domingo, 26 de janeiro de 2014

Uma obra-prima malograda




IImaginem um enredo de Janete Clair, com alguma influência de Nelson Rodrigues, narrado num texto elegante a que não falta ambição metafísica. Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, lançado em 1959 e, desde então, colocado no panteão dos mais cultuados romances brasileiros, tem todos esses ingredientes e algo mais.

Em suas 534 páginas, desfilam incesto, adultério, suicídio, prostituição, travestismo, histeria, dissimulação, escatologia, hipocrisia, traição, decadência e morte. Tudo numa linguagem densa, elevada, prospectiva dos abismos da alma humana.

Claro que o resumo que fiz nas primeiras linhas é reducionista. Acabo de ler o livro agora (não vou mentir, como vejo fazerem por aí, e dizer “reli”...) e ainda estou impactado, para o bem e o para o mal. A trama folhetinesca é digna da ex-grande dama das telenovelas, mas a profundidade psicológica dos personagens vai mais além. De Nélson Rodrigues, herda a capacidade de expor sem pudor a canalhice humana, porém, ao invés de lidar com as almas suburbanas do dramaturgo pernambucano-carioca, trata dos conflitos de uma aristocracia rural decadente. E a linguagem é muito mais burilada do que a desses dois autores, emulando em alguns momentos as construções verbais-filosóficas de um Proust. Não é pouco, embora escorregue, aqui e ali, em um registro típico de pulp fiction.

A crítica costuma afirmar que a “obra, de forte matiz psicológico, inaugura na literatura brasileira um mergulho no cerne do indivíduo moderno, onde os dramas, as dúvidas e os questionamentos pessoais sobrepujam a realidade”. Também ressalta que se integra “numa vertente mais geral da literatura brasileira, caracterizada pelo subjetivismo, que daria a literatura de, entre outros, Clarice Lispector” (não à toa, ela manteria uma conhecida ligação amorosa platônica com Cardoso nos anos 60).

A estrutura romanesca é razoavelmente complexa, com algumas inflexões no tempo, e apresenta a mesma sequência de acontecimentos sob diferentes pontos de vista, como Lawrence Durrel já radicalizara, poucos anos antes, em seu Quarteto de Alexandria. Para isso, vale-se da técnica hoje chamada polifonia: nada menos de 10 narradores se revezam na tarefa de contar o drama (quase tragédia) da influente família Meneses, por meio de diários, cartas, confissões, “narrativas” e “depoimentos”. Dos personagens centrais, apenas dois – o chefe do clã e o jardineiro – não têm voz própria. Questões metafísicas, como a vida, a morte, a verdade, a traição, o pecado, a própria existência de deus, são debatidas recorrentemente ao longo do texto. Tudo permeado por uma poética cintilante, a que não falta uma dose de obscurantismo e muita divagação, realçando com maestria a atmosfera de pesadelo e morbidez da casa/família arruinada.

Trama folhetinesca? Vamos aos fatos: na Chácara dos Meneses (a tal casa assassinada), numa cidadezinha dos grotões mineiros, em meio a aléias, alameda, fontes quebradas, pastos abandonados e ruínas, vivem o autoritário Demétrio – o irmão mais velho, chefe do clã - e sua esposa Ana, uma mulher apagada que lhe foi prometida desde criança; o irmão Valdo, um abúlico lorde sertanejo; o irmão Timóteo, obeso e estigmatizado, praticante de cross-dressing avant la lettre (veste-se permanentemente com as roupas da mãe e por isso é trancafiado no seu quarto) e a governanta Betty. O elenco aumenta quando Valdo, numa viagem ao Rio, conhece a belíssima Nina, a protagonista da história, que vive com o pai entrevado num hotel de segunda categoria e tem uma estranha relação com um velho oficial que lhe cobre de mimos aparentemente em troca apenas da companhia de uma bela dama. Valdo se apaixona, casa-se com ela e a leva para viver com seus vestidos glamorosos na arruinada mansão interiorana. Misto de Ema Bovary, Capitu e lady Chatterley modernas, Nina é a personagem mais complexa, mesclando amoralismo, crueldade, fascínio e inquietações. Na chácara, torna-se vítima e carrasco dos Meneses, afrontando costumes e mentalidades estratificadas com sua personalidade exuberante e contraditória. Nina apaixona-se pelo jovem, louro e taciturno jardineiro da herdade, com quem mantém um escandaloso caso, somente não percebido pelo marido, Valdo. Demétrio – o Meneses mais velho – por seu turno apaixona-se em silêncio por Nina, numa relação de amor e ódio, e ao descobrir seu affair com Alberto, o jardineiro, escorraça-a da casa. O jovem se suicida, para terror de Ana, mulher de Demétrio, que também secretamente amava o subalterno e tinha uma relação de admiração e repulsa pela rival.

