segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Procurando Carmen


Carmen desapareceu. Há uns anos venho percorrendo pistas por todos os meios, ali e aqui, e não há sinal de Carmen. Volto ao conjunto residencial e pergunto aos moradores mais antigos se se lembram de Carmen e nenhum se lembra.

Nada a respeito dela depois de trinta anos. Ninguém ouviu falar nem de longe e parecia não ser este o lugar a ser procurado porque o nome de Carmen sumiu da memória geral, assim, por encanto, e é um assombro que uma pessoa tão marcante seja esquecida desse jeito.
Carmen existe ou existiu. Alguns amigos se recordam dela, mas dizem que não a veem desde aquele tempo. Está numa foto. Cara tranquila e ansiosa ao mesmo tempo, pois só ela conseguia passar essas sensações ambíguas. Dá para perceber o início do gesto que ela faz para fugir do enquadramento, apressada, saindo do foco; não gostava de aparecer, não queria posar – achava falso. Usava óculos e gostava dos poucos amigos. Tomei por responsabilidade encontrá-la, embora sabendo que isso pode dar em decepção e desse modo estaria explicado porque ninguém notou a existência dela. Mesmo assim, sigo adiante, apenas com informações da memória. Na memória dos outros, preciso do ponto exato onde Carmen caiu no esquecimento e por que. Um problema: não sei o sobrenome de Carmen. 

Era tão crítica. Parecia uma dessas pessoas de hoje, meio sem esperança, mas achando-se interessante por achar isso. Num dia na praia, fim de tarde, coisas daquele tempo, Carmen era a primeira a notar o estereotipo da cena; tinha horror a lual e animações do gênero. Enquanto os outros se supriam daquilo como a essência da juventude, ela vinha com uma história sobre a geração perdida e grandes batalhas a travar.  Só que dizia essas coisas de um jeito muito terno, sem tirar o prazer de ninguém por estar chapado, olhando pro céu ou dando beijinhos.   

Carmen diria hoje, imagino, que procurar pessoas perdidas é um recurso meio manjado – lembraria “Detetives Selvagens”, de Roberto Bolaño -, mas em relação a Carmen talvez fosse diferente: ela também arrumaria uma maneira de dizer siga em frente, pode dar certo. Talvez sugerisse que eu fosse procurá-la de outro modo, sem a preocupação encontrá-la, como pode ser o caso de agora. Uma vez ela disse que só processo existe; o resto (incluindo poder e glória) é pura ilusão.

Meu último registro é sua forte irritação. Implicava demais com avisos e ditos populares e frases em geral e corrigia a caneta comunicados do condomínio. “Por que Deus dá o frio conforme o cobertor? Por que não dá o cobertor conforme o frio?”. Éramos grudados numa época em que parecia estranho um cara sair todo dia com a mesma menina e não acontecer nada entre eles. As distrações eram outras, o universo e suas histórias, teorias mal ajambradas sobre tudo e a recorrente marcação de Carmen em cima de um mundo do qual ela discordava de quase tudo. 

Apesar disso, quando estava certa tinha um charme benevolente. Nunca usou “eu não disse?!”. Aliava-se ao contraditor, ajudando-o a encontrar uma saída honrosa. E era muito bonita para ser esquecida de uma hora para outra. Nunca usou a beleza em proveito próprio, mas aí acabava despertando outras belezas e até certa dose de autoridade. Fomos seus amigos e seguidores. Uma rara turma com uma mulher no comando.

O que mais impressionava era a honestidade que passava ao falar sobre qualquer assunto. Podia não saber exatamente o que era, mas aos poucos ia montando o que dispunha para enfim apresentar um palpite interessante. Às vezes uma ideia. Foi a primeira pessoa que me falou sobre ondas gravitacionais e outras coisas que na época eram apenas especulação. Carmem entendia de Física de Partículas, lia Rosa Luxemburgo e gostava de futebol.