavras, como se a moça tivesse informações privilegiadas, vindas de uma agência de cenários possíveis ou qualquer organização do gênero, nas quais também não costumo acreditar, mas de qualquer forma ela demonstrou certeza. Aí passou um bloco estranho, de homens vestidos de avestruzes, e seguimos a onda caminhando, enquanto uma pequena orquestra tocava frevos muito melancólicos sobre carnavais passados, tempos ideais, sonhos que vão terminar. Aqueles avestruzes lembravam os cabeças da peste da Idade Média, com enormes bicos em que colocavam cânfora e mirra, embora o cheiro vigente fosse de maconha. Notei que os foliões estavam cabisbaixos, pensativos e vagarosos. Minha amiga carnavalesca explicou que era assim mesmo. As letras sugeriam certa solenidade e fomos até o terminal de ônibus, onde o bloco se dissolveu em outras multidões.<br />
<br />
- Será que tudo vai mudar? - ´perguntei.<br />
<br />
- Alguma coisa sempre muda – respondeu minha amiga -, pesando meu interesse pela cigana, quando na verdade, além disso, eu também intuía mudanças muito fortes, depois daquele carnaval. Eu voltaria a um emprego inseguro, o país estava submetido à loucura e imaginei que as mudanças viriam da política; só não tinha ideia se seria uma mudança boa ou má e muito menos se mudaria tudo ou só alguma coisa.<br />
<br />
- Ei, você esqueceu sua carteira! – disse a cigana, que vinha correndo.<br />
<br />
Eu não abri a carteira para ser educado. Não quis conferir se o dinheiro ainda estava lá, com os documentos; mais tarde constatei que estava. Também havia um número de telefone fixo, sem mais informações. Não sabia se ligava antes ou depois do carnaval. Antes ou depois que alguma coisa mudasse ou mudasse tudo, mas deixei para o dia seguinte, quando novos blocos nos aguardavam, pois ainda era domingo. Alguma coisa me dizia que aquele telefone não era da cigana.<br />
<br />
Na segunda-feira, conforme o combinado, haveria mais blocos e cervejas. Minha amiga acordou cedo, animada, mas logo se apôs à face um olhar de melancolia e susto, os dois juntos, embora não combinassem. Notou que não havia barulho, nenhum tambor, um grito, uma lata chutada, como é comum. O silêncio era enorme e eu também percebi numa fração de segundos que aquilo não era normal.<br />
<br />
A janela dá para a rua em que ontem se aninhavam grupos de jovens bêbados e alegres e agora, no presente momento, não tem ninguém. Ainda é cedo, lembrou minha amiga, sem acreditar no que dizia. A rua também estava limpa, sem um único glitter no chão, como se no dia anterior não tivesse acontecido nada. A 500 metros dali estaria a tenda da cigana e andamos e andamos nas ruelas vazias, até desembocar na praça, e nesse rumo não avistamos uma única pessoa. Quando enfim chegamos, a tenda da cigana também não estava lá.<br />
<br />
Pensei em alguns exageros de ontem, não tantos, mas minha amiga estava igualmente confusa com a paisagem. Não passava um carro. Talvez o carnaval esteja suspenso por algum evento, uma epidemia ou intervenção militar. Minha amiga ansiosa, olhando aquele vazio, se perguntanva se poderia ser um filme? Eu falei que poderia ser um monte de coisas e o mais certo seria procurar alguns indícios. Também senti que não tinha cheiro de carnaval.<br />
<br />
Nesse ponto, tive a ideia de ligar para o telefone deixado pela cigana. Pedi umas fichas a minha amiga e fui até o orelhão. Disquei, pois era assim no século 20, e não chegou a três toques para que uma voz masculina e formal dissesse que a gente tinha saído do carnaval. O carnaval estava no mesmo lugar. Vocês é que estão num lugar diferente, ele disse.<br />
<br />
- O que faço para sair daqui? – perguntei, menos assustado do que deveria.<br />
<br />
- Espera<br />
<br />
- Quando tempo?<br />
<br />
- Não sei – ele respondeu<br />
<br />
Voltamos para a casa alugada e no caminho eu contei a minha amiga o diálogo ao telefone ela simplesmente riu. Achou absurdo e pediu que eu contasse a verdade, como foi a conversa com a cigana etc. Eu disse que não era uma cigana. Era outra pessoa, um homem. Percorremos as mesmas ruas vazias, entramos na casa, e olhei do quintal coqueiros sobre tetos antigos e silenciosos, e mais além o mar sem ondas.<br />
<div>
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-17041611559304291382020-05-13T22:02:00.001-07:002020-07-09T22:29:35.552-07:00Confinamento<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;">A
dificuldade é não ter para onde ir nessas horas em que os espaços escolheram.
Nem espaço existe mais em alguns lugares, que não são mais lugares, porque não
há espaço, ex-lugares, por assim dizer, pois tinham nomes e pessoas dentro
dele. Não tem mais nenhuma. Foram esmagadas até ficar nada. Reduzidos a uma
lembrança, embora a lembrança também tenha se reduzido, a ponto de ficar como
um lampejo. O que resta aqui? Um velho senhorio com seus lamentos sobre o
próprio canto em que vive e que sobra. Dia e noite, suas palavras ocupam tudo.
Não posso sair porque lá fora tudo diminui. Se ponho um pé na rua, encontro
logo um obstáculo contagioso.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Um ar que
não se respira direito, como tivesse densidade maior do que tem e que entra
pelas narinas como algo pegajoso e aos gritos. O ar encolhe junto com a rua,
devagar, mas sem intervalos, e grandes avenidas já são becos, e prédios foram
pressionados contra o chão ou sumiram. Pode ter sido um sonho ou sintoma da
doença.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;">Há
outro “lá fora”, visto na TV, repetindo que está tudo em paz. Uma mulher corre
com um cão no parque e sua respiração vaza no microfone de alta sensibilidade e
ela ofega e ofega e diz coisas de si para si que não são muito boas. Mas um
carro de música, circula, também só na tela, explicando que todos podem sair,
enquanto outros fazem sinal de “não” com o dedo, por trás da repórter, e nos deixa
assustados e indecisos. Nessas horas há uivos nas janelas, conversas aos berros
sobre o que está acontecendo, mas às vezes é apenas uma versão; melhor esperar
o pronunciamento oficial, que será feito às 20h, sobre a real situação,
dimensão dos estragos etc. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;">Só
que o homem vestido com uniforme de parada, a espada sobre a mesa, prefere
fazer digressões sobre outros assuntos; seus tempos da cavalaria, infantaria e
paraquedismo, que agora não existe mais porque as forças militares foram
transformadas em guardadores de carros de luxo, cantores de marchas e
desviadores da atenção. Disseram que falam sobre um fundo verde, em que é
colocado um mundo unidimensional, inteiramente falso, em que aparecem o
comércio aberto, cotias atravessando a rua e pessoas trabalhando em seus
escritórios com rostos risonhos de atores.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;">Preferimos
ficar uns dias sem tentar abrir a porta, pois seria deparar com a mesma gosma
que cresce a cada dia ou só o espaço se comprimindo que torna sua textura mais
grosa. O que dizem não combina com o aperto dos cômodos, as paredes que parecem
se mexer em direção à mesa do centro, transformando grandes apartamentos em
quitinetes e quartos em celas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;">Novo
amanhecer, novas sensações e delírios. O lado externo já estaria transformado
em outro tipo de espaço, como o inferno de Joyce, uma prisão medonha, cujas
paredes têm seis quilômetros de espessura e seus prisioneiros estão empilhados,
enquanto o coral de tosse seca ecoa nas casas e a febre de todos aumenta a
temperatura da cidade. <o:p></o:p></span></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-56419899136773189402020-03-09T20:09:00.002-07:002020-03-09T20:09:30.981-07:00 Presidente<div style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; margin-bottom: 6px;">
<br /></div>
<div style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; margin-bottom: 6px;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif;">O
sargento, em seu terceiro ou quarto mandato – já nem lembro mais –, dera-se ao
vício do jogo que ele mesmo legalizara no País. Jogava com seu próprio salário
e às vezes com dinheiro público, numa roda de baralho frequentada pelos mesmos
personagens de sempre, pastores e militares, e alguns ministros de Estado.