Nina volta para o Rio, grávida de Alberto, lá tem um filho, que depois passa a ser criado pelo pai presuntivo no ambiente sufocante da fazenda decadente. Quando o filho, André, já é um adolescente taludo, Nina volta a viver com o marido e passa a ter relações incestuosas com o rebento.

Tudo isso não é contado linearmente como aí em cima, mas vai se desnudando aos poucos, nas narrativas cruzadas dos vários personagens, ao longo do tempo, com desdobramentos cheios de suspense. Curiosamente, o discurso narrativo de todos os personagens tem o mesmo diapasão, o mesmo vocabulário refinado, a mesma profundidade psicológica, a mesma abordagem metafísica, seja o do jovem André, do farmacêutico, do médico, da própria Nina (por meio de cartas ao marido Valdo e ao antigo amante do Rio), do padre Justino ou mesmo da obinubilada Ana. O resultado é de uma artificialidade berrante. É como se todo mundo tivesse uma cultura refinada e escrevesse de forma espantosa muito acima do nível das gentes.

Essa estratégia narrativa também incorre em pequenos deslizes, tipo uma personagem, numa carta, contar um acontecimento sobejamente conhecido por ela e seu interlocutor, ou descrever um ambiente onde se passou algo, com minudências despropositadas, evidenciando a intenção do escritor de passar certas informações ao leitor. É o caso, por exemplo, de uma carta de Nina a Valdo em que relata detalhes arquitetônicos do pavilhão da chácara, que o marido deveria estar careca de saber.

O início do romance é um trecho do diário de André contando sua paixão avassaladora pela mãe, que acaba de morrer no casarão. A narrativa do rapaz que, como a mãe, não se atormenta com culpas, tem uma carga erótica arrepiante. A agonia de Nina, literalmente apodrecendo de um câncer que exala um odor pútrido pela casa, que debaldemente tenta-se amenizar com perfumes e colônias, é dos momentos mais pungentes e grotescos da literatura brasileira. Com direito a uma cena de sexo entre o filho alucinado e a mãe agonizante.

O velório de Nina, embrulhada num lençol e colocada sobre a mesa de refeições da sala, é o clímax do romance. Com as entranhas da velha casa (da família) dolorosamente expostas à curiosidade pública, desenrolam-se cenas inauditas: Demétrio, sempre preocupado com as convenções e aparências, convida o Barão, a maior potestade da região, que chega com um bornal a tira-colo e se põe a comer empadas compulsoriamente; numa espécie de acerto de contas com todos e tudo, Demétrio, o travesti obeso, adentra o ambiente numa rede carregada por três negros, espalha violetas (as flores prediletas de Nina, que em vida fora sua única aliada naquele ambiente prisional em que vivia) sobre a mesa, levanta o lençol e esbofeteia o cadáver. Em seguida, tem um derrame e cai duro. Quando Valdo, desolado e imune a todo escândalo, se aproxima para o último adeus à falecida, presencia André disparar uma cusparada sobre o cadáver da mãe. Tudo muito Nélson Rodrigues, com uma diferença: Nélson expunha as taras de seus suburbanos com um toque de deboche – como se dissesse: “Vejam, isso é ficção, é mentira, é exagero, mas no fundo vocês são assim mesmo”, enquanto Lúcio Cardoso trata os delírios de sua turma aristocrática com uma seriedade solene.

