sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Cigarros e consequências niilistas




Por que essa cara feia? Só perguntei se tinha cigarros. Diga que não tem e pronto, sem discurso, sei dos males do fumo, mata, aliás, não só o fumo mata, um monte de coisas mata, e a senhora também vai morrer, mesmo sem fumar, sem beber, sem fazer nada. Pode até morrer de tédio. Se eu fosse a senhora já estava morto, preferia. Pode viver mais uns anos? E daí? Tudo termina do mesmo jeito.

Agora fudeu. O que Jesus tem a ver com isso? A senhora acredita em Deus? Ótimo. Vá pro Céu e não me encha a paciência. Vai fazer o quê no Céu? Ninguém sabe como é, ninguém sabe se existe, ninguém sabe de nada. E se vai pro Céu depois de morta por que se preocupar em não fumar? Não gosta de fumar, não fume, mas deixe os outros em paz.

Não estou irritado, não, foi a senhora que começou. Fiz uma pergunta banal - “tem cigarros?” - e ouço mais do que um “não”. Um olhar de censura, quase raivoso, como se eu estivesse atrás de cocaína ou plutônio. Depois a senhora inicia a pregação religiosa, não somente contra o tabaco, mas contra meu gesto, contra mim e mais adiante começa a me enxergar como infiel, um homem sem Deus, um descrente.  Não é da conta da senhora.  Sou viciado, sim, mas mandaria a indústria do cigarro pro inferno, pena que não há inferno, porque mandaria a senhora junto.

É cada uma. O comércio hostil, só faltava essa. Se a moda pega, posso ser preso por pedir qualquer produto que o vendedor não tem. Ali na esquina com certeza têm cigarros, na loja de conveniência, e pergunto o que senhora tem feito em relação a isso. Vai jogar uma bomba na loja, vai? Daqui a pouco essa sua obsessão vira terrorismo. Fanatismo do caralho. Falo sim, caralho. Vai chamar a polícia? Pois chame. Eu devia ter comprado um pacote no supermercado, a porra do supermercado só vende em pacotes, acho um absurdo. Como também acho absurda a reação da senhora.





Seu guarda eu só perguntei se ela tinha cigarros. Chamar a polícia por uma besteira dessas. Só que a vendedora queria me converter à religião dela. Não gosto disso. Só queria um cigarro... Não, não. Não agredi ninguém. Só reclamei do atendimento. Tudo bem, o senhor não fuma, mas o que uma coisa tem a ver com a outra? É um produto vendido legalmente. Nunca fumei em áreas proibidas, respeito a lei, não posso ser acusado de nada. O quê? Ela disse que sou niilista? E daí?  Um niilista tentando comprar cigarros. É crime? Pode ligar pra delegacia? Quer que eu explique o que é niilismo? Não quer, então pergunte ao delegado; liga ai?

Não, a senhora está enganada; ela está enganada, seu guarda. Niilistas não matam pessoas; é um conceito filosófico, a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “porquê”. Li isso na Wikipédia e nem sou niilista, apenas um consumidor exigindo respeito. Quer dizer que o delegado está procurando o crime de niilismo no Código Penal? Não vai encontrar, seu guarda; é melhor ele consultar Turgueniev, Dostoievski, esse pessoal. Máfia russa? Não é nada disso, seu guarda.

Estão averiguando? Averiguando atividades da máfia russa nessa área? Que loucura! Serviço Secreto da PM? Não se pode mais fumar nesta cidade? O senhor está confundindo as coisas e essa mulher é louca. Niilismo não é o nome de uma operação criminosa. O delegado disse que os niilistas combatem as religiões? Onde ele leu isso, meu Deus? Só dizem que a vida não tem sentido. Só isso. Não, não acho pouco, mas não é crime em lugar nenhum.

Tudo bem, pode me levar, mas dá uma paradinha naquele quiosque, por favor. Olha aqui o dinheiro, compra pra mim. Obrigado, seu guarda. Valeu mesmo. É isso. Vermelho. Box.


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Viagem sobre a viagem





Para ele toda viagem guardava uma decepção – a chegada. A emoção estava na véspera, na permanência nos aeroportos e no período do voo. Tudo acabava no desembarque, onde não havia mais nuvens; apenas bagagens rolando na esteira e passageiros apressados.

A viagem começava quando ele comprava a passagem. Gostava dessa observação do escritor Gabriel Garcia Marques. A partir do bilhete na mão, iniciava-se a alegre ansiedade, desde o planejamento minucioso do itinerário e conexões – quanto mais escalas melhor - à arrumação da mala. Dúvidas boas e freqüentes sobre que livro combinava com um saguão lotado e um céu de brigadeiro.

Adorava aeroportos. Garantia que as mulheres eram mais bonitas nos aeroportos, especialmente as passageiras de shortinhos rumo a lugares ensolarados. “Essas vão para Noronha”, dizia baixinho quando deparava com um grupo acima do padrão, com alcinhas de biquíni sob incipientes blusinhas brancas.  No deck, outro espetáculo – o sobe e desce dos aviões, enquanto lia jornais e tomava café. Então voltava ao segundo andar e estava mais uma vez diante da variedade de gente a ser embarcada. Talvez alguém daquela paisagem humana, mudando a cada lote de voos, também pensasse como ele e achasse a voz sensual de Iris Lettieri, anunciando partidas e chegadas, um dos grandes momentos da vida.

Na ala internacional, a intensa mistura de vozes estrangeiras. Suecas e nigerianas numa mesma fila, e ainda por cima lindas, em que outro lugar ele encontraria? Dirigia-se às moças, num inglês precário, pedindo informações desnecessárias, só para ouvi-las falar e ver olhos brilhando de intensa expectativa.

Usufruía ainda mais o aeroporto quando Iris anunciava o atraso de seu voo. Para muitos seria uma contrariedade. Não para ele. Mais tempo para observar a fauna humana, aeromoças apressadinhas arrastando suas malas padronizadas, comandantes altivos e despedidas de cinema.

Depois, o voo em si. A bordo poderia pensar na vida, anotar ideias, ver um filme, ouvir a conversa dos vizinhos, ler a revista de bordo sob o senso spinoziano, ou seja, um milhão de possibilidade a nove mil pés de altura. Como não imaginar quem estava lá embaixo, na região rural de Uberaba, por exemplo, era outra diversão e por isso sempre viajava na janela. Olhava para terra, o mapa gigante, ruazinhas, e de repente um arco-íris, uma tempestade, outro pequeno avião passando ao lado. Gostava, enfim de tudo. Gostava até mesmo das turbulências.

Por fim o pouso triste, a inexplicável pressa das pessoas em sair do avião, a espera das malas e logo o taxi seguiria pelas ruas da cidade, mostrando que ao rés do chão tudo perdia importância.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

São Paulo sem ninguém





Na semana passada, num desses canais de ciência, vi como seria a cidade de São Paulo caso seus moradores, nativos e imigrantes, simplesmente deixassem de existir. Em poucos meses, a Avenida Paulista seria tomada pela Mata Atlântica e animais domésticos e ferozes - fugidos do Zoológico - dominariam o ambiente. Não haveria energia elétrica, os incêndios consumiriam as favelas e logo em seguida os prédios de luxo.  Carros parados transformados em abrigo de insetos, água dos reservatórios transbordando em outras partes. O mundo sem humanos, uma enorme trepadeira escondendo o edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, embora esse detalhe não venha ao caso, pois nada passará à posteridade, nem mesmo a arquitetura. A cidade, enfim, está arborizada.