Quando perdia, ficava amuado, trancava-se num quartinho do palácio, e deixava a
administração por conta dos filhos, já envelhecidos e ainda infantis. Eles
brigavam entre si, maldiziam o pai, e às vezes decretavam estado de sítio
quando não tinham ideia melhor para conter a onda de crimes praticados por seus
próprios aliados.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif;">Não
havia oposição fora dos presídios, mas os amigos davam tanto trabalho quanto os
antigos desafetos e precisavam de um basta. A exemplo dos comunistas, muitos
foram mortos em emboscadas e solitárias sem pão e água. Quando o presidente
voltava à cena, rezava num templo erguido em intenção da alma do primeiro santo
evangélico, falecido na década passada e autor de milagres comprovados pelo
conselho do reino da república. A imagem do senhor que viveu a maior parte do
tempo no estrangeiro, e ditava o programa de governo, vertia sangue e leite
condensado, dependendo da estação do ano. Ali, no pequeno altar, o chefe do
executivo inspirava-se para retomar as rédeas do poder e conter a família em
eterno conflito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-34908618132513680792019-12-10T06:47:00.003-08:002023-07-10T08:54:41.084-07:00A reforma<br />
<br />
Deslizou o envelope sob a mão, sobre o mármore, mas não era para disfarçar. Todos sabiam dos pagamentos em dinheiro vivo. Ele só queria sentir o conteúdo. Pelo som de arrastar o papel saberia quanto teria no bolso, daqui a pouco, e poderia enfim pagar as dívidas contraídas com terceiros para executar o serviço. Muitas vezes a cena se repetiu e ele aprendeu a ler o conteúdo sem vê-lo. Notas de mil dólares, recém-chegadas à praça com a nova reforma econômica, provavelmente vinte e cinco mil. Daria para ficar com vinte ou dezessete. Matar determinadas pessoas não era mais uma novidade e a mão de obra excedente fez os preços baixarem. Com o fim de tantos empregos e tantas profissões, o assassinato por encomenda ganhou um peso considerável nos índices de emprego informal. Também era um trabalho sem grandes riscos porque a polícia estava instruída a não mexer nesses casos e recebia sua parte por isso.<br />
<br />
- Trabalho à noite. Atiro nos alvos predeterminados. A bala alojada envia os dados para não sei onde e logo volta a informação. Recebo o OK e sigo em frente. O próximo é um homem magro e assustado, conforme vejo a três metros de mim e, agora, ainda mais assustado, depois do tiro. Chego. Ele ainda olha. Quer fazer uma pergunta e eu fico querendo saber o que seria, mas não dá tempo. A gente recebe por pontuação. Errar, menos cinco pontos. Não resolver da primeira vez, perde entre 2 e 5. A produtividade conta muito.<br />
<br />
Depois do trabalho ele vai ao mesmo lugar de sempre. Uma casa de sucos dentro da igreja, num corredor de pequenos quiosques que vendem armas, bíblias, gift cards de dízimos e salvos-condutos para andar na rua depois das 22h. Ali também expedem comprovantes de renda para empreendedores de pequenos negócios, atestados médicos e uniformes militares. Mais adiante, no final do corredor, há uma clínica de esterilização mantida pelos religiosos. A casa de sucos não vende café nem álcool, por força de lei federal. Conversa com colegas sobre o trabalho, erros e acertos, pontuação e estatísticas.<br />
<br />
- Um dia isso vai acabar. Os recursos são finitos, pessoas pobres são finitas e a questão da pobreza que enfrentamos há anos está quase resolvida. Todos que restam já estão cadastrados – desajustados sem renda, saudosos da velha ordem e falsos profetas. Uns fogem, mas não têm onde se esconder; a maioria espera sua hora, com calma e entendimento do processo. <br />
<br />
<div>
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-54332183583163406242019-06-11T18:59:00.004-07:002019-06-12T08:32:50.230-07:00A barata<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Uma barata passeia livremente dentro do apartamento
sem móveis e nem liga para a presença do homem deitado, nu, no meio da sala;
vez por outra, como um animal amestrado, a barata passa por cima do corpo e faz
pequenas piruetas em torno do umbigo do homem. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O homem se levanta, respira fundo, e vai para
o saco de dormir no quarto, sentindo-se também uma barata, igual no livro, embora Metamorfose
não seja sobre um inseto especifico.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Agora, ela também está no quarto, circula como Fred Astaire nos rodapés
e emite um som melancólico de seus espiráculos; bastava um microscópio e
veríamos um olhar expressivo e solidário com o homem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O apartamento precisa ser desocupado.
Despejo. A barata parece saber disso e comporta-se quase como um cachorro
lamentando por seu dono. O homem percebeu, mas olha a barata pensando em outras
coisas, o fim do emprego, o fim de todos os empregos possíveis para alguém que
faz uma tarefa que não existe mais. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">E pensa no tempo do emprego<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Lembra-se do tempo dos empregos? – diz o
homem à barata -.Tive uns.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Bastava ter
ginásio completo e curso de datilografia. Logo uma colocação no serviço
público. Eu gostava das máquinas de escrever. Quando chegava ao fim da linha,
eu rolava o cilindro de volta como quem recarrega uma arma, e repetia o mesmo gesto
muitas vezes e era bonito quando todos no escritório estavam em sincronia;
parecia uma orquestra. Eu preferia o barulho surdo das teclas sobre papeis
intercalados de carbono. Quanto mais cópias, mais surdo o barulho. Quanto mais
força, mais as letras chegavam mais nítidas à última folha.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Às vezes o chefe aparecia para perguntar quem
datilografou isso aqui e reclamava ou dizia meus parabéns. Aprendi num curso
noturno. ASDFG até pegar prática, até escrever sem olhar para a máquina, até
conseguir usar os cinco dedos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span>
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Bons tempos – exclamei à barata.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><b>A lei</b><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Pensando por esse lado eu cometo crimes
porque a vida é curta e não adianta viver na merda durante cem anos se for tudo
igual todo dia e mais à frente a gente vai perceber que não viveu nada.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Então eu roubei e fui preso. Nem liguei.
Estava previsto. O que tinha sido bom foi muito bom no momento do ocorrido.
Valeu a pena andar como rico por mais de dez anos e agora sei como funciona tudo
lá em cima. Primeiro eu quis todos os objetos e tive. Depois comprei algumas
pessoas; umas de modo suave, outras explicitamente.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Quanto custa? É tanto. Vamos nessa. Se
estiverem pensando em prostitutas ou políticos, estão errados. São outros
profissionais, gente dos poderes, aos quais meus negócios ilegais
interessam.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Gostam como a coisa é feita.
Sem sair de casa. Pelos computadores. O programa é bom, os nomes somem,
enquanto o dinheiro chega ao destino livre desses intrusos nos negócios - a
polícia, por exemplo. Com facilitações adequadas, cada um pega a sua parte. Eu
compro, mas ganho ainda mais, pois só investi nisso a vontade de fazer. Não
tenho culpa porque só roubo quem já tem muito, embora os clientes, na maioria
dos casos, também tenham muito e às vezes mais. Uns roubam os outros por meu
intermédio, no mercado de capitais, e se agora me encontro privado da
liberdade, tenho o espírito livre para criar outras maneiras de burlar a bolsa
de valores e outros grandes templos do capital.<span style="mso-spacerun: yes;">
</span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><span style="mso-spacerun: yes;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Cada um vive do jeito que quiser e embora
alguém possa considerar que o mesmo não vale no meu caso, uma situação ilícita,
na maior parte das vezes, pelo menos, eu respondo que as leis mudam com o tempo
– o que vale hoje, não vale amanhã – e que se a própria justiça funciona desse
jeito, deixando uns crimes de lado e acrescentando outros, eu também posso
estar sujeito a oscilações; posso inclusive levar em conta que tenho o direito
de me arrepender, devolver o dinheiro reclamado, ou o que sobrou. Nessas horas,
quando tudo se encerra, tem que ter desapego. Devolva o que puder ajudar em sua
libertação. Conheço o judiciário como a palma da mão, como se conhece o inimigo
e procuro me antecipar, sem contar outras providências, de ordem mais prática e
também muito mais caras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O resultado é que consigo sair – sempre consegui
–, mas saio quebrado em termos de finanças, em dívida com advogados e ainda
devendo no ramo das “outras providências”, conforme disse. Saio e tento
recomeçar a vida dentro dos padrões, tudo em dia. Só que a falta do que tinha e
perdi me leva a querer de novo e vejo que os caminhos ditos legais são muito
precários em remuneração, exigindo mais trabalho em troca de menos dinheiro.
Então volto à cena, com outros truques e justificativas.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-58579360252280721812019-04-15T07:05:00.002-07:002019-04-15T07:05:27.340-07:00Geometria<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Eles caíam aos poucos, em câmara lenta,
embora um observador pudesse vê-los caindo de uma vez - uma queda seguida do
baque seco e finalmente corpos inertes no chão. Alguns se mexiam; outros, não.
Quem caía, no entanto, experimentava um demorado suplício, e sem a aceleração própria
da gravidade. Uma viagem vertical em que os pensamentos eram repassados como
uma via sacra, compactando os piores momentos da vida, os maiores desatinos, a
vergonha, o medo e a dor. Mas havia também um cotidiano, famílias, expedientes,
contas a pagar e até o simulacro de um governo. Não estavam ali por vontade própria
nem foram empurrados. Só estavam naquela situação e não havia como explicar por
que caíam.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Durante a queda conseguiam manter contato
com outros cadentes de longo prazo. Questionavam a razão de estarem ali e
estavam certos de não tratar-se de um simbolismo sobre a existência ou algo
parecido. Era um acontecimento físico e envolvia centenas, talvez milhares, de
seres desinformados. Um fenômeno recente da natureza em contradição com certas
leis estabelecidas. Sabiam que não estavam num precipício – era uma queda em
si, feita sob medida para determinadas pessoas, como um castigo ou um destino.
Os observadores, por sua vez, estavam igualmente espantados. Tanto por verem
tanta gente nessa trajetória quanto por temerem que eles também pudessem
desabar de uma hora para outra. O mundo, naquela época, basicamente era isso.