E quando achamos que já vimos tudo, há um pós-escrito do padre Justino, dando uma reviravolta digna dos capítulos finais dos teledramas de dona Janete: quando todos já haviam morrido ou se dispersado pelo mundo, Ana, a submissa mulher de Demétrio, moribunda num catre no velho pavilhão deteriorado que fora o ninho de amor de Nina e Alberto, confessa ao padre Justino também ter tido relações uma vez com o jardineiro e, como Nina, também engravidara. Convencera o marido a ir ao Rio buscar Nina de volta e lá, secretamente, tem o filho bastardo. Que vem a ser André que, portanto, não era filho de Nina. O verdadeiro filho de Nina, chamado Glael, viveu anonimamente no Rio de Janeiro toda a vida. Portanto, materialmente falando (embora André achasse que eram, de fato, mãe e filho), não houvera incesto na relação tempestuosa e adúltera entre os dois.

Falei na linguagem refinada e densa, quase proustiana do romance. Mas disse que tinha escorregadelas dignas de pulp fiction. Pra matar a cobra e mostrar o pau, eis a platitude de um trechinho do pós-escrito do padre Justino, que em outros momentos de sua narrativa alcança patamares bem elevados:

Sentei-me a seu lado, procurando disfarçar minha emoção. Para qualquer lado que me voltasse, no entanto, sentia seus olhos ávidos que me acompanhavam. Aquela insistência me desagradava, pois se diria que ela se achava à espera de uma palavra minha, para serenar definitivamente seu ânimo agitado.

Crônica da casa assassinada é uma obra-prima malograda.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Iberê Segundo Paulo - Trechinho


domingo, 12 de janeiro de 2014

E-mails

Dolores,

Nem sei começar.  Nesses anos de separação ocorreu um monte de coisas fora do meu controle. Quase morri, estive à beira de vários precipícios e num deles pulei, um voo, no início, e logo a queda livre, duas pernas quebradas e aquela sensação de suicida fracassado: alívio de curta duração e em seguida o medo do ridículo, olhares de reprovação, mesmo dos amigos, agora afastados, por causa disso. Entrei na lista dos desequilibrados ou farsantes e uns disseram as maldades de sempre, “queria chamar a atenção”; outros foram mais cruéis, aceitando o diagnóstico de doido, dado por um médico especialista em transtornos, e ele perguntou se eu já havia tentado outras vezes e eu respondi que sim, há cinco anos, quando você foi embora. Besteira contar a verdade, pois certos segredos não devem ser repartidos com psiquiatras porque eles vão formando uma imagem negativa do paciente e despacham receitas cheias de substâncias que transformam a gente em outra pessoa. Virei outra pessoa e ao parar o tratamento, por contra própria, já não sabia quem eu era antes, esqueci. Fiquei com a mesma personalidade farmacêutica, mesmo sem os remédios, num mundo que não fede nem cheira, indiferente ao fato de você ter ido embora, Dolores, sem mais nem menos.

É o pior que pode acontecer. Quando voltei para casa naquele dia, ansioso para cair em seus braços, chorando minha demissão, deparei com uma mulher decepcionada, meu cargo era bom, por que perdi? Era a segunda vez em poucas horas, duas humilhações, o chefe e você, ambos me dispensaram. Numa circunstância dessas, um homem sai para beber, foi o que fiz, e só parei para me atirar lá de cima, daquele prédio grande em frente do mercado, e depois vieram os remédios, quase todos os males catalogados pela DSM, o 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais', livro conhecido como a "bíblia da psiquiatria", segundo li na Veja. Lia a Veja porque toda semana a revista anuncia a cura de uma doença a partir de um remédio revolucionário, inventado nos Estados Unidos, com lançamento previsto para o Brasil daqui a dois meses, pois já foi testado em humanos, com excelentes resultados. Mas o assunto não é este, Dolores, escrevo porque de repente passei a me sentir como antigamente, carente de sua presença, e pergunto se você vai voltar.