O cenário serve a outro propósito: sobraram duas pessoas, um homem e uma mulher, numa versão Adão e Eva sem religião no meio. Sobreviveram e não se conhecem. Adélia está na Zona Leste, escondendo-se de um casal de hipopótamos. Paulo está num café dos Jardins, protegendo-se das ratazanas com uma submetralhadora encontrada numa viatura da PM.  Não há a quem recorrer. Não se pode culpar o governo nem as operadoras telefônicas pelos celulares mudos. A tecnologia é só uma lembrança. Naquele mesmo café, meses atrás, ele tinha pedido um espresso, feito com grãos da variedade Bourbon Amarelo, R$ 7,00 a xícara. Paulo, portanto, é um homem fino e rico. Adélia, enquanto isso, sonha com uma vitamina na padaria. Ambos comerão frutas e caçarão animais assim que a comida dos supermercados perder seu prazo de validade. Por sorte, há fósforos, velas e pilhas para as lanternas. Mas chegará o dia em que só restará o fogo, a única arma contra os novos inimigos.

Um encontro de Adélia e Paulo já seria improvável numa cidade de 18 milhões de habitantes. Quanto mais agora, sem táxis, metrô, ônibus e Facebook. Sem ninguém, exceto eles. Além disso, vivem em mundos diferentes. Classes sociais diferentes. Ele ia a teatros; ela freqüentava o Centro Educacional Unificado de Itaquera e fazia curso de informática. A piscina do CEU está cheia de peixes e anfíbios, dois jacarés-de-papo-amarelo e umas sete capivaras nadam na obra da ex-prefeita Marta Suplicy. Centenas de cobras já rastejaram do Instituto Butatã até o centro comercial do bairro. Bichinhos escamosos e nojentos se juntam à nova fauna suburbana. Paulo abandonou seu apartamento de cobertura por causa da invasão de grilos, ratos e baratas. Adélia fez o mesmo com medo do hipopótamo.

Não há muito tempo.  A sobrevivência da espécie humana depende desse encontro, Paulo e Adélia, habitantes de áreas conflagradas e distantes. A metrópole é uma selva, não mais no sentido figurado. Está lotada de bichos venenosos e uma vegetação mais espessa viceja no asfalto selvagem. Para a glória póstuma dos preservacionistas, animais dados como extintos se multiplicam como bactérias. Aves esquisitas ocupam o céu dos aviões.

A idéia inicial era promover o encontro Paulo-Adelia. Um caso de amor para o recomeço da civilização. Mas falta logística, comunicação, vias de acesso. Sem contar que Paulo é estéril e Adélia prefere as meninas.   

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O primo Guedes




Eu me confundia com a quantidade de gente e de intersecções familiares presentes no Facebook. Outro dia, marquei como parente certo José Guedes, morador de Maceió, meu primo, assim acreditava. Como não era de acompanhar o dia a dia virtual, lia as coisas superficialmente, pois não entendia direito e tinha medo de clicar alguma coisa e estragar tudo. Quando enfim resolvi entrar no mundo de vocês, notei como o primo Guedes havia mudado. Envelheceu bem, estava um gato, dava pra ver pelas fotos, e seus gostos opiniões políticas eram bem diferentes de trinta anos atrás, a última vez em que nos vimos.

O marombado primo Guedes, ardoroso direitista, era agora um homem de esquerda, mas talvez de uma esquerda não tanto conhecida, porque citava um monte de nomes estranhos, situações que não lia nos jornais e outros sinais de transformação radical. Por exemplo: primo Guedes informava ser ator e achei estranha a troca da Gastroenterologia  pelo cinema, assim como a troca de mulher e de cidade; estava agora morando em Coimbra, Portugal, num relacionamento sério com Maria Dolores e não mais com Elizabeth Coutinho.

Mas ele sempre me tratava de prima e assim fomos, trocando impressões, desejando feliz aniversário um ao outro, além de recíprocas cutucadas e curtidas. Havia mais, muito mais. Com o tempo, a família era o que menos importava em minha comunicação virtual com o primo Guedes. Estávamos no perigoso limite das vias de fato – ele, lá; eu, cá -, entre frases excitantes e troca de fotos sensuais. Achei meio incestuoso, mas fui em frente. Tão em frente que marquei uma viagem à Europa, a primeira, só para testar certas compatibilidades com o parente distante e galante. Ele se alegrou. “Vai ser bom, teremos uma grande festa aqui”, escreveu, in Box, como se diz.  

Antes de viajar, no entanto, descobri que o Guedes de Coimbra não era o mesmo Guedes de Maceió. O alagoano também estava no Facebook e continuava gastroenterologista e homem de direita, daqueles que defendem a pena de morte e detesta gays. Azar, fui assim mesmo, era até melhor. Não era mais meu primo e ficar com primo é meio estranho. Logo no aeroporto de Lisboa encontrei o Woody Allen, atrás de locações para mais um filme sobre capitais da Europa. O mundo do cinema, o mundo de Guedes, meu ex-primo. Que aventura. Fiquei extasiada.

Depois do desembarque vejo Guedes, o ator e - surpresa desagradável-, estava acompanhado do outro Guedes, meu primo alagoano. Havia ainda Rita Guedes, irmã do português, além de quase duas dezenas de Guedes, todos sorridentes, com cartazes nas mãos, esperando mais Guedes que viriam do Brasil e de vários lugares do mundo. Eu sonhava com o amor e estava num conclave de Guedes, uma grande reunião de família, parentes próximos e distantes, primos de terceiro, quarto e quinto graus, e até um bisneto de Victor Guedes, fundador do azeite Galo. Tudo havia sido programado na página “Os Guedes”, no Facebook, que nunca vi.  Pensei em pular da árvore genealógica e pegar o primeiro voo de volta. Mas a multidão de Guedes me cercou, num tipo de opressão familiar literal, na base da força física, imposta por abraços apertados. A maioria era desconhecida, mas divisei, no meio da confusão, minha tia Edilene, minha avó numa cadeira de rodas e meu tio avô Abelardo, que dava como morto.

Cercada de Guedes por todos os lados, cedi ao pesadelo, relaxei. Mesmo porque, depois da longa confraternização, primo Guedes, o português, encostou-se, retomou a conversa interrompida no Facebook e resolveu mostrar serviço.  Resultado: casei, tivemos dois pequenos Guedes e estou aqui até hoje. O resto da família foi embora, tio Abelardo morreu de verdade e Woody Allen desistiu de seu filme lisboeta.  

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Moça com data de fabricação




Ontem eu vi uma moça linda com uma tatuagem na coxa em que informava o dia, o mês e o ano em que nasceu – FAB: 17-01-90 -, escrita com a mesma fonte usada para indicar a data de fabricação de um produto. Pensei em perguntar – só pensei – qual seria a data de validade. Quando ela virou-se e sorriu parecia ter sido feita de matéria não perecível.



Sertão

“O sertão é necessário” foi o mote que surgiu numa conversa sobre diferenças: a vida urbana e o semiárido do Nordeste, duas culturas e seus contrastes enormes, todas as facilidades encontradas na metrópole e todas as dificuldades sob a seca, como agora. O mais interessante é sermos de lá e estarmos tão longe, há tanto tempo, mas ainda pensando naquele céu de estrelas e nas pessoas capazes de nos ensinar coisas preciosas, mas pouco pragmáticas. Em janeiro iremos olhar as estrelas, conversar um pouco numa sombra qualquer e depois a vida seguirá, como no verso de Pessoa, neste oásis de inutilidades ruidosas.



Ilustração: Henrique Koblitz

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Doralice





Numa tarde de abril de 1993, achei meio milhão de dólares numa lata de lixo. Eu era morador de rua. Pensei em entregar o pacote à polícia, diante da imprensa, e aparecer nos jornais e TVs como exemplo de honestidade. Matérias assim ganham algum destaque, e talvez a partir deste gesto nobre minha vida mudasse. Sonhava em viver como antes de ser varrido da sociedade por uma sucessão de erros: separação, pensão alimentícia, aluguel atrasado, alcoolismo, perda do emprego e por fim o despejo. Minha família sumiu.