Os que caiam e os que observavam. A instabilidade, portanto, afetava todos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">No meio da queda havia tempo e espaço para
refletir sobre aquilo. Nenhuma explicação razoável, mas tentativas de encontrar
uma saída – a interrupção da queda, o despertar de um pesadelo, a revelação de
que tudo não passava de uma brincadeira – uma pegadinha da TV, embora muitos já
estivessem acostumados à queda e procuravam levar a vida como se nada demais
estivesse acontecendo. Despertavam, no entanto, quando vinham as partes mais difíceis
do processo: pesadelos vívidos e realidade num só bloco, situações tão
assombrosas que faziam o sonhador preferir voltar à queda regular do dia a dia.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS",sans-serif; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A velocidade era igual para todos na mesma
linha de queda e nesse ritmo as mesmas coisas e pessoas estavam num mesmo
plano, como a banca de revista, que cai junto com a mulher que compra um
jornal, sendo que mais adiante – ou mais embaixo, que seja – não existem mais jornais
nem revistas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-30951918038943228642019-02-03T22:33:00.003-08:002019-02-03T22:33:31.115-08:00Armas<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Não fazer gestos bruscos porque se fizer
eles disparam. Também nos instruíram a não emitir opiniões divergentes, em
qualquer língua, pois se atiram a esmo, por nada, podem muito bem atirar numa
pessoa capaz de contrariá-los. Portanto, não se pode falar sobre determinados
assuntos e muitos preferem ficar em casa – deixam até de ir ao trabalho -, com
medo das armas engatilhadas na cidade.<span style="mso-spacerun: yes;">
</span>Apertam o gatilho por qualquer coisinha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Portanto, levantar dados sobre o país tem
sido uma tarefa complicada. O fato de ser estrangeiro ajuda, mas ser jornalista
atrapalha. O rapaz com um rifle de assalto Heckler e Koch - calibre de 5,56 mm
e alcance de 600 metros - foi o que pareceu mais amistoso e, após cautelosas
tentativas de aproximação dispôs-se a falar, mas exclusivamente sobre armas. Nada
de política, disse. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Ele não está inteiramente satisfeito com o
equipamento atual. Espera um financiamento do governo para adquirir uma
metralhadora MG3 - calibre de 7,62 mm, alcance efetivo de 1200 metros, 1000-1300
tiros por minuto, conforme o manual de instrução na Internet.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Seu rendimento, porém, tem sido elogiado com
a Hecker e Koch. Matou 26 no mês passado, quase todos vadios e viciados,
segundo ele.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">No final do dia, ele e seus amigos se
reúnem em um bar para comentar as ações do dia, as estatísticas, o desempenho
de cada um e a chance de obter uma promoção, talvez um patrocínio. É preciso
aproveitar as oportunidades. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-6488534213564639792018-12-27T14:11:00.003-08:002018-12-27T14:11:32.465-08:00O homem na caixa<br />
<br />
“Primeiro inchou. Depois a pele dele ficou brilhante, mas quebradiça, como um leitão à pururuca - aparência crocante, escamas em formato de cheetos, creca de um corpo já passado dos setenta e coçava. Coçava e expelia uma nuvem de poeira, apesar dos cremes umectantes e dos banhos de óleo. Um dia ele caiu no banheiro e a cobertura quebrou-se, misturou-se à água, escorreu pelo ralo, dissolvida, uma sopa. Sobraram os órgãos internos, de aparência sadia, e uma cabeça em carne viva pedindo socorro. Chegaram a tempo de recolher o amontado – miúdos, músculos, a fáscia e o crânio, a rete mirabili, o osso occipital; a coluna solta, mexendo-se como duas centopeias entrelaçadas” (O cuidador).<br />
<br />
Aquilo coube em uma caixa sem tampa – em cima, a cabeça; embaixo, o resto. Como manter viva tão intensa personalidade do nosso tempo? Houve sugestões, consultas a médicos, telefonemas para especialistas em diversas áreas. Por alguma razão, o homem não sentia dores, apenas incômodo e vergonha, pois estava mais nu do que nu, camadas a menos do nu. Pensava em terno e gravata, solenidades no Rotary, política e salvação da alma, caso contrário a vida não teria sentido. Ou teria? O homem que se preocupava com a imagem pública, descuidou-se da saúde. Por que não salvou a própria pele? Por que não deu atenção aos sintomas, muito raros, por sinal. Como exercitar a vaidade naquelas condições?<br />
<br />
Pesava na morte, embora aquela consciência já fosse alguma coisa; não queria perdê-la, por enquanto. “Ainda sou eu”, disse ele a seu cuidador, em tom afirmativo, dentes simétricos no meio de um rosto em brasa. O cuidador acostumou-se “à forma da massa informe”, conforme escreveu anos depois, ao tornar-se escritor pouco lido e dado a jogos com palavras parecidas. <br />
<br />
Todos os cuidados com a assepsia foram tomados para o homem sem crosta e misteriosamente sem hemorragias. Um quarto especial, refrigerado, inteiramente branco, sem janelas e projeções de imagens agradáveis na parede: infância num bairro aristocrático, colégio interno, formação em Direito, discursos, opúsculos, viagens a convite de ditadores latino-americanos. Uma retrospectiva ao estilo Facebook, intercalada com projeções de textos integralistas de Gustavo Barroso, Miguel Reale e Plínio Salgado.<br />
<br />
O cuidador não perdia a paciência, não perdia nenhum detalhe (anotava), não perdia o senso de oportunidade. Nem mesmo diante de exigências de seu patrão, aos gritos:<br />
- Quero uma tampa decente – ordenava o homem de cara desencapado, com esse tom pedante, enquanto imaginava uma saída. Era preciso fechar a caixa, com buracos para a entrada do ar e saída da voz. Ele precisava falar, expor suas qualidades internas de cristão injustamente condenado àquele destino ou àquele acaso. Assim foi feito. No lado externo da caixa, o sinal que lhe daria identidade a partir de então: ∑. <br />
<br />
No entanto, ainda havia coisas a fazer e na ordem de preferências do homem em pedaços estava uma cadeira no Senado.<br />
<br />
Desejo atendido por correligionários, curiosos e entidades de classe. Campanha difícil para um não intacto. Tudo pelas redes sociais: um pouco de sua história, uma candidatura a serviço da ordem e em nome de Deus. A situação em que se encontrava, com preocupações muito práticas – “cadê meu pulmão esquerdo?”, por exemplo -, não lhe tirava a carência por votos, segundo relato do cuidador num livro chamado “O Cuidador”.<br />
<br />
Um dia o sistema das duas caixas deixaria de funcionar, mas haveria a posteridade, um nome eterno na lembrança de seus compatriotas, caso não houvesse outro lado, o paraíso com sua promessa de eternidade, ou um inferno cercado por uma tampa de quilômetros e quilômetros. O importante veio de um eleitorado disposto a mudar. O homem que não aparecia na TV teve seu drama exposto em pequenos textos nas redes, explicando que seu estado não o impedia de servir à pátria, a Deus e à família.<br />
<br />
<div>
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-74607387384516558262018-11-07T15:35:00.003-08:002018-11-07T17:37:56.889-08:00L.<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">L. gosta daquele momento, o de escrever uma coisa e depois dizer
de si para si “que texto do caralho!”. Levanta-se da cadeira, volta, uma
segunda lida e a expressão de contentamento, enquanto a mulher prepara o café
solúvel. Três anos sem emprego e a vaidade continua intacta, mesmo quando a
mulher reclama de sua preguiça na hora de lavar os pratos ou varrer a
sala.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Neste tempo ainda há anúncios
classificados no jornal.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ela: “Eu vi que
tem uma vaga de subeditor numa revista imobiliária". Jamais ele iria aceitar
aquilo, imóveis; queria o suplemento de cultura do maior jornal da cidade,
talvez do país, já ocupado por um jovem com doutorado em Yale.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">-.-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">L. sente a indireta com a história do emprego – pobre coitada,
pensa – e vai lá fora fumar um cigarro. Ela trabalha no tribunal, concursada, e
ele deixou de participar do orçamento assim que acabou o fundo de garantia.
Passa o dia escrevendo suas memórias romanceadas. Um dia ela se vê sozinha em
casa, abre o computador, lê um pedaço e acha aquilo uma merda. Acha também que
deveria ser mais clara, “olha, não vai dar etc.”, mas desiste porque não quer
afetar uma pessoa tão próxima, um casamento de vinte anos, mesmo um casamento
naquela fase em que cada um cuida de si. Apesar de tudo uma convivência a ser
preservada, como se L. fosse um animal doméstico.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Baixa a tampa do laptop, um dos primeiros
desse modelo, e dá fim ao velório do texto - cheio de interjeições, frases de
efeito; as sacadas, como ele diz com frequência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">-.-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Uma sensação estranha persiste, a cronologia precária - a sensação de
que o tempo não passa como deveria. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O agora parece esticado ao máximo e o que
deveria ter sido ainda é.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O tecido em que
se encontra está parado; apenas se desloca no espaço, conforme ele supõe, baseado na Relatividade Geral. Sua mulher acha que L. precisa tomar remédio
para uma síndrome que viu na Internet, capaz de provocar esse efeito
indesejável, que é descobrir que o tempo é mesmo uma ilusão, e acostumar-se com
isso. Apenas deslocar-se no espaço. Nem ontem, nem amanhã.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">-.-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">L. só consegue escrever nas piores condições, como agora, diante
de tanto aperto no coração, apesar dos comprimidos. Mas só escrever não
funcionava. Queria ir à guerra, às últimas consequências, até descobrir que
estava mal acompanhado nessa empreitada. Pelo menos em termos militares. A
coragem brotou de uma vez na semana decisiva, em que o País poderia enveredar
por um caminho turbulento, ou por coisa muito pior, e ele estava deposto a
enfrentar o adversário em seu próprio campo. Mas a análise da situação, como
fazia no Diretório Estudantil, deu-lhe o bom senso de ficar calado e voltar aos
livros. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">-.-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">L. surpreendeu-se ao receber uma advertência das autoridades.
Queriam esclarecimentos sobre sua inadimplência com o erário de Salomão e mais
ainda sobre um artigo que escrevera para uma publicação semiclandestina,
classificado pelos censores do regime na categoria de “Contra Deus”. Tratava-se
de um pequeno ensaio sobre coisas antigas, como o Estado laico, mas o comitê
pentecostal não gostou. L. manteve a calma e ainda brincou consigo mesmo:
“finalmente Deus encontrou um adversário à altura”. Na manhã
seguinte, as seis em ponto, chegaram os Homens de Cristo, com seus fuzis
automáticos.<o:p></o:p></span></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-19948357267248090272018-10-29T12:24:00.004-07:002018-10-29T12:27:37.345-07:00Urubus da Sala<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Meu
livro "Urubus da Sala" sairá pela editora Casa Forte Publishing, versão em
inglês (Vultures in the living room), com bela tradução de Helena Cavendish.
