Carmen desapareceu. Há uns anos venho
percorrendo pistas por todos os meios, ali e aqui, e não há sinal de Carmen.
Volto ao conjunto residencial e pergunto aos moradores mais antigos se se lembram
de Carmen e nenhum se lembra.
Nada a respeito dela depois de trinta anos.
Ninguém ouviu falar nem de longe e parecia não ser este o lugar a ser procurado
porque o nome de Carmen sumiu da memória geral, assim, por encanto, e é um
assombro que uma pessoa tão marcante seja esquecida desse jeito.
Carmen existe ou existiu. Alguns amigos se
recordam dela, mas dizem que não a veem desde aquele tempo. Está numa foto.
Cara tranquila e ansiosa ao mesmo tempo, pois só ela conseguia passar essas
sensações ambíguas. Dá para perceber o início do gesto que ela faz para fugir
do enquadramento, apressada, saindo do foco; não gostava de aparecer, não
queria posar – achava falso. Usava óculos e gostava dos poucos amigos. Tomei
por responsabilidade encontrá-la, embora sabendo que isso pode dar em decepção
e desse modo estaria explicado porque ninguém notou a existência dela. Mesmo
assim, sigo adiante, apenas com informações da memória. Na memória dos outros,
preciso do ponto exato onde Carmen caiu no esquecimento e por que. Um problema:
não sei o sobrenome de Carmen.
Era tão crítica. Parecia uma dessas pessoas
de hoje, meio sem esperança, mas achando-se interessante por achar isso. Num
dia na praia, fim de tarde, coisas daquele tempo, Carmen era a primeira a notar
o estereotipo da cena; tinha horror a lual e animações do gênero. Enquanto os
outros se supriam daquilo como a essência da juventude, ela vinha com uma
história sobre a geração perdida e grandes batalhas a travar. Só que dizia essas coisas de um jeito muito terno,
sem tirar o prazer de ninguém por estar chapado, olhando pro céu ou dando beijinhos.
Carmen diria hoje, imagino, que procurar
pessoas perdidas é um recurso meio manjado – lembraria “Detetives Selvagens”, de
Roberto Bolaño -, mas em relação a Carmen talvez fosse diferente: ela também
arrumaria uma maneira de dizer siga em frente, pode dar certo. Talvez sugerisse
que eu fosse procurá-la de outro modo, sem a preocupação encontrá-la, como pode
ser o caso de agora. Uma vez ela disse que só processo existe; o resto
(incluindo poder e glória) é pura ilusão.
Meu último registro é sua forte irritação.
Implicava demais com avisos e ditos populares e frases em geral e corrigia a caneta
comunicados do condomínio. “Por que Deus dá o frio conforme o cobertor? Por que
não dá o cobertor conforme o frio?”. Éramos grudados numa época em que parecia
estranho um cara sair todo dia com a mesma menina e não acontecer nada entre
eles. As distrações eram outras, o universo e suas histórias, teorias mal
ajambradas sobre tudo e a recorrente marcação de Carmen em cima de um mundo do
qual ela discordava de quase tudo.
Apesar disso, quando estava certa tinha um
charme benevolente. Nunca usou “eu não disse?!”. Aliava-se ao contraditor,
ajudando-o a encontrar uma saída honrosa. E era muito bonita para ser esquecida
de uma hora para outra. Nunca usou a beleza em proveito próprio, mas aí acabava
despertando outras belezas e até certa dose de autoridade. Fomos seus amigos e
seguidores. Uma rara turma com uma mulher no comando.
O que mais impressionava era a honestidade
que passava ao falar sobre qualquer assunto. Podia não saber exatamente o que
era, mas aos poucos ia montando o que dispunha para enfim apresentar um palpite
interessante. Às vezes uma ideia. Foi a primeira pessoa que me falou sobre ondas
gravitacionais e outras coisas que na época eram apenas especulação. Carmem
entendia de Física de Partículas, lia Rosa Luxemburgo e gostava de futebol.
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