Calculei o custo-benefício da operação e resolvi ficar com a grana. Foi uma análise fria, entre a culpa e o arrependimento. Fiquei com a culpa, bastante suportável porque não sabia de quem era o dinheiro. Bens materiais, nesses casos, servem mais do que elogios, e minha situação era materialmente dramática. Não consultei ninguém para tomar a decisão. Não tinha amigos nesse nível de intimidade e temia ser roubado por outros moradores de rua. Creio que nenhum deles contribuiria para meu drama ético. Dentro de mim, no entanto, houve um intenso debate – devolvo ou não devolvo? – e quando olhei para meus trapos vi como saída prática e aceitável ficar com as notas de dólares.

Troquei apenas cinqüenta, numa casa de câmbio, e tremendo de medo de alguém chamar a polícia. Não houve problemas e procurei ser discreto nos próximos passos. Comprei um par de camisas baratas, uma calça jeans e tomei banho. No mesmo dia aluguei um quarto numa pensão. O dólar estava nas alturas naquele tempo. Depois troquei mais, sempre aos pouquinhos, até assumir uma vida confortável em relação à minha vida anterior. Nunca mais cataria coisas no lixo. Mesmo assim, bem vestido, fui me consumindo pela culpa e só tinha algum consolo ao pensar que poderia estar sendo devastado pelo arrependimento.

Os dólares ficaram numa caixa, no guarda-roupa do quarto, e diante da dona da pensão assumi a postura de trabalhador, saindo toda manhã e só voltando à tarde, falsamente cansado. Gostava de andar por ai, sem destino, tomando uma cerveja em bares modestos e indo ao cinema. Fazia oito anos que não via um filme. Com dinheiro no bolso, podia ver uma média de dois filmes por dia. Era meu expediente.

Ocorre que o dinheiro muda as pessoas. Eu comecei a mudar. Primeiro um celular – um modelo com tampinha -, roupas de grife, bons restaurantes, jogos do Corinthians nas cadeiras numeradas. Troquei a pensão por um apart-hotel e comprei um carro de segunda no feirão dos automóveis. Fiz novos amigos bem situados na vida e virei um bom partido. Foi ai que conheci Doralice num restaurante a quilo e em poucos meses nos casamos.

Achei adequado ter uma família nesse processo de evolução patrimonial. O casamento durou um ano. Doralice gastava muito e depois descobri que ela tinha um amante. Separação litigiosa. Ela ficou com a casa. Não achei justo, mas entreguei o imóvel. Devia ter feito algum investimento; não fiz. Doralice conhecia minhas contas melhor do que eu. Doralice perdulária e traidora. Interesseira e canalha.  Amava Doralice mesmo assim. Sentia falta de seus gritinhos sacanas, seu olhar aceso, o jeito de encolher-se na cama e depois saltar sobre mim como um animal no cio. Sofri. Voltei a beber, o dinheiro acabou.

De volta às ruas. Mendigo com um terno bem cortado num saco plástico do Pão de Açúcar e um celular sem bateria. Instalado embaixo do viaduto, num acampamento estilo MST, reconheci os velhos rostos da miséria, mais velhos e mais sujos. Não me sentia tão mal. Estava livre da culpa.  Só pensava em Doralice.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Moreninha viking




A moça das runas chegou. Ligada à mitologia nórdica, politeísta e adepta da premonição, ela ficou chateada quando eu comentei que os vikinks eram a escória de uma sociedade ainda em construção. Eram salteadores e piratas. Daí, pulei para a antropologia nacionalista: “por que Odin e não Ogum?” Expliquei então que os deuses louros têm seu Olimpo - Asgard -, mas os orixás também contam com o seu plano espiritual, Orum. “Parece muito com mitologia grega”, continuei, levando em conta que tudo por ter vindo da África, etc.

Normalmente não puxaria uma conversa desse tipo, prefiro futebol, e ela estava calada, meio perplexa, mas absolutamente linda. Com sua vestimenta cerimonial, parecia uma deusa e eu não acredito em coisas sobrenaturais, mas parecia. Poderia ter pensado estar diante de um vislumbre, uma revelação de Shiva (Shiva faz revelações?), mas não. Pensei, apenas: “que gata!”. Pois é. A moça que estava ali, versada em runas e Futhorc, causadora de tempestades e outros fenômenos, era especialmente uma exuberante morena bronzeada, escondendo sua brejeirice em gestos de personagem da Saga de Völsunga.

Na verdade, passei uma semana em meticulosa pesquisa na internet para me inteirar das religiões nórdicas. Descobri que os deuses morrem e a própria crença em Odin e Thor quase desapareceu com a chegada das tropas do cristianismo, já uma espécie de OTAN no século XI. Tomei essa providência no dia em que a deusa Hel em pessoa, embora morena, subiu numa escada para dispor a placa de seu estabelecimento: “Svartalfheim” (Repouso dos elfos). Nome estranho, sei não; só sei que Hel, o nome da deusa, deu no inglês Hell (inferno). Coisas anglo-saxônicas. Pois estava a diabinha montando seu inferninho esotérico na minha rua e não parei um segundo de olhar. Era a síntese de todas as mulheres do mundo e nem ao menos eu tinha falado com ela.

Lojinha montada, marquei a consulta.  Cheguei lá pontualmente. Sou o único cliente. O negócio está apenas começando. Duas outras moças abriram a porta do quarto onde a deusa fazia suas consultas. Foi aí que me senti ainda mais atraído e disposto a enveredar por todas as mitologias só para tomar um sorvete com ela. Como uma moreninha dessas se mete com mitos da Escandinávia? Difícil entender. “Por que não Iemanjá?”, perguntei, voltando ao início deste texto. Não seria uma surpresa se ela surgisse de Eruexin- - o chicote de crina de búfalo usado por Oyá -, mas veio com uma bata translúcida, o sol entrando pela janela, e palavras suaves de boas vindas em idioma viking. Foi difícil tirá-la deste estado e também não me importei muito, pois a janela aberta, o sol entrando e a bata translúcida formava de fato um belo conjunto, cujo principal elemento estava fora dele, aliás, dentro: o corpo da deusa morena sueca. A calcinha, bem visível, provavelmente era da grife indiana Kushmanda Overseas.

Aos poucos, depois de consultar seus oráculos, com previsões previsíveis, finalmente a deusa resolveu descer de Asgard e saiu-se muito bem. Primeiro mostrou conhecimento de macumbas em geral, disse que era filha de Iansã, e a conversa descambou para a vida no bairro. Ninguém mais viria e ela parecia não dar importância. Pensei em chamá-la para uma cerveja ali na esquina, mas achei conveniente permanecer no interesse por seu trabalho e perguntar se ela já tinha lido As Máscaras de Deus, de Joseph Campbel, e terminei perguntando mesmo e a resposta foi a melhor possível: Já lí, claro; você leu, ótimo. “Cara...” Essas reticências – poderiam ser exclamações - precisam ser entendidas como um olhar de agradável espanto por ter encontrado ali, na inauguração da Svartalfheim, alguém tão afinado com suas preferências.  

Cada coisa a seu tempo. Chamei para a cerveja. Descobri o melhor. A moça tinha os pés assentado no mundo, ou também, porque contou que o consultório Viking era apenas mais um negócio em sua pequena, mas diversificada vida empresarial. Já teve brechó, lojinha de produtos naturais e uma papelaria com viés origamista.