Enquanto isso, alguns pequenos contos já estão publicados em formato digital,
um a um. Não é um procedimento usual, mas no ano que vem também haverá a edição
em Português. Caso haja literatura no Brasil em 2019.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<br />
<a href="https://casafortepress.com/">CASA FORTE PUBLISHING</a><br />
<div class="MsoNormal">
</div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-77454289392735659842018-08-13T12:01:00.002-07:002018-08-13T12:01:48.923-07:00Mar de lama<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O navio corre da terra que se dissolve no
oceano e dá para ver a lama da proa e da popa. Pelo rádio, no último contato, informaram
sobre a existência de um fenômeno ainda sem nome. A preocupação das autoridades
era não criar pânico, mas isso foi há dois dias. Não se sabe se ainda há
autoridades no continente e se ainda há continente. Pelo binoculo: tudo se
passa devagar, um tsunami lento e pastoso movendo-se como no início dos tempos,
em dois sentidos. Não temos a menor ideia para uma solução parcial do drama que
nos envolve e pode mudar tudo. Em algum momento será preciso avisar aos
passageiros que o porto de destino não existe mais – nem o de origem. A bordo,
no entanto, o cruzeiro segue como cruzeiro e não como retirada de emergência:
jogos no cassino, camas arrumadas, casais de idosos na última viagem. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O barco é imenso e os passageiros não sabem
o que se passa. Quando embarcaram tudo estava normal. Para manter as pessoas
longe do convés, foi anunciada uma falsa previsão de tempestade. O navio é
seguro, mostram os folhetos, e há muita diversão a bordo. Todos na ponte de
comando estão atentos e preocupados. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Adélia está em sua cabine. Olha pela
escotilha e vê pássaros desorientados. Não há de ser nada. Não sabe sobre
pássaros e suas migrações.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Pensa em
Otavio, na noite anterior, e como são chatos os cruzeiros. Por que um homem
estaria só, num transatlântico de 230 mil toneladas e 5.999 mil estranhos? </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><o:p></o:p></span><span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O mar fica um pouco agitado, mas não
balança o navio. As ondas de lama ainda estçao longe, lá atrás e lá na frente,
mas temos vantagem sobre elas, ressaltou o comandante, pensando bem que aquilo
poderia ser uma onda só e não duas. Em algum ponto se fecha em circulo e nos
engole. Outro oficial pediu licença e perguntou até quando duraria a vantagem
se aquilo vinha dos dois lados e quando e onde iria parar. O capitão coçou a
testa, como faria num filme, e respondeu que mudará de curso para navegar entre
os dois himalaias lamacentos. Na melhor das hipóteses, estaremos num
fiorde.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Na pior, numa pororoca sólida,
uma pasta do fim do mundo. Ele entende um pouco de Geologia. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Sem comunicação com qualquer lugar do mundo,
O navio solitário inclina-se para o Sul, sob um céu nublado. Os passageiros
estão aqui para esquecer suas vidas em terra e não convém preocupá-los com
notícias desagradáveis. O capitão olha o oceano, pergunta de si para si qual
seria a textura dessa lama.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><o:p></o:p></span><span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">No último comunicado deu-se a informação de
que o fenômeno não era localizado e indicou lugares agora inacessíveis, portos
destruídos, cidades deslizando com a lava morna. Logo veio o ruído e depois o
silêncio. Os passageiros ficaram sem internet. Mais uma vez, o comando culpou a
tempestade no continente. Não havia previsão para a normalização do serviço. A
maioria se conformou. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A tempestade que o comandante não esperava
que viesse, e que mentira sobre ela, estava de fato, começando. Um ataque em
dois flancos, entre a lama ainda distante e os tufões enormes de água. O
transatlântico quase foi encoberto pela água, balançou, enquanto Adélia trata
tudo isso como uma diversão. Suas amigas, nem tanto, pois mantém as mãos
apertadas no varão da cama; rostos horrorizados. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Dada a iminência do desastre, Otavio e Adélia
se reencontram por acaso, no corredor, e numa conversa subsequente – mais naturais
e cúmplices do que no bar, na noite anterior -, desconfiam sobre o destino do
navio e do público em geral. Sabem que é o fim ou algo parecido.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Decidem investigar, como fazem alguns
passageiros de Os Prêmios, que Adélia leu na adolescência. Mas não investigam o
navio. Os dois querem chegar ao convés para olhar o que se passa no céu e na
água. Todas as portas estão fechadas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Eles desconfiaram porque cruzaram com
tripulantes e leram seus rostos. Uma oficial passou pelo corredor com uma
pesada maquiagem que lhe cobria o pânico. Para Otávio, foi o choro de outro funcionário
graduado. Chorava e tapava a boca com as duas mãos; os dedos subiam para
enxugar as lágrimas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Na ponte, a política muda. Nao há mais o
que esconder. O comandante acaba de tomar a decisão de dirigir-se aos passageiros
e contar o que está ocorrendo. A boa notícia: a onda gigante de lama havia
parado. Solidificou-se do mar a muitos metros do chão, criando uma parede no
horizonte, uma nova fronteira, entre os passageiros e os ex-continentes. Todos
deveriam permanecer no navio que, por razões técnicas, iria lançar âncora ali mesmo
e parar também. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Não adiantaria ir em
frente sem saber se ainda há algo à frente. Voltar, a mesma coisa. A saída
seria ficar parado, à espera de algum contato. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Alto-falantes anunciam que os passageiros
receberão em suas cabines um comunicado sobre a situação. Todos pensam na
tempestade, enquanto o comandante e um assessor de imprensa estão na ponte
discutindo os termos do informe cujo ineditismo causa alguma dificuldade de
redação. O que dizer? A paisagem mudou? Todos os parentes das pessoas podem
estar mortos? Será dito apenas o que se sabe, ordena o comandante. Uma onda
desconhecida, uma nova topologia, a montanha de barro nos dois lados - causada
por fatores desconhecidos – e o fim da tempestade; apenas isso. A Internet
continua fora do ar. A piscina será liberada. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br style="background-color: white; font-family: Arial; font-size: 11px;" />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-60056223866591381532018-08-03T12:03:00.001-07:002018-08-03T12:03:04.765-07:00Espera sem tempo<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><o:p>Samarone Lima </o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><o:p><br /></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Cada
dia uma aventura, um infinito<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O
gosto de falar sozinho<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">De costas
ao espelho que não existe<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O
infortúnio, a dor<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">A
desigualdade das mãos<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Resvalando
em outras mãos<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Que
invento<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Cada
dia um sopro, um susto<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Uma
gargalhada que ecoa<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Na memória
do amor<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">E o
não dito<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O
guardado<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Fica
como uma espera sem tempo<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">uma
casa desabitada<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">com a
memória dos passos<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">a
marcar o chão<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-62079143413664190792018-04-11T23:56:00.003-07:002018-04-11T23:56:27.669-07:00Fuzis<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">O
pelotão de fuzilamento está a postos para a primeira execução do novo governo.
Há um clima de festa na plateia e os telespectadores também poderão acompanhar
o evento transmitido em cadeia nacional. Desde 1876, há 142 anos, não víamos
uma morte pública, demandada pelo Estado, quando o negro Francisco foi
enforcado no município de Pilar, em Alagoas. Agora, o método é outro. Belos
fuzis importados abaterão o traidor da pátria e da família, um sujeito
assustado e baixinho, acusado de escrever impropérios contra o governo. O povo
apoia, é o que interessa, disse o novo presidente a uma imprensa já preparada
para o espetáculo. Os patrocinadores são uma empresa de cosméticos e um banco.<br /><br /><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";">Durante
a semana, em chamadas regulares, a TV anunciou o fuzilamento com certa
sobriedade. Mas aos poucos surgiram vinhetas mais animadas, como nos anúncios
sobre futebol e Formula-1, pois a audiência tem sido acima do esperado. Nos
telejornais, matérias com a família e amigos do futuro morto que, apesar de
tristeza, viam na medida governamental uma forma inovadora de conduzir o país
dentro de padrões de respeito à autoridade e preservação dos bons costumes. Não
dava para ficar do jeito que estava, observou a mãe do réu, eleitora
entusiasmada do regime recém-inaugurado. Numa demonstração de patriotismo, ela
não chorou.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-18449944993458565812018-02-19T11:26:00.003-08:002018-02-19T11:26:48.546-08:00Procurando Carmen<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Carmen desapareceu. Há uns anos venho
percorrendo pistas por todos os meios, ali e aqui, e não há sinal de Carmen.
Volto ao conjunto residencial e pergunto aos moradores mais antigos se se lembram
de Carmen e nenhum se lembra. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Nada a respeito dela depois de trinta anos.
Ninguém ouviu falar nem de longe e parecia não ser este o lugar a ser procurado
porque o nome de Carmen sumiu da memória geral, assim, por encanto, e é um
assombro que uma pessoa tão marcante seja esquecida desse jeito.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Carmen existe ou existiu. Alguns amigos se
recordam dela, mas dizem que não a veem desde aquele tempo. Está numa foto.
Cara tranquila e ansiosa ao mesmo tempo, pois só ela conseguia passar essas
sensações ambíguas. Dá para perceber o início do gesto que ela faz para fugir
do enquadramento, apressada, saindo do foco; não gostava de aparecer, não
queria posar – achava falso. Usava óculos e gostava dos poucos amigos. Tomei
por responsabilidade encontrá-la, embora sabendo que isso pode dar em decepção
e desse modo estaria explicado porque ninguém notou a existência dela. Mesmo
assim, sigo adiante, apenas com informações da memória. Na memória dos outros,
preciso do ponto exato onde Carmen caiu no esquecimento e por que. Um problema:
não sei o sobrenome de Carmen. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Era tão crítica. Parecia uma dessas pessoas
de hoje, meio sem esperança, mas achando-se interessante por achar isso. Num
dia na praia, fim de tarde, coisas daquele tempo, Carmen era a primeira a notar
o estereotipo da cena; tinha horror a lual e animações do gênero. Enquanto os
outros se supriam daquilo como a essência da juventude, ela vinha com uma
história sobre a geração perdida e grandes batalhas a travar. Só que dizia essas coisas de um jeito muito terno,
sem tirar o prazer de ninguém por estar chapado, olhando pro céu ou dando beijinhos.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Carmen diria hoje, imagino, que procurar
pessoas perdidas é um recurso meio manjado – lembraria “Detetives Selvagens”, de
Roberto Bolaño -, mas em relação a Carmen talvez fosse diferente: ela também
arrumaria uma maneira de dizer siga em frente, pode dar certo. Talvez sugerisse
que eu fosse procurá-la de outro modo, sem a preocupação encontrá-la, como pode
ser o caso de agora. Uma vez ela disse que só processo existe; o resto
(incluindo poder e glória) é pura ilusão. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Meu último registro é sua forte irritação.
