sábado, 30 de abril de 2011

O bêbado moderado

Ele foi ao bar beber com moderação. Com moderação, tomou a primeira, a segunda, a terceira. Moderadamente, pediu a quarta, a quinta, a sexta. Cada vez mais moderado, encheu a cara.

Sim, existe o bêbado moderado. Quando mais bebe, mais moderado fica. Aos poucos, enquanto os outros se exaltam, ele perde a estridência, busca o acordo, tenta apaziguar os ânimos. Com sucessivos e moderados goles, ele fala para dentro, quase ninguém entende, mas está sempre batendo nas costas do interlocutor, pedindo calma e bom senso.

O bebedor moderado já é um alcoólatra moderado há uma mais de duas décadas. Bebe moderadamente como poucos. Sua predisposição ao diálogo, no entanto, nunca é abalada pelo álcool. Pelo contrário. Ele está ali para evitar conflitos, mediar desentendimentos, sugerir saídas. Diante de posições exaltadas, tenta encontrar uma terceira via, um ponto em comum, uma solução satisfatória e, obviamente, moderada.

Suas intervenções mais comuns: “não foi assim tão grave”, “ela não quis dizer isso”, “vamos parar com essa história”, “foi sem querer”, “essas coisas acontecem” e, mais importante, nunca se cansa de pedir moderação aos amigos que, segundo sua visão turvada, estão bebendo sem método. A lógica é simples: bebida é uma coisa; moderação é outra. As duas podem se encontrar exemplarmente quando se fica embriagado. Nessas horas, ele não para. Continua a beber de forma ainda mais moderada, entre a ponderação e a aquiescência.

Só para ele, o conselho dos rótulos – “beba com Moderação” – parece ter algum sentido e nenhuma hipocrisia.

@_lulafalcao

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Brasil majestático

Todo o rebuliço em torno do casamento do príncipe William com Kate Middleton nos faz lembrar a nostalgia monarquista do brasileiro. Nossa coroa não teve o charme, o veneno e as degolas das congêneres européias, mas hoje, passados 122 anos do reinado de Pedro II, ainda são visíveis os sinais de nobreza. No Brasil, toda superioridade se ampara na figuração imperial. Não bastassem os reis Pelé e Roberto Carlos, temos o Rei da Cocada Preta, a rainha do Funk, o imperador Adriano, a imperatriz das Sedas e aquela menina que mora aqui do lado, inquestionavelmente uma princesa.

Na terra dos reinados e reinações - de Narizinho a Collor de Mello - há ainda o “meu rei” da Bahia e as expressões “reina sozinho”, “cabeça coroada”, “quem é rei nunca perde a majestade”, “Vai para o trono ou não vai?” (Chacrinha – 1917-1988) e “Em terra de cego quem tem um olho é rei” – esta última, provável adágio de Desidério Erasmo (Em regione caecorum luscus est rex), mas que foi adotada aqui com incomum entusiasmo.

Além disso, temos impérios para todos os gostos – dos camarões às tintas. Copacabana ganhou o título de “Princesinha do Mar”, Caruaru é a “Princesa do Agreste”, o carnaval tem um Rei Momo, a bateria de cada escola de samba a sua rainha e todos os nascidos reinaldos passam a “Rei” - uma espécie de apelido-reverência. Alguns levam uma “vida de príncipe”; outros têm “o rei na barriga”, enquanto os mais exigentes só usam a “massa real”. Em São Paulo, uma das mais pobres favelas da Zona Sul, a Real Parque, está encravada numa região onde prédios e condomínios receberam nomes que remetem à nobreza francesa. Não dá para percorrer um bairro sem esbarrar num Château de Versailles ou algo do gênero. Da plebe rude à classe média alta, reinam os nomes imperiais.

Mesmo com a impressão de que já escreveram sobre isso, e até demais, vamos em frente: a monarquia está mais presente no mundo dos produtos e serviços – lojas, restaurantes, empresas de ônibus e centenas de outros estabelecimentos descontam sua ausência da lista das Maiores e Melhores Empresas com algum toque de nobreza. Exemplo: Expedito, o Rei da Carne de Sol (Recife). Até o pornô tem suas realezas - rainhas do bumbum, do Anal, do sexo grupal e de outras partes corporais e modus operandi.