- A pior coisa do mundo é deixar de gostar – disse ela -. Não precisa nem ser de gente, um grande caso de amor acabado, uma amizade destruída aos poucos, por exemplo. Mas uma coisa, uma maneira de ser, uma música, um empreendimento. Foi o que aconteceu comigo, aliás, sempre acontece. Passei um tempo morrendo de medo de perder o interesse por moda – e perdi. A partir daí, não liguei mais para moda e segui em frente. Mas logo comecei a gostar de outras coisas e o medo voltou. Estou com medo de deixar de gostar as runas e da mitologia nórdica.

Qualquer psicanalista teria enxergado ali um problema. Eu enxerguei uma oportunidade. Ensaiei um “basta apenas gostar da vida” e achei meio óbvio, além de perigoso, pois ela poderia passar a desgostar da vida e aí fudeu.   Fui pelo mais fácil e lembrei como gostava de futebol quando era criança, passei um tempo sem gostar tanto, e depois voltei a gostar de novo. Além disso, a gente não precisa de tanta dedicação a um tema tão antigo e improvável, a não que esteja escrevendo uma tese sobre isso, e que aplicar esse tipo de coisa à vida prática é uma insanidade, no meu ponto de vista de descrente, mas essa parte eu só pensei, não disse.

Foi tudo muito rápido. A lojinha faliu e a deusa Hel não se abalou. Entregou o imóvel e desembarcou em minha casa com os apetrechos cerimoniais. O casamento foi uma cerimônia simples, sem sinais nórdicos, e vivemos quatro semanas e meia de paixão calorosa e alegre até ela anunciar que estava com medo. Com medo de deixar de gostar de mim. Aconteceu. Em duas semanas voou para a Califórnia para encontrar-se com um guru descoberto na internet - Um garoto cheio de vida, quase um surfista, parecido com o Thor do desenho animado.  Adeus, Asgard.




quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Deduções



Deixe de colocar minhoca na cabeça da minha mulher, sua danada. Vem cá, encosta aqui, fica pertinho. É o seguinte: você não pode insinuar que tem um caso comigo. Tecnicamente somos amantes. Sou amante da melhor amiga da minha mulher, veja só, parece pornochanchada. Você aqui, deitada, nua, e eu pensando na minha mulher e em sua amizade com ela. Você não diz nada? O problema é que você olha pra ela de um jeito muito sacana. Olha, sim. Como quem diz “to comendo seu marido”, e ainda tem aquela viradinha de cabeça, irônica e segura, quando ela fala da nossa vida de bem casados há dez anos. Uma eternidade e você aqui, no meio da história, se abastecendo de não sei o quê. Você é confidente da minha mulher. Que coisa! Ouço as risadinhas. Culpa nenhuma, né? Não sei como consegue.  Vamos fazer o que manda a cautela: tudo fica da mesma maneira. Segunda e quarta, no mesmo canto, aqui mesmo. Quando for a minha casa – você vai quase todos os dias – não dê bandeira. Caramba, vocês são amigas desde o século passado. Ela se refere a você com tanto carinho; nem de longe imagina esta cena. Dá um beijo, vai. Engraçado... Vocês duas são da mesma classificação que li no livro de Tolstoi: bonitas, misteriosas e originais. Ela carrega a desvantagem de não saber, mas atua nesse drama com elegância. Mas, peraí: ela não cogita essa hipótese ou sabe de tudo? O que você acha? Age com aquele ar distante para ser uma vítima quase sagrada diante dos outros, mas sabe que a gente não sabe que ela sabe. Aí é uma vantagem dela. Amo minha mulher, já disso isso. Amo você também, claro. Sei que você adora este triângulo. Quando falo dela parece o momento da colheita pra você. A melhor hora. Você faz tudo para chegar a isso: falarmos dela. Sua compensação é conversar sobre a onipresente. Linda, minha mulher, não é mesmo?  Você quer ter poder sobre ela porque não quer ficar comigo – ou quer, também -, mas seu alvo primário é outro. Vocês estão me traindo?

domingo, 2 de dezembro de 2012

Questões trabalhistas


Madrugada terrível. Só vi uma assim em Angústia, de Graciliano. Parecia que não ia acabar e eu não sabia o que seria melhor, acabar ou não. Caso a madrugada se congelasse ali, estaria de bom tamanho. De qualquer forma, a imagem do dia chegando gelava os nervos. Até o final da tarde, meu ego estava exposto à visitação pública, eu tomava minha cervejinha, ainda seguro, usufruindo a sobrevida. Agora, sou um homem aterrorizado. Um mês de férias. Um mês fora do inferno e amanhã, quer dizer, hoje, tudo recomeça.

Não gosto de trabalhar, pelo menos não gosto do meu trabalho. Detesto a empresa, meus colegas são insuportáveis e o salário é uma merda. Tenho cisma especial com o tipo que veste a camisa da empresa e adota seus conceitos de produtividade e resultados. Um dia é demitido, tenta voltar a falar como antes, mas não consegue. Vira um zumbi corporativo, pois, desempregado, perde o pé das mudanças no jargão empresarial e sai por ai, dizendo que isso e aquilo agregam valor. 

Quem conheceu sujeitos assim, como conheço, sabe do que estou falando. Mas a questão central aqui é a volta para o trabalho e o fim de uma série de prazeres reais, como ler até tarde, acordar tarde, almoçar a qualquer hora, andar sem destino. Um bom argumento para a volta - e explica em parte porque não me demito – é a necessidade do dinheiro.

Todos dirão isso, embora eu tenha em mente um sistema de trabalho mais flexível e não obrigatório, como, aliás, também poderia ser o voto. O governo e os empresários um dia terão que fazer isso porque o mundo do trabalho está a cada dia enxuto. O que fazer com o restante? Não se pode deixar a mão-de-obra excedente na miséria? Então, o trabalho torna-se um ambiente para pessoas realmente com vocação, entusiastas, empreendedores, as que se dizem felizes e realizadas como o que fazem. Não é o meu caso. Eu me sentiria feliz sem ir trabalhar todos os dias – melhor ainda, dia nenhum - e gostaria de receber por isso.

Não se trata de seguro-desemprego ou Bolsa Família. Pode ser um salário menor do que os trabalhadores formais, embora digno o suficiente para garantir aluguel, alimentação, lazer, transporte, cultura e plano de saúde. Uma espécie de vida sabática. As empresas continuariam seu modo capitalista e nós, não trabalhadores, teríamos enfim as delícias de um socialismo moreno, ou melhor, bronzeado.

Minha tese é obviamente mais complexa, envolve economia para as empresas em encargos trabalhistas e alguma contribuição dos desempregados em termos de conceitos existências. O problema é que agora estou com uma preguiça danada, amanhã volto ao trabalho e o dia já está amanhecendo. 

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Duas décadas






1980 - Se disser “estou cansado” não é por falta de disposição física. Digo “estou cansado” por causa da mesma coisa todo dia, o ramerrão, o feijão com arroz, a solidão: trabalho – metrô – casa –casa – metrô - trabalho. Nada de especial acontece, nem no fim de semana, quando sinto falta da rotina semanal porque no fim de semana é pior. Só TV. Vejo na TV pessoas cheias de vida, cheias de compromissos sociais e diversões diversas. Sozinho no sofá meu ego vai murchando e um dia vai sumir. Chegará a hora em que perderei qualquer sinal de autoestima. Rastejarei diante das outras pessoas para ter um pouco delas, a atenção de um olhar ou apenas um “oi”.

Quando cismo com distrações saio no sábado á noite. Não conheço ninguém nos bares. Tento conversar com estranhos e eles não respondem. Volto para minha cerveja em cima do balcão e poderia beber até cair, caso gostasse de beber, mas não gosto. Nem isso. Enjoei de ficar embriagado. Enjoei de ficar sóbrio. Enjoei de oitenta por cento das coisas deste mundo, incluindo esportes e artes, além de bares, repletos de alegria alheia. Falta-me vontade e imaginação para o sexo – solitário, é claro – ou a leitura de um livro. Invejo as pessoas que se recolhem e se sentem bem solitárias.