Implicava demais com avisos e ditos populares e frases em geral e corrigia a caneta
comunicados do condomínio. “Por que Deus dá o frio conforme o cobertor? Por que
não dá o cobertor conforme o frio?”. Éramos grudados numa época em que parecia
estranho um cara sair todo dia com a mesma menina e não acontecer nada entre
eles. As distrações eram outras, o universo e suas histórias, teorias mal
ajambradas sobre tudo e a recorrente marcação de Carmen em cima de um mundo do
qual ela discordava de quase tudo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Apesar disso, quando estava certa tinha um
charme benevolente. Nunca usou “eu não disse?!”. Aliava-se ao contraditor,
ajudando-o a encontrar uma saída honrosa. E era muito bonita para ser esquecida
de uma hora para outra. Nunca usou a beleza em proveito próprio, mas aí acabava
despertando outras belezas e até certa dose de autoridade. Fomos seus amigos e
seguidores. Uma rara turma com uma mulher no comando. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O que mais impressionava era a honestidade
que passava ao falar sobre qualquer assunto. Podia não saber exatamente o que
era, mas aos poucos ia montando o que dispunha para enfim apresentar um palpite
interessante. Às vezes uma ideia. Foi a primeira pessoa que me falou sobre ondas
gravitacionais e outras coisas que na época eram apenas especulação. Carmem
entendia de Física de Partículas, lia Rosa Luxemburgo e gostava de futebol.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-41661140386975605722018-01-26T11:54:00.003-08:002018-01-26T11:54:40.997-08:00O envelope - Da série histórias com o mesmo final <div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A pobreza tem pernas curtas. Quando mais pobres ficamos, maiores ficam as
distâncias, menor a capacidade de chegar onde quer que seja. Empobreci. Antes
ia de táxi, troquei por ônibus, hoje vou a pé. Tinha a cidade, sobrou o bairro.
O universo dos ricos se expande como o universo de verdade; o dos pobres, encolhe.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Já estava entrando em desespero quando o
telefone tocou: tenho um trabalho pra você, disse a voz do outro lado, uma pessoa
que eu não conhecia, mas quem ligou estava a par da minha situação e
provavelmente eu fora indicado por um ex-colega da agência da qual fui demitido.
Pelo menos pensei assim na hora. Ele queria conversar a respeito do serviço,
minha disponibilidade (total) e deixou bem claro que se tratava de algo
sigiloso, segredo industrial ou coisa parecida, que é normal no mundo dos
negócios. Na época, eu morava numa pensão, depois de passar por um hotel, uma
quitinete e uma república de gente mais nova que não me deixava dormir. Assim
que desliguei o telefone fui ao banheiro no final do corredor com uma toalha no
pescoço e entrei na fila do banho. Antes de perder o emprego eu tinha uma casa
de dois andares. Houve uma queda vagarosa e consistente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Encontrei o homem no restaurante de um
hotel de quatro estrelas e perguntei quem sugeriu o meu nome - ele respondeu
que pegou o currículo na Internet. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Como sabe que estou fudido?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Pessoas fodidas distribuem currículos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Também informou que o trabalho não era
propriamente na minha área. Não sei fazer outra coisa a não ser texto
publicitário, eu me adiantei, e ele garantiu que eu saberia fazer, pois era um
serviço simples, de courrier. Eu tinha apenas que pegar um avião e levar
documentos importantes para a sede da empresa, em Nova York. Uma vez por mês, a dez mil reais a viagem,
incluindo hospedagem e alimentação. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Por que não manda pelo correio? - perguntei ao homem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Tivemos problema com o correio – ele disse.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Minha primeira viagem foi tranquila. Era só
um envelope, fino, bem colado, sem nada escrito. Levei apenas bagagem de mão.
No Aeroporto John Kennedy, os funcionários revistaram minha bagagem, só
encontraram uma muda de roupa e passei sem problemas pela imigração com o
envelope debaixo do braço. Fiquei no hotel indicado, esperando pelo
destinatário e ele chegou ainda pela manhã. Um homem de cabelo bem cortado,
barba desenhada e vestido de terno, cujo desenho final lembrava um agente do
FBI dos filmes. Ele pegou o envelope, me entregou dez mil em espécie e foi
embora. Na segunda vez, a mesma coisa. À tarde, eu andava pela cidade, sem destino,
comia num restaurante da Rua 47 e via filmes Jacques Riveti. De repente virei
uma reação à minha própria certeza de que quanto mais pobres somos, mais pobre
ficamos, e aderi a certo otimismo. De homem supérfluo, como diziam no século
19, passei a executivo bem-sucedido. Por uns segundos, eu esquecia o caráter do
meu trabalho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Em dois meses eu estava com as contas em
dia, dinheiro na poupança, mas um pouco intrigado. O que tinha dentro desses
envelopes? Obviamente cheguei a pensar em drogas. Mas que droga seria tão fina
a ponto de caber em um envelope e ainda capaz de compensar 10 mil reais só para
transportá-la? Pensei até em espionagem, mas depois parei de pensar porque
gosto de Nova York e estava gostando ainda mais de ganhar uma grana sem muito
esforço, pois conseguia dormir em avião melhor do que dormia em casa, sonhando
com meus problemas financeiros. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Na terceira vez, o cara da imigração se
lembrava da minha cara. Fez um gesto enigmático, como se dissesse estou de olho
em você. O que o desgraçado faria nesse vaivém mensal? – deve ter imaginado.
Senti necessidade de explicar ao agente o escopo do meu trabalho, mas deixei de
lado para não piorar a situação porque nem eu mesmo sabia o que estava fazendo.
Daí surgiu a curiosidade mais intensa e no hotel olhei para o envelope,
coloquei-o contra a luz, dei pequenas balançadas e nada sugeria o conteúdo. Vou
abri, em pensei, e abri. O envelope estava vazio. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Qual foi a minha decisão: colar o envelope direitinho,
entregar ao cara e não falar mais nisso. Durante dois anos fiquei nessa ponte
aérea, muito satisfatória, compensadora em termos financeiros e culturais, até
o dia em que o homem não apareceu mais com a encomenda. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Só então voltei à minha curiosidade, agora
sem riscos, sem as viagens, mas ainda sem emprego. Qual a razão de ser pago para
levar um envelope vazio a Nova York todos os meses? De novo, levantei várias
possibilidades. Talvez o conteúdo fosse infinitamente pequeno; quando descolei
o papel, a coisinha microscópica pode ter fugido como um fio de pena
transparente, quase infinitesimal. Outras hipóteses: uma espécie de
filantropia, um anjo da guarda, uma pesquisa, uma promoção comercial. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Anos depois, ao olhar pela janela do
ônibus, vi o homem dos envelopes, cabisbaixo, e desci no próximo ponto para
tentar alcançá-lo. Alcancei. Pedi que fossemos a um bar, ali perto, para
esclarecer a história. Mal sentamos, chegou uma moça que se identificou como
filha dele. Contou que o pai tinha problemas psiquiátricos e que havia piorado
depois que parou de me ajudar. A família, no entanto, não tinha mais condições
de promover as viagens aos Estados Unidos. Mas ela queria ver o pai mais
animado, pois o tratamento não estava dando resultado, apesar das doses
cavalares de Haloperidol.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A moça abriu uma pasta, puxou um envelope e
uma passagem para Curitiba. Dois mil por viagem. Eu aceitei. O homem sorriu. <o:p></o:p></span></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-5951221936464915752018-01-08T11:14:00.006-08:002018-01-08T11:15:22.664-08:00Memória do asfalto<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A memória é fraca. Algumas começam a
fraquejar no meio da velhice e morrem antes de seus donos; outras sobrevivem
aos pedaços: situações vistas a vividas, nomes de personagens e datas se
transformam em ondas perdidas no espaço. Por isso, algumas pessoas escrevem
livros de reminiscências ou mantém uma agenda. Minha avó anotava tudo em
papeizinhos e os colocava numa caixa de sapatos que ela se esquecia de
consultar. A memória remota, no entanto, às vezes se preserva por mais tempo,
talvez porque é a primeira impressão de um cérebro jovem e ainda cheio de
espaço para armazenar lembranças. Ontem é um transtorno, mas o século passado
surge brilhante e nítido, como o sangue escorrendo na principal rua da cidade, onde
havia um matadouro de gado, enquanto onde Seu Augusto, meu vizinho, seguia para
o grupo escolar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Caixeiros viajantes, cassacos, ciganos e
homens armados fumando cigarros Astória pareciam bem instalados na memória de
seu Augusto, mas ele não tem registro do almoço do dia. “O que comi?” - pergunta
de si para si e depois deixa de lado para ver-se com seus pensamentos da
infância e juventude. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Quase sempre seu Augusto, o velho, é o jovem
que observa os cassacos e seu trabalho escravo na construção da rodovia,
trazendo o progresso e mais distração, conforme disse o prefeito – um senhor baixinho
e simpático – e conforme disse o padre - alto, forte e alemão. Veio parar ali
não se sabe como, mas a igreja tem recursos e condições de levar a palavra de
Deus até mesmo aos cassacos, naquele fim de mundo onde a memória de Seu Augusto
observa a estrada de rodagem ganhando asfalto e uma lagartixa percorrendo a
traseira de um trator quebrado. “A lagartixa tinha um olhar condescendente e
solidário”, observa seu Augusto em suas anotações para um livro de memórias. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A princípio Seu Augusto não falaria tanto
de sua vida. Estava mais interessados na vida dos cassacos – trabalhadores
eventuais e nômades da antiga Inspetoria de Obras Contra as Secas - e outros
tipos da sua região do tempo, numa volta ao romance dos anos 30, como ele mesmo
me contou. Já existe até um livro sobre com esse título, “Casacos”, de José
Cordeiro de Andrade. Mas tudo bem, disse seu Augusto, eu só faço isso para não
perder a memória. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Seu Augusto está bem situado em meados do
século passado, quase outra era, quando parecia que o mundo estava sendo criado
naquele momento e, tomando sua vida como referência, estava mesmo. Vale a pena ver a animação de seu Augusto
quando fala sobre Getúlio Vargas e programas de rádio, além de suas coisas
cotidianas, sua visão do mundo a partir dos livros de Graciliano Ramos e das
conversas na praça. Com os dias de hoje,
só dificuldade. Mesmo antes da doença, ele já não entendia a pressa dos acontecimentos.