Por que isso? Talvez porque a realeza seja vista como uma medida de qualidade, um lugar dos ungidos, o topo, a última escala na direção das divindades. Como não fica bem usar santos nomes em vão (tipo “O Deus do cachorro Quente”), paramos em reis, rainhas e princesas. Talvez seja isso. Talvez, não.

@_lulafalcao

A partir de um post de Sônia Nunes, no facebook.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Literatura contemporânea e Cu, uma biografia

Em o Globo do último domingo de abril, a literatura contemporânea brasileira comeu um pão amassado pelo crítico literário Alcyr Pécora, da Unicamp. Em essência, o doutor de Campinas afirma que a escrita produzida hoje é uma bosta. Não nesses termos, claro. Num texto apenas mediano, ele observa que ocorre hoje “uma impressionante expansão de narrativas no cerne da própria existência”. Quem viu ali uma cutucada no ótimo “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes, acho que acertou.

Doutor Pécora enxerga um relacionamento prejudicial entre literatura e redes social. “É como se o mundo inteiro fosse virtualidade narrativa antes de ser existência particular, e principalmente como se todo mundo fosse interessante o bastante para ser visto/lido”, decreta Pécora. Em troca, nos oferece um eterno retorno ao século XIX, aos braços confortáveis de Machado, como se o mundo virtual também não fosse feito por gente de carne e osso. Tudo bem em relação a Machado, mas por que um café oitocentista seria assim tão melhor do que a rede?

Em todo caso, a trolha acima não tem pretensões de ser uma crítica da crítica. Nem mestrado eu tenho.

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Por falar em literatura contemporânea, presenciei um debate curioso no Rio. Assunto: cu. Um grupo de intelectuais, durante uma festinha, começou a dissecar o dito com todo o rigor acadêmico. Não se falou em escatologia ou Proctologia. O caso esteve no âmbito da Filosofia e da Psicanálise. Fiquei impressionado com a bibliografia existente sobre esta, digamos, área de estudo. Conhecia apenas “A história do olho”, de Georges Bataille, e ao final sugeri que já era o momento de alguém escrever algo mais abrangente, tipo “Cu, uma biografia”. Ninguém achou a menor graça. A referência foi tratada como politicamente incorreta por um emérito tradutor presente.

@_lulafalcao

terça-feira, 19 de abril de 2011

O elogio da vaidade

O fato de que qualquer pessoa pode morrer a qualquer momento e que se não for agora ou daqui a alguns anos será algum dia, torna espetacular o fato de tudo continuar andando e funcionando normalmente no mundo. Mais do que isso, é impressionante a quantidade de planos para o futuro quando se sabe que o único futuro que nos espera é a morte. Alguém pode explicar tal comportamento com a imortalidade da alma, mas se pegarmos os ateus veremos que são do mesmo jeito: planejam, pesquisam, fabricam, constroem, estudam, trabalham, fazem um monte de coisas como se fossem ficar aqui para sempre.

É claro que muita gente percebe isso e detona a vida, como se ela fosse para arder, não para durar, como já observou um desses caras bons de frases. Mas daí para a vadiagem é um passo. O sujeito pensa: Se vou morrer porque devo me mexer muito. É umas. Mas se todo mundo pensasse assim, desde o início dos tempos, ainda estávamos sem fogo, sem roda e sem I-Phone.

Nessa questão, a vaidade explica muita coisa. Mais do que religiões. As pessoas querem deixar algo escrito, construído, esculpido, pintado, descoberto, embelezado, etc e tal, porque sonham com um futuro em que não estarão presentes. Não querem ser esquecidas depois de mortas. Embora o defunto não possa usufruir dessas recompensas e elogios, o sujeito aproveita a sensação enquanto vivo, numa espécie de posteridade pré-gozada. Pelo menos sonha com um velório concorrido, uma nota de jornal, uma biografia ou mais modestamente com uma foto sua no álbum do neto.