1990 - Um bando de palavras soltas atiça meus pensamentos. Comiseração e desordem. Desejo e volúpia. Perdido em algum ponto dos anos 90, onde as condições de resgate são bastante complicadas, eu encontro a minha turma. Nesses anos eu me perdi e achei um monte de gente para animar minha existência. Adeus solidão, eu estava com as piores pessoas do mundo, mas estava longe da minha casa tediosa e da TV. Com os (as) vagabundo (as) dei sinais de vida para mim mesmo, namorei muito, enchi a cara, escrevi um livro, usei substâncias proibidas e herdei sérios problemas de saúde.

O que mudou entre uma década e outra não foi obra da psicanálise. Foi o acaso. Conheci pessoas erradas na hora errada. Estava na pior e o pior que veio foi extremamente divertido enquanto durou, e por isso valeu, levando em conta que a própria vida também tem seu prazo de vencimento. A gordura no fígado e os quilos a mais foram compensados pela melhoria do meu humor. Fiquei até mais inteligente, embora só achasse isso a minha turma de desvalidos.  Durante esse período todas as sensações foram ativadas até o talo.




2000 – De forma geral foi uma boa experiência. Um dia os médicos disseram “para!” e parei. Meu estado geral agora é bom e não perdi o humor com a abstinência. Vivo numa certa neutralidade em relação às coisas do mundo, mas inteiramente informado. Posso ter duas opiniões sobre o mesmo assunto e me satisfaz a maneira como defendo teses que ataquei ontem. Houve sobreviventes da turma dos 90’ e estão acalmados, inteiramente mudados ou medicados.

Tudo bem, passou, aliás, passaram. Duas décadas estranhas, entre o recolhimento e a bandalheira. Outro século, agora, momento de aparente tranqüilidade, pois não sabemos se é real ou só o cuidado com a imagem. Vou levando, mas sempre com a pergunta na cabeça: o que vem depois disso tudo? 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O professor volta para morrer





Debruçado em um tratado sobre a classe média, o professor esquecia-se de tomar seus remédios conforme a bula. Uma dúzia de comprimidos por dia, cada um num horário, todos essenciais à sobrevivência. O professor foi atingido por um conjunto de doenças e fosse religioso perguntaria a Deus por que chegava ao fim da vida com dores em cada centímetro do corpo. Não havia a quem reclamar, enfim, e a concentração no trabalho regia tudo e parecia exercer sobre ele um efeito terapêutico, a ponto de fazê-lo aguentar pontadas terríveis enquanto descrevia a afinidades entre poder aquisitivo e ética nas relações sociais.

O acadêmico é um personagem recorrente, em alguns escritos perdidos, sempre botando banca, e agora volta para morrer de forma asséptica e elegante, diante do magnífico reitor, o corpo docente e os corpos indecentes das alunas da graduação. Gostava de casos com elas e se martirizava mais por questões estatutárias da pontifícia universidade do que pelos sentimentos - dele ou delas. De qualquer forma, nenhuma regra tinha sentido naqueles momentos derradeiros da existência e da conclusão do tratado sobre a classe média. Coisas bastante entrelaçadas, sem dúvida. A vaidade seria satisfeita, mesmo de forma póstuma. Para um ateu, restava antecipar as glórias, imaginá-las, tê-las em perspectiva, com frases de discurso, comentários de seus pares, os parágrafos graciosos dos obituários. Sem contar o choro escondido de algumas orientandas.

Primeira preocupação é não ser piegas. Continua a levar uma vida normal para o público externo – todas as pessoas deste mundo – e a publicar artigos em que trata a enfermidade de forma concreta, narrando procedimentos médicos, aos moldes de Christopher Hitchens (1949-2011, câncer do esôfago), cujo livro de despedida é sempre descrito como ácido e sarcástico, mas sem sentimentalismos. Para o professor, a vida é apenas uma aventura intelectual. O ponto final em seu último ensaio. 




segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Autoajuda





- A consciência disso não lhe apavora? – perguntou o sábio da auto-ajuda, sentando num trono manuelino, fumando um cigarro –. O candidato a escritor de “livros sérios” apenas balançou a cabeça, dizendo “não”, porque se fosse pensar nisso não sairia do lugar ou se jogava do prédio. Diz que não pensar na morte e procura tratá-la com naturalidade, embora não ache provável uma segunda chance.

- À beira dos 50 – prosseguiu o sábio, obviamente referindo-se ao aniversário do interlocutor –, a qualidade da carne vai decaindo, e você vai procurar conforto em outras camadas; alguns vão à cultura, outros à soneca. Só que a intensidade não será a mesma. As suas emoções não serão as mesmas, como a do primeiro amor etc e tal.  Ao mesmo tempo, as emoções dos jovens talvez lhe interessem, mas serão inalcançáveis para você. Entendeu?

- Parece um treinamento para o Juízo Final – disse o interlocutor, amigo do sábio há décadas, entre brincalhão e preocupado.

- Mais ou menos – respondeu o sábio -, mais ou menos. Até por questões físicas não dá mais para encarar as melhores coisas da vida e conhecendo você sei que se evadirá para aquele território de velhos que se dizem satisfeitos com tal condição, embora não estejam. Você dirá que acumulou isso e aquilo, mas não acumulou nada, está apenas em fase de declínio, procurando emoções sutis, como a literatura, mas ainda assim insatisfatórias.

- Caro sábio – disse o interlocutor, mostrando alguma reação -, meu caríssimo sábio, sobraria pelo menos a memória, e se sobra, em que posso usá-la? O que já passou vale alguma coisa?

- O tempo também devasta a memória. Você passa a dar importância exagerada a histórias banais para os outros, passando a se repetir, torna-se enfadonho inclusive para si próprio.

O candidato a escritor, com agenda marcada desde o ano passada, não queria voltar de sua viagem aos Pirineus com as mãos e a alma vazias, tomado pelo pessimismo e o niilismo, sem gosto pela vida da meia idade, sem significados. Voltou-se então ao sábio com sua dúvida crucial:

- E ai? – simplificou.

- E ai – disse o mestre, ainda fumando o cigarro – e aí, eu não sei direito, para dizer a verdade, não sei. Só entendo do meu mercado, penso para ele, sigo as tendências, mas com um molho bacana. Hoje em dia o leitor de auto-ajuda está mais exigente, quer um pouco de Filosofia Pura, interpretada para iniciantes, mas quer. Então, seria demagógico da minha parte dizer que há alguma grandeza na condição humana sem antes refletir um pouco sobre isso. De forma customizada, se que é você entende. “O que se leva da vida é a vida que a gente leva”. Não vou sair dizendo isso por ai, mas digo a mesma coisa de outro modo, em parágrafos aflitivos e filtragem da Filosofia para o desejo da classe média. Nietzsche serve para tudo. Uns acham que ele nos propõe um beco sem saída; outros acham que as palavras de Nietzsche são a saída. Tenho usado muito ultimamente. Tudo isso para chegar ao ponto: não quero envolver você nessa enganação, você não leria um livro meu. Então, não sei. Não sei mesmo.

- Mas você falou sobre os males da idade. Penso mais ou menos do mesmo jeito. Não esperava uma solução de sua parte...

- O diagnóstico é esse, querido. Só que trabalho com soluções. Meus livros são o remédio para almas penadas em livrarias de aeroportos e lojas de conveniência. Não é exatamente literatura. Faço guias práticos para vidinhas de merda e tudo se encaixa.  Minhas frases são citadas em redes sociais, tenho milhares de seguidores no twitter, porque as pessoas querem o óbvio, óbvio embalado em Spinoza, mas o óbvio. Não adianta mais empurrar frases desacompanhadas (“Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...”). O caminho é a interpretação pela ótica de fulano ou sicrano, cuja leitura direta será penosa para meus clientes. Traduzo para eles, a gosto. Reduzo, torno tudo mais raso e sirvo. Às vezes nada sobra do pensador em questão.  