Também achava que ele próprio estava devagar ou, mais precisamente, havia uma
conspiração do tempo – o de fora e o de dentro - contra seu final de existência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Um de seus colegas da época de repartição,
Gilvan Vieira Guedes, também escritor bissexto, deixou anotações sobre a vida
difícil desses trabalhadores em uma pasta a que tive acesso porque ele é meu
pai. O mesmo tom. Uma sociedade nascendo no Brasil pós-revolução de 30, embora
Gilvan tenha desancado Getúlio, que não admirava por causa do governo
autoritário. Mas o mundo nascia ali, perto do Rio Ipanema, numa cidade
sertaneja calorenta de dia e fria à noite e onde algumas pessoas passavam fome
e outras liam Émile Zola. <o:p></o:p></span><br />
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Os cassacos viviam em condições difíceis e
carregavam suas redes para onde fossem. Não tinham qualquer documentação. Os
contratados das obras contra as Secas, do Ministério de Viação e Obas Públicas,
tinham salários, carteira assinada e também problemas. Gilvan e seu Augusto liam Zola e se
preocupavam com os cassacos. Só isso lhes dava a classificação de comunistas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Anos mais tarde, em 1964, já casados, ambos
tiveram que fugir para evitar a prisão. Entocaram-se numa fazenda de um
expedicionário da FEB e ali por perto também encontraram cassacos. Um deles
estava encolhido num canto, tremendo no calor, maleita, ele disse, mas parecia
coisa mais grave. O homem foi melhorando aos poucos, depois de um uísque Cavalo
branco, depois mais outra; só duas, porque era caro. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Seu Augusto achou o homem muito doente,
talvez fosse Schistosoma, pensou naquela hora, pois a barriga estava inchada, e
talvez fosse doença de Chagas, Trypanosoma cruzi, o bichinho do barbeiro, tão
comum nas taipas onde os cassacos estendiam suas as redes. Um buraco no
coração, sangue venoso e arterial se misturam numa pororoca venenosa, seguida
de morte horrível, como se diz atualmente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Melhor chamar o doutor Fernando, que sabe
do nosso esconderijo. Fernando é comunista mesmo, pelo menos votou no marechal
Lott; soube que esteve na palestra de Octávio Brandão. Falar nisso você precisa
ler “Canais e Lagoas”, o livro de Octávio. Quer dizer: ele não é só comunista; é
escritor também.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"> <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Não dá – disse Gilvan -. A gente só pode
sair daqui quando tiver informações de João Farias, que conhece gente no
exército. Isso tem cara que vai demorar até 65 ou mais.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Seu Augusto e Gilvan ficaram bebendo, em
copinhos de ágata – primeiro uísque, depois cachaça -, e conversando com o
cassaco, que preferiu a cuia. Tinha uma conversa aprumada e disse que já esteve
em situação melhor, muito antes, na mesma repartição, quando chegou ao cargo de
auxiliar de contabilidade, mas fora demitido a bem do serviço público por
Augusto Pereira Lima, o próprio seu Augusto, na época em que ele foi diretor de
pessoal, em Palmeira dos Índios. Nenhum
sabia do outro. Pouco se viram, na verdade, mas o caso trazia indícios contra o
cassaco, ali no canto, se ajeitando. Sem provas, repetiu o homem, tornando a
falar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-Assinei o papel com um revólver
engatilhado em minha cabeça – contou o cassaco. – Não fiquei com nada, nenhum
tostão, caí na miséria depois daquela comissão de inquérito. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">- Era o que me faltava: o Dreyfus do sertão!
- lamentou-se seu Augusto. Mas ele estava
mesmo preocupado em ter levado um homem àquela situação, como presidente do
inquérito administrativo, e encheu-se de culpa. Foi uma coisa bem marcante. A
partir daí, seu Augusto começou a envelhecer e o que veio depois só não se perdeu
por causa das anotações de Gilvan, datilografadas em duas vias, hoje quase
sépia e parte comida pelas traças. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Gilvan morreu em 2015. Deixou escrito que
ele e seu Augusto terminaram chamando Dr. Fernando, que levou o cassaco para o
posto de puericultura. O problema era subnutrição. Ninguém foi preso, mas os
dois tiveram que sair de Alagoas porque o departamento estava cheio de
delatores do novo regime. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Seu Augusto, quase 100 anos, mantém a
memória como uma seta do tempo ao contrário, dos anos de 1960 aos anteriores, e
dai revê a cara abismada do cassaco inocente, o sangue escorrendo na rua do
comércio e o asfalto quente levantando fumaça. Lá no fundo das lembranças, as
normalistas de Santana do Ipanema cantam boleros de Consuelo Velazquez. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-4145331378600273762017-12-28T18:12:00.000-08:002017-12-28T18:12:36.904-08:00Atolados no escuro<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">As
luzes foram se apagando aos poucos, como o Big Rip, que é a teoria sobre a
expansão do universo até o ponto em que todas as galáxias estarão isoladas umas
das outras. Um astrônomo amador estava entre os perdidos nas trevas e disse
isso apenas em termos comparativos porque havia a sensação de que, mesmo no
escuro, as coisas iam se afastando – o próprio chão parecia se esticar como
borracha e dai em diante as pessoas se apressaram em tatear entre os escombros
da cidade, procurando alguma coisa para comer ou onde se abrigar, ou pelo menos
encostar a cabeça em algo seguro. Mas paredes e muros duravam pouco em seu
lugar e o próprio grupo, de mãos dadas, fazia um enorme esforço para manter-se
unido. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O
certo é que se passaram noites sem dias e a energia não voltava nem havia jeito
de saber quando voltaria. Findaram as chamas das velas e isqueiros e o facho
das lanternas. Não se viam as estrelas,
cobertas de nuvens, e começou a chover sem parar – chuva horizontal, estranha,
vinda do Norte -, enlameando a caravana que seguia meio sem destino pela
avenida principal interminável, pois prédios antes vizinhos agora estavam
distanciados por quarteirões. Homens e mulheres de negócios, gente que teve
bons empregos, inclusive na Bolsa de Valores, estavam agora na mistura de lama
com escuro, uma substância pastosa e dispersa que não conseguia untar o que
restava da cidade. <o:p></o:p></span><br />
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Seguiram
no tato, ensopados, cuidando para não serem separados pelo tecido do chão em
movimento, e a chuva lateral continuava, atrapalhando a busca. Seria preciso encontrar
um teto, uma singularidade naquele estiramento, pois a enxurrada argilosa, com
todos os cheiros da cidade parecia mais acelerada e a água já estava dos pés à
cintura. Um homem foi jogado contra um carro, que também já se deslocava no
lamaçal ralo, e mesmo com a dor da batida gritou que aconteceu uma coisa séria,
e quando perguntaram se era uma enchente, ele respondeu que era muito pior. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Tudo está se derretendo - disse ele - e o grupo ficou sem saber se era uma metáfora
ou se era isso mesmo. Logo os sinais ficaram mais à vista, como o prédio
adiante, que adquiriu a mesma consistência da lama e depois se misturou a ela,
tornando líquidos apartamentos e salas comerciais. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Siqueira, fudeu tudo! – gritou o último homem da corrente de mãos. Tentava segurar-se
num poste com o braço solto, que também se distendia e se afastava e lá na
frente se diluía. Ninguém conhecia Siqueira nem importava naquele momento. <o:p></o:p></span><br />
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Sob
uma marquise, finalmente, encontram uma porta ainda sólida. Estava fechada à
chave, com água barrenta até o meio, mas apresentou-se um mecânico com um
pedaço de ferro e fez uma alavanca para tirar a porta da frente. Lá dentro não
havia água nem lama, embora estivesse também escuro. Umas duas horas de
procura, como cegos, e de repente uma luz clara, iluminando uma sala branca e
impecável, sem decoração, apenas branca. No centro, um homem em pé, também de
branco, perguntou como estava lá fora. Há dias estava trancado ali. Não ficou
chateado com a presença dos estranhos. Pelo contrário, parecia alegre por ver gente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Acho a situação anti-intuitiva – disse o astrônomo amador.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Tudo caminha para a desordem – respondeu o homem de branco.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Eu sei, eu sei que é assim – retrucou o astrônomo amador – Só quero saber por
que é especificamente assim, como agora? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Porque pode ser de qualquer jeito -, respondeu de novo o homem de branco. O
homem não sabia ao certo como estava o lado de fora, mas sabia o que era. Tranquilo
em seu bunker, informou sobre o aparente colapso. Pelo visto vinha preparando
aquele lugar há muito tempo. Não era santo nem profeta; era só um cara
prevenido e bem informado. Além de encerrar as questões entrópicas do astrônomo,
ele deu muitas referências sobre o estado da matéria e ainda cálculos precisos
sobre a composição daquilo que envolvia a cidade e que, ao final, envolveria
tudo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Costas
apoiadas nas paredes deixaram a sala suja de lama, mas o homem de branco não se
incomodou. Disse apenas que não tinha como hospedar tanta gente porque o
estoque de alimentos não daria para todos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Vamos ficar porque somos maioria – disse um advogado, exaltado, como num
tribunal. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">O
homem de branco ouviu a proposta sem tomá-la como ofensa ou ameaça e apenas
acrescentou que também ele teria que deixar o lugar em alguns dias. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">-
Talvez não seja o fim – disse ele. – Talvez continuemos a viver, dissolvidos,
misturados à matéria viscosa. Talvez seja só uma mudança de estado.<o:p></o:p></span></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-3643018402829799262017-12-12T15:29:00.004-08:002017-12-12T15:30:05.371-08:00Pós-vida<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms", sans-serif;">Morreu
e surgiu na vida eterna, ou em algo parecido, mas ali também não obteve
respostas sobre a existência e o fim da existência. O lugar era espaço
aparentemente vazio, embora outros mortos venham especulando que o vácuo está
cheio de flutuações de gluóns, como ocorre no mundo das partículas. Mas a
questão continua: onde estamos? Nenhuma entidade, religiosa ou não, apareceu
para dar explicações, embora muitos já estejam nesse ambiente há milhares de
anos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Não
há ordem nem leis para a população de 106 716 367 669 habitantes – presumível
número de pessoas que já passaram pela vida terrena; e continua chegando gente.