Paulo,

O tempo passou para todos, Paulo. Casei, tive um filho e meu marido é médico bem sucedido. Família padrão, sem sobressaltos, contas fechadas no final do mês, carrinhos de supermercado, plano de saúde, escola privada, férias no Guarujá. Tenho sogra, churrascos em família e até a possibilidade herança - o pai dele tem dois apartamentos e um pequeno sítio e está com 86 anos, idade razoável para morrer. Então é assim, a vida segue, tranquila, nem preciso trabalhar. É tranquilidade demais. Passo o dia tentando ler alguma coisa, mas sempre perco a atenção, me disperso no nada, passo um tempão fora de mim, outra pessoa, igual a você se sente. A tarde é mais entediante. Vejo TV e me transporto para programas sem graça, só para não ficar aqui, esperando o marido, todo dia, numa eterna repetição.  A cena é parecida, pergunto como foi o dia e ele conta, em detalhes, quando minha intenção era receber apenas um “tudo bem” ou “difícil”, sem aquele enredo comprido sobre patologias, tratamentos, e os que “foram a óbito”. Ele usa essa expressão, “foi a óbito”, é insuportável, Paulo, não aguento mais. Pelo menos você variava, às vezes não voltava pra casa, e quando voltava era bom. Com ele é funcional, previsível, burocrático, parece consulta com hora marcada.







sábado, 4 de janeiro de 2014

Pinguim - I


Conheci Adélia no Réveillon de 2014, ainda sob os fogos, ainda sob a chuva fina lançada por um vaporizador gigante instalado em Copacabana. Os peitões eu não gostei, mas o resto era passável, principalmente as coxas, aparentes sob o vestido branco, suspenso e molhado. Ela sorriu e se aproximou, sem cerimônia, e em poucas horas, depois dos beijos de praxe, sexo dentro d’agua, estávamos voltando de ônibus para São Paulo. Adélia era de lá, eu também, e só na rodoviária soube que ela não tinha sequer o dinheiro da passagem. Paguei as duas.

Minha situação não era tão melhor. Morava entre duas cidades, em casa de amigos ou com minha tia. Adélia pelo menos tinha um lugar dela, de dois cômodos, no cortiço do Jaguaré. Fiquei lá, no colchão de casal. Foi bom, melhor do que eu esperava.

Dois dias depois chegou um cara meio estropiado pelas festas. Foi simpático comigo e andou pela casa abrindo e fechando gavetas, desembarcando coisas e verificando o conteúdo da geladeira, provavelmente um caso de larica. Adélia nos apresentou: “é meu marido. Pinguim”.

A ficha de Pinguim foi passada na hora, por Adélia, na frente dele, sem contestações. Era músico, tinha suas próprias composições, mas sobrevivia como estátua viva de Michael Jackson, na Avenida Paulista. Pinguim não falava muito, talvez por habito da profissão, e ainda cheirava a álcool da passagem do ano. Contou que esteve numas praias, dormindo na areia. Existem muitas pessoas assim, até em São Paulo.

Achei a situação estranha. “Vou embora”, eu disse. “Por que você não fica?”, perguntou a Adélia. “Cai por aí”, completou Pinguim, apontando para um sofá menor do que eu. Não tive coragem de esclarecer minhas dúvidas – eu, Adélia, o marido, as ocorrências em Copacabana etc. Em vez disso, elogiei a casinha. “Muito aconchegante”, eu falei. Era o único elogio possível para o muquifo do casal. Resolvi ficar.

Já era noite. Conversamos na sala, sentados em almofadas. Pinguim continuava meio calado, embora não demonstrasse contrariedade ou desconforto. Quando Adélia foi ao banheiro, ele comentou: “mulher do caralho!”. Assim mesmo, exclamativo. Não parecia uma indireta. Ela voltou e Pinguim não parou. “Não fosse essa daí eu já tinha morrido”. Sem jeito, eu concordava, com gestos desajeitados. Adélia sorriu, convencida.

Quando o casal se retirou, passei a remoer suposições, enquanto tentava me ajeitar no sofá, enquanto Adélia e Pinguim falavam baixinho no quarto. Quase dava para ouvir frases inteiras. Não havia sinais de reclamações. O sujeito chega à própria casa, encontra a mulher com outro homem e ainda convida o intruso para o pernoite. O que é isso? Tentava dormir e não conseguia, pois logo vieram os sons de beijinhos e depois a coisa evoluiu para uma trepada cheia de disposição. Eu já conhecia as reações de Adélia; eram as mesmas com Pinguim. Bateu o ciúme no lado errado. Eu estava com ciúme.  Ciúme e inveja de Pinguim.


Saí de manhã, de fininho, e não dei notícias. No dia seis de janeiro, vi Pinguim de Michael Jackson na Paulista. A estátua ganhou vida e ensaiou uns passinhos de Thriller, deslizando na calçada.