-Bom, sábio, marquei a consulta só para vê-lo depois de tanto tempo. Você foi sincero comigo, fui sincero com você nessa conversa meio absurda. Você mudou, hein? O importante é que ambos não acreditamos em auto-ajuda. E tem mais o seguinte: o fato é que tenho um livrinho, feito de sacanagem, mas em condições de ser levado a sério por gente do seu público. Pensei talvez, talvez você pudesse dar uma força lá com a editora...





sábado, 3 de novembro de 2012

Primeira sessão




- Eu me vi ontem à noite no outro lado da rua. Tenho certeza: usava a mesma roupa, era igual a mim em detalhes, até no jeito de andar.  Eu estava lá e cá, nos dois lados da rua. Olhamo-nos rapidamente, perplexos, ambos tentamos uma aproximação, mas desistimos. Eu (ele) desisti; Ele (eu) desistiu. Medo das conseqüências.

- Você vendo você... Só há um “você”.

- Um duplo, talvez. Andei lendo a respeito de outras dimensões. Uma imagem de mim mesmo pode ter vazado de lá...

- Há também O Duplo, de Dostoievski. Senhor Goliadkin pensa que é um outro, um outro diferente dele, mas um outro que só existe pra ele...

- Loucura, né?

- Não vamos tratar dessa forma. Digamos: um transtorno. Fale mais sobre ele (você)?

- Não é a primeira vez. Segui seus passos uma vez. Ele (eu) repetia meus gestos, como o argentino que segue os passantes, imitando seus gestos. Não era argentino. Éramos eu (ele) e ele (eu).

- Havia espelhos por perto?

- Não.

- Era uma possibilidade. Pode ter sido um reflexo qualquer, uma informação errada passada pelo cérebro. Você tomou alguma coisa antes de vê-lo?

- Água com gás e café.

- Já pensou em abordá-lo?

- Abordar quem?

- Ele, você, tanto faz.
  

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O processo do processo


Qual a primeira providencia a tomar numa hora dessas se não tenho jeito para tais coisas, mesmo porque desconheço os detalhes, os motivos e os nomes dos envolvidos, apenas me delegaram isso, num estranho processo em que fui designado juiz do mesmo jeito que poderia estar na posição de réu, como no livro de Kafka? A pergunta está zunindo na minha cabeça, desde ontem, quando chegou a correspondência, com carimbos e selos oficiais, protocolo para assinar e um aviso de “urgente”. Coube-me então tomar decisões, com base em depoimentos ainda não enviados, sequer colhidos, talvez, mas já tratados como assunto passado, embora ainda não saiba por que me escolheram, pois não sei absolutamente nada do que está se passando e não tenho formação jurídica. Nem testemunha poderia ser porque nos últimos anos não presenciei nada suficiente para um processo, exceto algumas infrações de trânsito, comuns em nossa cidade, mas havia outras pessoas mais bem posicionadas na hora desses eventos, e não tinha policiais por perto, e as desobediências ao Código Nacional de Trânsito não resultaram em vítimas, e o máximo que os prejudicados fizeram foi chamar os motoristas de “filha da puta”, uma reação plenamente aceitável nos dias de hoje, diria até normal, em se tratando de um povinho mal educado como o nosso. Teve ainda uma briga, que nem me lembro dos detalhes, só que não resultou em feridos e a confusão foi de pronto resolvida em primeira instância, a cargo da Turma do Deixa Disso, e tudo terminou bem e, se não me engano, cheguei a ver os dois contendores sentados no bar, trocando juras de amizade eterna.

Com certeza é algo mais grave, talvez um engano, embora a documentação traga meu nome, endereço e CPF e prazos para cumprir no decorrer do processo, numa linguagem intransponível para leigos, uma vez que a tipificação do crime não me pareceu clara e a forma como veio escrita, em linguagem altamente jurídica, não elucidava nenhuma das minhas dúvidas. Cada vez mais assustado, recorrei a manuais de Direito e neles não encontrei referência ao arrazoado que me foi entregue pelo oficial de Justiça, que por sinal não se identificou como tal, informando apenas ser um enviado do Egrégio Tribunal, com prerrogativas de acompanhar o desenvolvimento do meu trabalho em relação ao crime contra a ordem constituída, sem mais detalhes, nem mesmo artigos do Código Penal ou da Constituição Federal. Ainda perguntei ao emissário a quem recorrer para mais esclarecimentos e obtive uma resposta seca: “O senhor sabe o que fazer”, disse o intermediário, sem fornecer pistas ou nomes de seus superiores.

Como a conjuntura me pareceu próxima a de Josef K., em forma de subliteratura, resolvi voltar ao livro de Kafka, e percorrendo suas 332 páginas de puro absurdo, decidi apenas esperar uns dias, sem fazer nada, até nova visita do emissário, com outra papelada, cujo teor tinha certo tom de admoestação por minha indiferença em relação ao processo. Mais grave ainda era o pedido de detalhamento de itens nebulosos, desconhecidos por eles, do Egrégio Tribunal, e mais ainda por mim, mero personagem de uma alucinação jurídica. O emissário pediu apenas para escrever “ciente” e assinar. Resolvi então usar o pequeno espaço abaixo do texto para expor minha suspeita sobre a possibilidade daquilo não passar de um equívoco. “Não consigo entender absolutamente nada sobre o processo em questão e muito menos porque me escolheram para julgá-lo”, escrevi. “O senhor não deveria ter feito isso”, repreendeu-me o enviado, entregando-me outra cópia do documento, onde coloquei “ciente” e assinei, sem resistência, quase me sentindo culpado por atrasar o andamento do processo.

Não restou outra saída. Resolvi trabalhar duro em cima daquelas abstrações, reproduzindo outras abstrações, citando autores, literários e jurídicos, e salientando que o réu em questão, lembrado vagamente no processo, era inteiramente inocente do crime que não lhe era imputado.  A Justiça, enfim, fora estava feita.



terça-feira, 30 de outubro de 2012

Liga das leitoras




Quando começou a escrever em jornal seu tema era o comportamento dos jovens. A partir dos anos 80, passou por diversas etapas, dos yuppies aos grunges, descreveu os góticos numa matéria que deu chamada na primeira página, entrou no universo punk paulistano, mas um dia cansou dessa besteira toda. Agora escreve para dentro, o que se passa nas tripas e no cérebro, pensamentos alheios à moda, às vezes sexo, como vontade e representação, e está particularmente interessado na morte. Não está à beira da morte. Apenas quer investir no precipício humano e, a partir desse ponto tornar-se escritor dos bons. Não é ainda conhecido do grande público, talvez nunca seja, embora tenha lançado um livro sobre um moribundo em estado de prestação de contas sobre um passado de aventuras e culpas. Vendeu 400 exemplares.

Mesmo assim, o jovem escritor sente-se quase pronto, quase porque resta a dúvida entre ser um dos mais vendidos ou um dos mais idolatrados por uma minoria letrada. Caso escolha o primeiro caso, teria inúmeras vantagens, entre elas a possibilidade de vender os direitos para a TV, ser reconhecido na rua, etc. O inconveniente: silêncio dos suplementos literários sobre sua obra. No fundo não queria ser fácil nem difícil, nem maldito nem midiático e não queria as glórias depois de morto ou, pior ainda, ser ignorado depois de morto.