Reina a incerteza, não só a de Heisenberg, mas todas as outras – possíveis e
impossíveis, incluindo a sensação de ausência do corpo, que contribui para
outra dúvida nesse universo de dúvidas: eu sou eu? – perguntam com frequência.
Indivíduos do passado e do presente misturados e perplexos numa área sem
fronteira visível, em que se reúnem, por exemplo, fanáticos da idade Média,
multidões de nômades e, mais recentemente, físicos teóricos. Convivência
difícil. A coisa pode ser parecida com um ovo pelo avesso. A clara e a gema
estão do lado de fora, onde todos viveram, e o interior oco, porém infinito,
onde se acham agora. Mas é só uma suposição.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Adeptos
de religiões acham que comprovaram sua tese da sobrevivência da alma, mas mesmo
estes reclamam das condições e da falta de semelhança com o paraíso dos livros
sagrados. Já os céticos em minoria consideram que o fenômeno faz parte do
processo da natureza – talvez a dualidade onde-partícula - e lembram que Deus
ainda não deu sinal de vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">O
escritor George Bernard Shaw, destacado incréu desse além, não contava com essa
sobrevida (ou sobremorte), mas continua o mesmo. Maldiz a ciência, que nunca
resolve um problema sem criar pelo menos outros dez, e maldiz a religião:
“Cuidado com o homem cujo Deus está no céu”. Agostinho também esperava outra
coisa, porque é santo, mas ele está no meio da multidão etérea ainda pregando a
palavra do Todo Poderoso: “na procura de Deus é Ele quem se adianta e vem ao
nosso encontro”, repete. “Tá demorando muito”, responde um apateísmo ansioso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Não
há frio nem calor nem comida nem cansaço nem repouso nem fome nem vontade de
comer nem pontos de referência - alguns dizem que sequer há o tempo. Niels Bohr
calcula que apenas passamos de uma orbita a outra sem percorrer o espaço
intermediário. A pequena Guerra santicientífica, no entanto, é apenas retórica.
Ninguém consegue tocar em ninguém. Nem conversar com vizinhos na calçada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">É
um bom lugar para criar teorias, mas incômodo para morar.<o:p></o:p></span></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-60799455455355042362017-12-04T20:40:00.003-08:002017-12-04T20:41:18.461-08:00Marilda<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Depois
de um longo tempo na empresa, saí à procura de novos desafios que não
apareceram. Passaram-se seis meses e nada. O desemprego produz a sensação de
que tiraram a escada e estou me segurando com esforço no parapeito do prédio. A
cada decepção – “desculpe, não temos vagas” – parece que alguém pisa em minhas
mãos e às vezes penso em soltá-las. Passo o dia pensando nessas coisas porque
em casa a situação também não é boa. O casamento está no fim. O que passou,
passou, eu disse, e prometi ir embora. Só não sei como sair por aí sem
dinheiro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Marilda
ainda trabalha. Eu perdi o emprego numa agência de publicidade porque agora os
produtos se anunciam sozinhos, por meio de algoritmos, e sem necessidade
daquelas sacadas e frases de efeito que não causam mais efeito no consumidor.
Inicialmente, ficamos acertados que ela manteria a casa naquele período difícil
e depois veríamos como compensar, em termos de grana, pois o casamento é uma
coisa, o dinheiro é outra.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Cada
dia mais acuado em casa, um intruso, tentando não aparecer muito na cozinha e
só como quando sou chamado. Li no jornal a entrevista de uma psicóloga em que
ela garante que a felicidade é possível a um desempregado com boletos a pagar.
Não é verdade, pelo menos no meu caso, pois Marilda deu um ultimato e disse que
eu tinha três meses para arranjar qualquer trabalho – nem que fosse
intermitente. Argumentei que o mundo tinha mudado, os empregos sumiram para
quase todos e que só sei fazer uma coisa; talvez nem saiba mais, Marilda. Hoje
uma margarina se anuncia por conta própria, levando em conta bilhões de
possibilidades e eu sou do tempo do slogan e do jingle.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Eu
precisava de uma ideia, um aplicativo que gerasse renda, um modelo de negócio
inédito, mas termina me distraindo jogando paciência no computador. Eu entendia
a preocupação de Marilda, pois o salário dela tinha sido cortado pela metade,
por uma nova medida do governo, e minha presença em casa estava estourando o
orçamento. Outro problema era o fim do amor. Não apenas o nosso. O próprio
sentido do amor tem se esvaziado em todo o planeta. As pessoas se casam para
dividir os custos domésticos e, secundariamente, por sexo, que não resiste às
oscilações do mercado e ao dia a dia. O importante é o equilíbrio das contas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Meu
mundo keinesiano desabou nessa temporada de ócio. O Estado não pode fazer nada
por mim. Nem a iniciativa privada. Marilda já fez o que pôde.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Turismo<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Finalmente,
encontrei uma saída. O Turismo por Acaso era o meu produto. Vendia viagens que
transcorriam ao sabor dos acontecimentos, sem hora para voltar, com todos os
dias livres. Cada um marcava seu hotel, de acordo com o gosto e a situação, e o
passageiro também poderia pegar a passagem quando quisesse ou desistir no
último momento. Eu mesmo sou o guia de todas as excursões. Sento-me num bar,
peço uma bebida e espero que algum cliente venha com dúvidas sobre a Catedral
de São Vito ou os canais de Bolonha. Se não vier, melhor.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Realeza<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Deslocava-se
com facilidade nos bastidores da corte. Vez por outro se inclinava para Sua
Majestade até os limites dos ossos. O rei torcia secretamente para ele
inclinar-se ainda mais. Só no último instante fazia o gesto real que significa
“por hoje, basta”. O homem faz a sua parte e recebe a contraparte. Move-se nas
salas enormes, se solta em cortesias, chama burocratas de Vossa Excelência para
situar-se também nos escalões inferiores. No final do mês, recebe as moedas e
vai para taberna vangloriar-se de seu espírito público.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Memória</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif";">Escreveu
as memórias até a metade do livro e dali em diante foram parágrafos e
parágrafos sobre a perda da memória, crítica sem piedade à falta de sentido de
coisas ditas do primeiro ao sexto capítulo e historinhas “bem chinfrins”, como
Graciliano disse a Antônio Cândido. Depois da doença, só lhe vieram lembranças
cotidianas sem importância aparente, sem comendas ou convivência com vultos da
República. Não sabia mais quem eram aqueles homens com os quais dividiu
segredos de Estado, mas os fatos da infância tinham nitidez e brilho, como a
lagartixa imóvel na parede de seu quarto de criança e cenas do primeiro filme
que viu na vida: Gunga Din, de 1939. A primeira parte era uma peça auto
laudatória e, aqui e ali, mentirosa. A segunda parte era tudo que ele não teve
na política: estilo. A amnésia deu-lhe jeito para juntar as palavras de forma
direta e concisa.<o:p></o:p></span></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-73190520632915677932017-11-06T14:20:00.000-08:002017-11-06T14:20:20.299-08:00Desafio profissional<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A mudança de hábito se deu por
necessidade. Só havia vaga de vigia
noturno, eu estava sem emprego e resolvi experimentar. Não era minha área. Sou
formado em Física, mas o mercado tinha outras prioridades, enquanto os mais
ricos queriam proteger o patrimônio dos vândalos e ressentidos com a situação
vigente. Vez por outra os bandos saqueavam mansões, levando comida e aparelhos
eletrônicos, que eram vendidos no mercado negro. Eu não podia fazer muita coisa
em caso de emergência, embora a presença de um homem armado pudesse
desencorajar invasões e roubos, senão todos, pelo menos alguns. Os ricos que
ficaram no País estavam enfrentando uma situação intranquila. A maioria dos
donos do dinheiro vendeu tudo e foi embora quando o pessoal sem trabalho partiu
para a distribuição da renda de uma forma meio desorganizada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Na minha guarita, eu ficava só, na
madrugada, até chegar o segurança do dia, que corria menos perigo e também
ganhava menos. Era um professor de história, muito conversador, e só não
tivemos mais contato porque na hora que ele entrava, eu saía. Basicamente, meu
trabalho consistia em olhar os monitores, pois havia câmeras em todos os lados
da casa, e se a situação exigisse, usaria os meios dissuasivos disponíveis: um
fuzil AK-47, com muita munição dentro de uma caixa; uma pistola Glock, um
lança-chamas e granadas de mão. Quando eles chegassem eu deveria dar um tiro de
advertência e em seguida atirar de verdade contra os intrusos que não recuassem.