Entre os artistas e intelectuais, a finitude parece mais sentida, mais aguda e mais curtida - mesmo porque vem sempre acompanhada de Psicanálise, Filosofia e Literatura. O certo é que, para essas pessoas, especialmente as que hoje são mortas e famosas, a realidade do fim tornou-se também material de trabalho. Basta ler um pouquinho de Spinoza e de outros menos votados para descobrir que é mais ou menos assim. O ser angustiado diante da morte aprofunda mais seus pensamentos em torno de um assunto que a maioria prefere fazer de conta que não existe.

Para resumir, é a vaidade, mesmo escondida, a grande responsável pela civilização. Sem ela, multidões de seres humanos estariam aos prantos, nos braços do desespero, sem qualquer projeto ou saída, apenas esperando dolorosamente o inevitável.

@_Lulafalcao

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Avatar

No ônibus, ela cutuca a vizinha de cadeira, e pergunta: “eu estou aqui, agora?” Claro que a outra desdenha: “você é louca”. Talvez. O problema não era de hoje. Há dois anos ela vinha experimentando a sensação de não estar em determinado lugar, embora estivesse. Pela primeira vez, no entanto, o mal estar persistia por mais de segundos, quase um minuto, e depois no trabalho, atrás da mesa, olhando perplexa para pessoas que sabia que eram colegas, mas a certeza formal não dizia muita coisa. Tudo estava inadequado e esquisito.

À noite, diante do computador, começou a pesquisar a condição de não estar, estando. Não achou muita coisa no Google, mesmo porque não sabia exatamente o que perguntar ao oráculo. A pesquisa, mesmo assim, resultou em algumas possibilidades: síndrome do pânico, esquizofrenia, encosto e morte. Talvez ela estivesse morta e essa ausência de si própria seria o que sentem os mortos, vagando por ai, com a ilusão de que um bom dia no elevador ou uma ordem no trabalho é real. Deixou pra lá.

Mais tarde, ao entrar no Facebook e no twitter todos aqueles problemas sumiram de repente. Sentia-se inteiramente familiarizada com seus pares. Trocou idéias, fez comentários, curtiu, cutucou, mandou DMs, postou fotos de Paris, sentiu-se feliz, enfim, com a descoberta: ela era um avatar. Fake.

@_lulafalcao

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A Solidão e seus equipamentos

O mundo dos separados funciona bem até o ponto em que o dinheiro some. Sem emprego e sem mulher, a vida dele afunda quando começa a desaparecer aquele aparato necessário à solidão: Internet e TV a cabo. O ponto alto – no caso, baixo – dessas situações é a noite de domingo. A TV só pega a Globo. Insônia. A emissora anuncia que dará uma parada em sua programação para a manutenção dos transmissores. Último recurso: comprimidos para dormir. A cartela está vazia. Todos os livros foram lidos ou vendidos ao sebo. Por sorte, logo chega a segunda-feira, com suas possibilidades e imprevistos. Os imprevistos terminam dominando tudo.

Enquanto o País cresce, ele diminui. A grana do FGTS está no fim e as contas do mês nem são abertas. A faxineira é outra perda irreparável. O celular da empresa virou pré-pago. O aparelho fixo está mudo por falta de pagamento. A cozinha é uma cidade-fantasma.

Um dia a ex-mulher aparece para cobrar a pensão. Ela vê, num traveling, que o sujeito está a zero. Mas não há acordo. O fracassado terá que acertar suas contas na Justiça, embora ela seja funcionária concursada do Tribunal de Contas do Estado. Lei é lei.

Ai ocorre o inesperado: outra mulher. Bonita, até. Mas desempregadíssima. Os dois vão morar juntos. Em pouco tempo aparecem empregos para ambos, o casal progride, nascem alguns filhos. O mundo estava uma beleza, até que a vida os separa. De novo. A diferença é que agora ele tem TV a cabo, wireless e aposentadoria. Mas logo tudo isso não terá a menor importância.




@_lulafalcão