O que move a alma humana a ilusões dessa natureza? A primeira é a vontade de fazer, a segunda é a vaidade – sonha com elogios de seus pares – e a terceira, no caso dele, receber alguma a atenção do sexo oposto em termos de amor e sexo. Gosta de mulheres e literatura, nesta ordem, e usa o texto para chegar a corações femininos mais sensíveis. Descobriu também o efeito de entrar numa festinha e ganhar olhares diferenciados. A liga das leitoras abriga moças bonitas, desfazendo o preconceito de que só as feias leem. Outra descoberta.

Para manter a chama acesa entre as leitoras, é preciso uma produção constante em blogs e, vez por outra, a transformação de alguma musa em personagem esperta, bem-sucedida e cheia de referências. Elas gostam, ele sabe, e segue a fórmula. O objetivo prático da atividade, no entanto, é camuflado por explicações mais nobres sobre o ato de escrever. Mesmo o que já foi dito pega bem quando oportunamente citado e ele cria para si uma falsa aura de espírito livre e doído, obviamente azeitado por fina ironia e uma dose discreta de niilismo. Tem quase 400 leitoras fixas – talvez as mesmas que compraram seu livro – e insiste na Internet, mesmo sabendo que o território não é digno dos grandes escritores.

Uma vez ou outra se deixa contaminar sinceramente pela incredulidade e o desânimo. Nesses momentos sente-se pequeno, deprimido e alheio. Na última semana esteve preocupado com seu próprio estado ao ler sobre a relação entre criatividade e loucura. Nenhuma novidade, mas ficou preocupado. Platão não via diferença entre a irracionalidade dos loucos e a dos artistas. Em 1891, Cesare Lombroso achava que o ato de criar era uma manifestação patológica. Agora vêm com isso de novo.

Mas são dores que passam rapidamente, sempre, ele deixa pra lá. Logo, volta ao seu mundo, cortejando as leitoras, visitando partes íntimas do universo feminino, no sentido figurado e literal, e não esconde que precisa de carinho e proteção. O sexo é colateral. Hora de aproveitar sensações físicas e uma espécie de amor tão passageiro quanto sincero. Não passa por sua cabeça qualquer imagem aviltante em relação às mulheres e se martiriza quando deixa algumas delas para trás. Poderia ser mais atormentado e recluso, mas se algum desespero toca sua alma, quando sente o desprezo dos críticos por suas páginas, prefere se aninhar no colo de uma leitora - e chorar um pouquinho.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Ansiedade





Então, o momento atual remete ao momento seguinte, antes de ser absorvido por inteiro agora, valendo esta ansiosa agonia para fatos mais relevantes - amor, vida e morte. Apaixonado, previne-se contra a separação iminente, no emprego faz planos para a demissão a qualquer hora e mesmo fisicamente sadio vive sobressaltado pelo fim. Espera por copas do mundo, carnavais e verões e sente-se contrariado por não achar nada demais quando o grande dia chega. Só tem pensamentos para situações seguintes, e eis o futuro atrapalhando o presente e o passado.

Está carregando o que virá em sua história, enquanto tenta explicar como funciona o que sente, quase sem prazer, embora a atividade da escrita seja a única em      que se detém e presta atenção, livre da ansiedade.  É um caso clínico e existencial e também um caso literário. Seus textos começam por impulso, sem nada na cabeça, e ele espera que surja do nada na cabeça um pedaço de ideia, sobre si ou outros, e o passo seguinte é dispor esse pensamento em comparação com alguma coisa real, as condições do tempo ou uma mulher, por exemplo, e em seguida envolve tudo numa situação, num cenário, e dá voz aos personagens, descreve o ambiente, mas não perde tempo com muito paisagismo, pois chateia o leitor.

Normalmente os personagens caminham em direção a um final já planejado, correm sobre um roteiro, seguem um destino. Não é o caso dele. O texto só terá o momento presente. Amanhã pode ser diferente – outro rumo, outra prosa - e ele e seus fantasmas não têm um mapa. Só a estremeção inicial, transformada aos poucos em conceito, num jeito de encaixar as palavras ou numa confusão sem pé nem cabeça. Ele acumulou influência a ermo, sem método, deu nisso, mas segue adiante.

Ocorre então um problema, há personagens vagando na periferia da história, sem motivo, sem o atalho para entrar no enredo e ele tem certeza que eles devem entrar, não sabe por onde e quando, se no próximo parágrafo, daqui a dez páginas, sentirá um prenúncio. Evita provocar um encontro casual, no meio da rua, entre o pivô do enredo e o coadjuvante, vivente noutro enredo, de segunda classe. Arruma uma junção verossímil ou fantástica, contanto que seja metricamente interessante, com ritmo e ironia, se for o caso. Divaga. Era bom que assim fosse assim na vida real.


Se não consegue, tenta de novo, espera um impulso, apela aos seres rastejantes de Dostoievski e de todos os doentes da literatura. Há um imenso vazio a ser preenchido e ele vai com calma, toda calma que falta ao curso de seu dia.

domingo, 14 de outubro de 2012

Roteiro



E ouvia na noite escura uma voz saliente no beco, chamando, vem cá, ele foi, e encontraria a mesma mulher de cinco anos atrás, bem diferente, olhar de olhos brilhantes no breu e só quando ela chegou perto do poste, a luz iluminou um vestido vermelho, curto, e a maquiagem pesada. Faz uns vinte anos que ela saiu para correr esses pontos da cidade, vendo a clientela ser reduzida à medida da ação do tempo no corpo. Ainda um sinal de antes, como o fim da perna, o mocotó, mas o rosto tinha sido bastante sacrificado pelas ruas.

Era a mais bela poeta do Recife, nos anos 80, e estava agora em outra atividade, em São Paulo, catando trocados para se manter de pé. Ela sempre imaginou a vida como um poema, mais precisamente o poema em que descrevia um caldo, quase um oceano formado por este caldo, cujo interior tinha traços e círculos. Cada traço era um problema e quando um deles se resolvia, por empenho dela ou por si próprio, curvava-se, formando um circulo. Em 2012 só havia traços de círculos desfeitos e novos traços chegando a cada dia. No poema, os traçinhos e círculos não eram vistos a olho nu – só no microscópio, como num exame de sangue.

Não era o primeiro encontro nessas condições. Há uns dez anos ele esteve com ela, por acaso, numa boate de stripers.  Comemorar o aniversário, com amigos, e de repente subiu ao palco a número cinco. Foi perfeita até ser percebida. Ele também se assustou, mas resolveu tirar proveito da cena, simplesmente deu um risinho cúmplice e logo, logo ela estava sentada à mesa, bastante envergonhada, tentando dar um traço artístico àquela mudança de vida tão brusca. “Quero experimentar tudo”, disse ela, informando que não deixara de escrever e o tema era um mundo inteiramente novo, consistentemente erótico, conforme sentenciou. Não deu muito certo. Ela terminou indo dormir com ele, e no quarto e sala ela derramou-se, chorou a noite inteira, com intervalos para beber.

Entre goles de vodka, recitaram poemas e prosas, diante da TV sem som e era mais ou menos assim o começo do roteiro, pois ele seguia, como terceira pessoa, os passos de Grahan Greene, seu ídolo, em o Terceiro Homem. Green achava difícil, senão impossível, construir uma história para um filme, com seu ambiente e atmosfera, sem conceber antes um livro, pois o ato inicial da criação em forma de roteiro poderia tornar o enredo muito enxuto e insípido. Então pensou num livro inteiro sobre ela, narrando o que aconteceu de fato e inventando outras partes.

