quinta-feira, 28 de junho de 2012

O sumiço, a procura e a espera


Rondando a cidade a te procurar, hei de encontrar, mas está difícil desde sua transformação em agulha de palheiro, em cortaziano fio de cabelo perdido nos esgotos da cidade, em garota sem celular, sem perfil no facebook, sem amigos próximos - sequer parentes distantes. Estou com seu retrato, percorrendo os bairros, perguntando se alguém conhece, viu de passagem ou teve notícia. Até agora nenhuma pista.

A procura já dura três anos. Ela saiu com a roupa do corpo. Disse que ia ali, “volto já”, e não voltou. Estava rindo quando fechou a porta, não tinha um olhar de adeus nem motivos para sumir. Éramos felizes nesta casa de dois quartos e uma pitangueira no quintal. Ela colhia pitangas para fazer suco, dava beijinhos por qualquer coisa, nunca chorou e seus olhos verdes acesos se destacariam em qualquer multidão. Não poderia circular por ai sem provocar curiosidade, inveja e tesão. Talvez tenha me enganado durante nossa vida em comum. Pouco provável, pois sempre perguntava: “é pra sempre, né?”.

Imaginem a angústia da espera. Primeiro olhando da janela, quando se passou uma hora; depois aguardando um telefonema, quando se passou um dia. Na semana seguinte, a consulta constante dos e-mails, nada, e dai em diante a grande busca. Vasculhei todos os lugares possíveis, consultei conhecidos e detetives e coloquei na sala um grande mapa de São Paulo, marcando com tachinhas coloridas as áreas de sua predileção. Nada. Finda a varredura pelos lugares óbvios, parti para as cidades vizinhas, outros estados, outros países.

O retrato dela já está em todos os cantos, nos postes e posts. Procurei em necrotérios, hospitais e no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Anunciei no rádio, em programas de grande audiência, e contei meu caso a um conhecido caçador argentino de recompensas.

Vivo em função dessa espera, não há outra razão na vida. Quando ela aparecer vou ficar uma fera, maldizer sua maldade, chamá-la de doida e dar uns gritos indignados Melhor: vou sorrir discretamente, abraçá-la com carinho e fazer uma única pergunta: “você trouxe cigarros?”  
  



quarta-feira, 27 de junho de 2012

O presente e a imperfeição da lembrança


Mas mudo não fica e diz nem que seja um opa, um epa, não é assim. Está em todas as festas, apesar dos 50 anos, e festas de jovens, de filhas de seus amigos, de amigos de seu filho. Não é uma presença  incômoda, entre os garotos, exceto nas horas em que ocorrem discussões sobre as vantagens de uma década sobre outra. O assunto é recorrente porque ele sempre o provoca, a troco de não se sabe o que. Ninguém sabe.

Antes fosse inveja o que movia o personagem em sua incursão pelo mundo dos jovens, numa sexta-feira paulistana. Com meio século de história, freqüentava a galera e se comprazia em ser aceito como membro honorário. Só não podia passar do terceiro copo. A partir daí iniciava sua guerra de décadas, uma disputa passado x presente, o ranking do século passado. O animal em foco, de boa formação e fino trato, não afirma sua nostalgia diante dos garotos ou diz “meus anos foram melhores porque os vivi intensamente”. Não. Quer provar, quase cientificamente, a qualidade superior de sua época de juventude em comparação com os dias atuais. Sem levar em conta tantos anos passados e os mistérios dos que vivem o presente no auge da saúde e da coragem.

A década de 70 é sempre invocada como “década que vocês perderam” porque foi infinitamente melhor, em todos os sentidos, segundo o personagem de 50 e poucos anos. Brada, batendo no peito – devagar, mas firme -, a volta ou o eterno retorno das grandes bandas antológicas, algumas delas de atuação e sucesso ininterruptos, caso dos Rolling Stones. No ramo da Filosofia, ele dá um recuo e toma os 60 como se também fossem seus, pois viu uma palestra de Sartre quando tinha cinco anos, em 1963. Ai, na sala de estar, como ocorre nessas ocasiões, alguém começa a rodar um baseado e o personagem de 50 e poucos anos se adianta:

- “Vocês precisavam ter fumado o da lata” – comenta o tiozinho, prendendo a respiração e segurando a fumaça nos pulmões. Toma, assim, mais uma dezena de anos do campo adversário. Sim, porque ele também é dono dos 80, mesmo do final, 87, quando milhares de latas contendo maconha de excelente qualidade deram em costas brasileiras. O episódio mantém sua mística entre os mais jovens, o pessoal de 90, mas pelo fato de ter entrado para a história do mundo maconheiro. Mas passou e por ter passado, o argumento do homem de 50 e poucos anos se dilui na não existência palpável da lembrança. Nesse momento, ali no canto, o casal que se beija vive o momento, o aqui e agora, os hormônios estão em pleno funcionamento, dá para sentir. Enquanto o melhor do homem de 50 e poucos anos habita o precário mundo das recordações.

O presente, o presente com jeito de eterno, além de tudo usufruído com mais disposição, torna-se implacável. Jovens e velhos vivem o mesmo presente, mas o presente dos jovens é mais dinâmico e animado. O passado evocado para fins de comparação só serve para mostrar a desvantagem do homem de 50 e poucos anos em relação a seus cálidos contendores.

Quase derrotado, o homem parte então para o ataque ao próprio presente, destacando a mediocridade dos tempos atuais e a liquefação das relações de hoje, numa citação bem a calhar de Zygmunt Bauman, porque o cara ainda está vivo, é lido por alguns dos presentes e, portanto, participa do agora, embora tenha 86 anos.

No último estágio, o coroa joga com a experiência que os anos lhe acrescentam. Vivi tudo isso, vivi tudo aquilo, passei por tantos papas, subi nas torres gêmeas de Nova York e assisti a um jogo do Santos na Vila Belmiro, com Pelé e Coutinho. Surge uma moça e põe o ponto nos “is”. Não se imaginaria ali uma leitora de Pedro Nava, mas era verdade. “A experiência é um farol voltado para trás”, disse a menina, em boa interpretação do memorialista mineiro. “Não me importo com o ar superior de gente mais velha”, observou a traquina, agora por sua conta. “Simplesmente porque isso não está na minha escala de preocupações”, acrescentou. Mais um revés para o homem de 50 e poucos anos.

Ao final, aceitando publicamente a derrota, mas refutando-a intimamente, o homem de 50 e poucos anos elogia o efusivo ambiente intelectual da noite e se despede dos amigos mais novos com uma frasezinha à toa, deixando no ar uma pequena dose de ironia: “para os padrões de hoje vocês são muito interessantes”.