Quando o piloto
anunciou o pouso de emergência, seguimos as instruções de praxe, dobrando a
cabeça contra os joelhos. Havia uma estranha calma a bordo, como se o aviso
fosse banal, algo como abrir a mesinha à sua frente para serviço da refeição.
Nenhum sinal de medo, exceto o meu, um pavor não expressado para não destoar
dos demais. O 733 mergulhou de bico, como uma seta num rio, mas um rio fundo,
talvez sem fundo, porque passamos muito tempo naquela posição e, enfim, quase
horas depois, a velocidade começou a ser reduzida – primeiro aos poucos, depois
quase parando, até chegar a um ponto em que era possível sentir uma sensação de
conforto, embora estivéssemos ainda na vertical.
Com a voz serena, o
piloto pediu que todos voltassem à posição normal, mas achei complicado, pois
estava olhando para as cadeiras da frente e elas estavam em cima. Mesmo assim,
a comissária veio em minha direção, andando normalmente, contra a gravidade, e
perguntou se eu queria alguma coisa, um copo de água, uma Fanta, um uísque.
- Quero uma
explicação – eu disse -. Quero saber o que aconteceu. Por que estamos assim,
como um obelisco enfiando no chão, de ponta cabeça?. A aeromoça riu, trouxe um
uísque, e ninguém se espantou por ela estar andando pelas laterais do avião, às
vezes no teto, igualzinho a Fred Astaire em Núpcias Reais. Só não havia a
música, apenas o som contínuo do ar condicionado.
- Onde estamos? –
perguntei -. Ela respondeu: chegamos.
- Chegamos onde? –
insisti.
Ela deu com os
ombros, enquanto os outros passageiros já retiravam suas bolsas e casacos do
compartimento de bagagens. Vi perfeitamente quando um homem de uns sessenta
anos, também com os pés colados no teto, perguntou as horas. Eu ainda estava
com o cinto de segurança e só iria soltá-lo em caso de uma explicação
convincente, mas a aeromoça foi clara: o senhor precisa sair. De repente, sem o
cinto, também passei a andar pelo teto e a situação bizarra não impediu que
prevalecesse meu lado de consumidor mal tratado. Incrivelmente a sensação de
conforto me incomodava. Não gosto de ficar sem respostas.
- Vou fazer uma
reclamação assim que chegarmos ao aeroporto -. Ela informou que não havia
aeroporto, e, portanto não havia guichês da companhia aérea nem serviços de
táxis nem uma cidade propriamente dita.
- Na verdade não há
nada – acrescentou a comissária, de lenço vermelho no pescoço. Só sei que
chegamos e temos que sair. São normas da empresa. Eu embarcara num voo
para a Cidade do México e agora estava de cabeça para baixo, enquanto outros
estavam de cabeça para cima, enquanto um grupo de crianças se divertia com
aquilo.
A aeromoça acrescentou
mais dados às minhas dúvidas. Disse que houve mudanças, mudanças bruscas, no
decorrer da nossa viagem. Os outros sabiam disso, menos eu.
- Por que vamos
descer se não há nada lá fora? Cadê a cidade do México?
- O senhor pegou o
voo errado, mas não dava mais para retornar ao aeroporto de origem. Vamos tomar
as providências necessárias – falou a comissária, do jeito que as comissárias
falam – risonha e impessoal.
Quando as portas se
abriram só havia escuro. Um escuro espesso, gelatinoso, sem cheiro de nada.
Dava para pegar no escuro, moldar alguns pedaços nas mãos, e por isso acendi um
isqueiro para ver mais adiante. A luz do isqueiro não fez efeito. O próprio
fogo também era maleável e frio, pegajoso como gel. Pensei em mau tempo, mas a
comparação não era boa. Uma escuridão palpável como aquela poderia ser tudo,
mesmo um fenômeno natural.
Quando descemos as
escadas, abrindo caminho na escuridão espessa, os outros passageiros sumiram e
procurei seguir em linha reta e assim, em linha reta, continuei andando até
hoje, ainda atrás de sinais de vida, ainda atrás de uma conclusão para uma
história absurda, ou num golpe de sorte, de um balcão de informações.
...
Resultado: desisti de
continuar aquela sinopse. Desliguei o computador e saí por aí, certo de que não
terminaria meu primeiro projeto de filme de mistério. Tudo era muito manjado,
tirado de outras obras de ficção, e o pior é que eu não sabia como explicar as
cenas que criei. Faltava lógica, base científica, personagens consistentes.
Além disso, aquela massa escura era uma parede que impedia o prosseguimento do
filme. Deu um branco – um preto, para ser mais claro.
Foi assim que
abandonei o cinema e voltei à minha cidade, no sertão, para retomar a vidinha
de funcionário e escritor regionalista. Para contar histórias do meu avô, dos
meninos da fazenda e do gado magro da seca. A crítica não gosta mais dessas
coisas, mas no céu escuro havia milhões de estrelas e os andarilhos andavam com
os pés no chão.