Eu nunca havia matado uma pessoa, disse isso na entrevista de emprego, mas o
homem que me atendeu respondeu que não tinha importância. “Como o tempo você
vai pegando prática”. Estava certo. Aprendi a lidar com o equipamento e com os
dilemas morais. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New"; mso-bidi-font-style: italic;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New"; mso-bidi-font-style: italic;">Jeitinho</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A gambiarra, enfim, tomou lugar das
instituições e a vida seguiu na base do improviso. Alguns se resignaram e viam
o precário apenas como provisório. O
importante era que no fim dava certo, ou mais ou menos, e quando dava errado
era porque é assim mesmo. Acontece. A própria vida um dia acaba. As coisas se ajeitam, pensavam, e as coisas
de fato se juntavam umas às outras, mas sempre deixando para trás os seus nós,
fios desencapados, pequenas pontes de madeira podre. Tudo era remendo no meio
da informalidade e da desambição. Também as pessoas começaram a desenvolver
suas relações sem nenhum planejamento, confiantes em encaixes imperfeitos, homogeneizações
por conta própria e promessas de que amanhã a gente dá um jeito.<o:p></o:p></span></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-25082608837768715282017-10-27T14:55:00.004-07:002017-11-21T14:12:40.306-08:00Baseado em fatos que serão reais<div class="MsoNormal" style="background: white; margin-bottom: 4.5pt; margin-left: 47.25pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "trebuchet ms", sans-serif; font-size: 12pt;"><br /></span>
<span style="font-family: "trebuchet ms", sans-serif; font-size: 12pt;"><br /></span>
<span style="font-family: "trebuchet ms", sans-serif; font-size: 12pt;">Como não há mais
empregos, Heleno resolveu inscrever-se num curso rápido e grátis sobre esmolas.
Não queria sair por ai, sem conhecimento do mercado, sob o risco de voltar para
casa de cuia vazia. Quando era um profissional bem-sucedido sabia o que fazer, mas
agora, em um novo desafio, precisava de ferramentas adequadas e pegada
vendedora para angariar algumas moedas no restrito ambiente da compaixão. Em
suas primeiras lições teóricas, aprendeu que o apelo religioso é o mais
eficiente, conforme já disse São Leão Magno - “A mão do pobre é o banco de
Deus” - e conforme está escrito no Livro dos Provérbios: “Quem se apieda do
pobre, empresta ao Senhor, que lhe restituirá o benefício”. Heleno é ateu. No
entanto, notou nessa abordagem um processo de troca adequado, em que mãos
invisíveis abastadas pelo capital acumulado poderiam investir uns trocados no
item salvação.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; margin-bottom: 4.5pt; margin-left: 47.25pt; margin-right: 0cm; margin-top: 0cm; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Como não há mais
empregos, a estudante de Letras Maria Alice resolveu vender sua alma ao diabo.
Pegou-se à tragédia de Fausto em busca de algum dinheiro, mas logo descobriu
que metáforas não geram renda. O comprador nunca apareceu.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Como não há mais
empregos, a publicitária Patrícia Caldeira aceitou vender o próprio corpo.
Começou por um rim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Como não há mais
empregos, o velho Giba foi buscar a sobrevivência no mundo do crime, que às
vezes compensa, às vezes não, igual a tudo na vida. Escolheu o tráfico de
drogas por conhecer bem a mercadoria como consumidor diário e jogou-se no
empreendimento de uma pequena boca de fumo. Teve, no entanto, todos aqueles
dilemas morais de crime e castigo, mas o momento é outro, pensou, e seguiu em
frente. Tratou a consciência à base do seguinte raciocínio: sua atividade era
mais uma na informalidade geral e o aspecto produto x legislação não existia
mais. Não há polícia, não há sanção, não há crime. E não há perigo. A única lei
vigente é a da oferta e da procura. Para ele, a desvantagem foi a perda dos
amigos, mesmo aqueles que se tornaram seus clientes. “Sempre me tratam com
olhar superior, como seu eu tivesse fazendo uma coisa errada”, lamenta-se o
velho Giba. Boa gente, Giba, mas o preconceito ainda é grande.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="background: white; margin-bottom: 4.5pt; margin-left: 47.25pt; margin-right: 0cm; margin-top: 4.5pt; text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1548686048682349283.post-48507447114740602092017-10-19T19:10:00.002-07:002017-11-21T14:10:12.669-08:00Depoimentos falsos<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Quer se matar, se mate, mas já pensou se
você se mata e acorda num lugar que nem tem remédio pra dormir? Pense nisso e você vai querer se matar de
novo quando chegar lá. Morre e dá de cara com outro lugar pior e assim por
diante. Veja, por exemplo: você deve duzentos mil, não tem como pagar e por
isso quer fugir dos credores de uma forma que considera eficiente e definitiva.
Toma a cartela de remédios ou pula do prédio, sonhando com o nada, o fim da
encheção de saco deste mundo, e cai em outro onde deve quatrocentos, com
cobradores ainda mais ferozes e decididos. Como já se matou uma vez, fica mais
fácil e imagina que a solução será morrer novamente. Morre e a dívida vai
aumentando. À medida que mais se mata, mas a dívida cresce. (João Coelho,
conselheiro de investimentos).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">João Saraiva já estava cansado de escrever
histórias que ninguém lia. A desgraça de sempre, fome e falta de rumo, além de
elementos químicos gosmentos que ele enfiava no enredo para dar um toque de
ficção científica. A mistura não
funcionava direito porque os desvalidos de seus contos eram os mesmos que já
estavam lá foram e o leitor não queria tanta falta de esperança, chega, bastam
as reportagens, cujos assuntos em pauta naqueles dias eram o fim dos sistemas
de energia elétrica e comunicação. Ainda havia luz e internet, mas não iria
demorar para cair tudo. João Saraiva tinha prevenido. Só que a crítica não
soube; ninguém soube. Agora precisava de um veio novo, menos niilista, coisa
difícil de fazer por falta de verossimilhança com a situação vigente. (João
Saraiva, por ele mesmo).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">A encomenda é sobre uma estação espacial
prestes a cair na Terra. Só que não há mais foguetes para buscar os tripulantes
por causa de uma gigantesca crise econômica global. A bordo, russos,
norte-americanos e chineses discutem a respeito de quase tudo, com destaque
para geopolítica, sexo e morte. Pensei em colocar um canadense para tentar
convencer os demais a encontrar uma forma de voltar para casa a partir dos
próprios recursos da estação. Pelo menos nessa parte, cópia deslavada de ”O Voo
da Fênix” (1965), de Robert Aldrich, cujo elenco conta com James Stewart e,
claro, Ernest Borgnine, ator de dez entre dez filmes desse tipo naquela época.
A diferença é que o espaço substitui o Saara e a M17 – ou qualquer coisa por aí
- substitui o velho Fairchild C-82A Packet. Primeira ideia: para não ficar
igual ao filme de Aldrich, o tripulante canadense não consegue convencer os
demais e eles morrem ao reentrar na atmosfera. Categoria: ação e fracasso.
(Pedro, roteirista)<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Eu só queria uma lata bem equipada, com
dechavador, sedas de variadas procedências, um palito daqueles de manicure
(para pilar, ou apilar, como se dizia antigamente); o certo é que comecei a discutir
seriamente comigo mesma as diferenças entre antes e agora. As coisas que se
foram - a lata, por exemplo - e a esbravejante incerteza de todos os lados dos
dias de hoje; ninguém se entende nem se cala no seu canto, com sua lata, como
eu fazia há muito tempo quando tive o prazer de possuir uma lata com todos os
utensílios necessários. Eu estava entre as pessoas que queriam mudar o mundo,
contando que me deixassem quietinha, num cantinho. Assim passei a minha juventude, apesar de
tudo, muito boa. Hoje, sou uma velha
perplexa com medo de ser mal interpretada, mas ainda mais assustada com o que
estou vendo. Tenho receio de escrever
essas coisas, embora o mais provável seja que ninguém leia. Mesmo assim, fique
claro que não estou falando de um caso ou outro, desta ou daquela situação em
particular; é mais ou menos sobre tudo. Bom. Acabei de fumar um e estou com tendência
a tornar as coisas muito amplas. (Lúcia, funcionária pública). <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "trebuchet ms" , "sans-serif"; mso-bidi-font-family: "Courier New";">Estou de banho tomado e quase quite com o
Senhor. Sei que estou pagando, já dei
tudo que tenho e ainda devo mais, pois cometi todas as barbaridades, pior que o
Senhor no Evangelho Segundo Lucas, ordenando a matança, embora com razão,
levando em conta que as vontades de Deus são insondáveis. Vontade, não,
princípio, meio e fim de tudo, pois é Aquele que reina no cheio e no vazio. O
pior que usei do Senhor a norma seguinte: como de trata de Alguém cujo
propósito desconhecemos, como saber se o que estou fazendo e acontecendo vai ou
não de encontro a esses propósitos? Um meio de se livrar de uma acusação
questionando a essência do projeto. Não deu certo. O pastor me esclareceu tudo
e houve uma solução conciliadora, aceita pelas partes: o perdão. Não é um
caminho curto. Por isso estou aqui, catando caquinhos no lixo, à espera da hora
do culto. (Reginaldo, morador de rua, evangélico). <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Lula Falcãohttp://www.blogger.com/profile/17561078759148743930noreply@blogger.com0