História dividida em duas partes. O primeiro e o segundo encontro, sendo que o segundo, na sequência do filme, é o primeiro. Tempo passado, mas como se fosse presente. Ela está em casa com ele, bebendo vodka, chorando e recitando poemas. Vez por outra se justifica, ataca o sistema e diz que seus anos de prostituição não foram inteiramente perdidos

Já a primeira vez, que vale como última, a situação será diferente, não haverá mais desculpas, motivações, choro ou poemas. Ela o encontrará, sob a luz do poste, e apenas dirá, meio amarga, C'est la vie, e caso ele não se conforme, queira saber o que houve, ela repetirá, antes de sair de quadro,  C'est la vie. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Formato cético para o sobrenatural




Se de repente ele se visse confrontado com explicações diferentes dos seus conceitos, com todas as evidências, mudaria de lado na mesma hora, mas constrangido e a contragosto. Seria o caso de lhe provarem a existência de um determinismo, um propósito em todos os atos humanos e no movimento dos astros. Ele, um cético, cederia. Imediatamente iria atrás de um modelito teórico, agora de cunho religioso, para enquadrar o problema do seu jeito. O autor entraria em nova fase intelectual, sempre do lado da verdade, e acima de tudo porque se uma coisa é assim, não há por que dizer que não é.

Então, diante de um acontecimento transcendental, ele tentará uma adaptação a tudo aquilo, sem perder o principal, a razão. Apela à razão para explicar a irracionalidade, não sabe se é possível, pois se lhe aparece um fantasma, por exemplo, a própria memória, construída a partir de conceitos racionais, perderá o sentido. Uma aporrinhação, sem dúvida. Toda bibliografia irá embora e será substituída por situações que ele não domina. Cederia para viver, mas viveria em posição secundária diante de pessoas que sempre acreditaram nessas coisas.

A salvação viria pelo amor à forma e descreveria o Paraíso recém-apresentado de um jeitinho seco, poucas palavras, comparações capazes de resumir um parágrafo de paisagismos. Seria econômico na forma, desprezando aquele conteúdo implausível, e cheio de clichês religiosos. Sim, porque todos os delírios da religião estariam ao dispor, incluindo o Paraíso, a vida eterna e o inferno, mas em seu texto sairia com outra sonoridade e ritmo, sem enfeites, como se uma montanha cheia de cataratas fosse apenas uma pedra molhada. Talvez convencesse os donos desses absurdos transformados em realidade, ou coisa que o valha, que estava certo de seu modelo formal, embora eles, os donos da verdade, sejam absolutos em conteúdo. O mundo, enfim, não era como ele pensava. Está ali Deus, sentadinho em seu trono, para atestar que tudo é exatamente igual à descrição dos livros sagrados, assim como também existe vida depois da morte, no Éden ou nas fornalhas do Diabo.

Nunca acreditou nisso, e ainda conta com a possibilidade de um sonho ou alucinação. Seria uma peça pregada pelo inconsciente? Supondo um acontecimento de tal majestade, suas certezas serão pó, ultrapassadas, e dessa maneira passará à Eternidade como um equívoco. Nesse canavial metafísico, encontrará velhos amigos católicos, com cara solene e grave, sempre repetindo “eu não disse?” Ainda aturdido, ele verá os anjos, e adiante, antigas certezas a escorrer pelo Jordão ou outro curso d’água sagrado.

Chego aqui, com minhas explicações circulares, certo de não ter sido claro sobre o personagem em questão. Recapitulo, pois, alguns pontos acima, ou tento resumir, iniciativas pouco aceitáveis neste mundo da escrita, ainda com risco de provocar a interrupção da leitura. Adiante. As conjecturas de um cético confrontado com o sobrenatural poderiam dar um romance católico. O autor, recém convertido por forca de evidências, passa a descrever sua nova situação sob a linguagem típica de um cético cínico, como o Ivan Lessa reportando uma viagem ao Reino dos Céus. Ele permanece cético, de algum modo, cético na forma. Mesmo espantado, não quer um texto derramado, laudatório, exclamativo. Não, basta a conversão, já deu, agora é levar a vida diante de Deus, bem pertinho dele, como se estivesse com um novo roomate.

Tudo que pensou e pensava se refere ao ato de escrever, disse ele, em voz alta, diante do Senhor, e pouco importava se estava errado, antes, se conseguisse reproduzir seus anos de erro de forma atraente para o leitor. Ficção é ficção, não precisa se contentar com a nova ordem provocada pela prova inelutável da existência de Deus. Usaria a realidade como fantasia e seus tempos de incréu como realidade, e vice-versa, enveredando pela literatura fantástica, mas com armas da boa prosa.

Ocorre que o novo mundo não trouxe grandes surpresas. Com o tempo, passou a conviver com males terrenos, a indisposição física junto à impaciência, cansaço e ansiedade, remédios de laboratórios, quando poderia reivindicar um milagre.

O mundo revelado virou transtorno, e ali, na frente do Senhor, ele entregou os pontos, embora tudo fosse ainda uma hipótese.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Edifícios duros, mulheres macias e a cidade sem lei


Arquitetura e mulheres são as duas coisas mais interessantes que uma cidade pode oferecer ao visitante era o que anunciava o estranho cartaz pregado na estação, logo na chegada, alardeando a fama do município nesses dois itens, mulheres e arquitetura. Pode parecer mentira descer do trem e em seguida encontrar a poucos metros dos trilhos um manancial de cintilantes damas, jovens e mais velhas, todas elegantes, vestidas para uma festa, só que era um dia comum e elas sempre foram assim, como se estivessem num filme. Mais na frente, diante do táxi, ele também divisou os prédios, representando estilos de diversas eras arquitetônicas, com destaque para o que antigamente chamávamos de pós-moderno.

A primeira impressão persistiu por décadas. Edifícios duros, mulheres macias, céu azul, temperatura agradável, mas faltava algo, tinha certeza, era a própria cidade, faltando a si mesma, enfim, um ambiente falso. Ele chegou a pensar num cenário. Não seria tudo aquilo um imenso tapume desenhado, em 3D, iludindo os sentidos? Estava em seu destino, não sabia se de fato ou de alucinação, mas estava. Saiu da província natal por que estava difícil ficar num lugar onde algumas pessoas levam em conta a possibilidade de o judiciário ser injusto com elas. Muitos, no entanto, permaneceram lá. O comportamento desses animais acuados é feio, reticente, e diante de um enviado da majestade, agem num misto de intranquilidade e subserviência. Ele não aceitou aquilo, foi embora.

Mas estava estranho, sempre foi, e embora fosse estranho ele persistiu na Cidade das Mulheres por mais uns dias, e depois anos, sempre sentindo falta de alguma coisa – e excesso de outras. A comida contemporânea embalada a vácuo, por exemplo, quase não tinha gosto. O tempo passou rápido demais, meses pareciam semanas, e ele envelheceu sem conhecer direito as beldades desta terra e sem saber explicar porque elas se parecem tanto umas com as outras, do jeito de falar ao jeito de serem belas, tornando a própria beleza uma situação permanente e, com o passar dos dias, absolutamente tediosa.

Alguém a esperar um fecho e ele continuou perdido em sensações desagradáveis num universo desejado por uns setenta por cento da população masculina economicamente ativa. Havia homens, mas invisíveis, às vezes como nas cidades invisíveis. Eram insignificantes, coadjuvantes das mulheres mais lindas e frias do Planeta. Todas agiam como eficientes funcionárias, imperturbáveis com ensaiada amabilidade.

- O que o senhor deseja? – perguntavam sempre e reagiam sem espanto se ele dissesse, por exemplo, “sexo”. Imediatamente tudo seria providenciado, num esquema drive thru, e o novo morador poderia escolher qualquer uma delas, classificadas por tipo físico, especialidade e QI. No princípio teve espasmos feministas, não era possível uma mulher submeter-se a tamanha degradação. Com o tempo, no entanto, descobriu que os modos e costumes locais em nada se assemelhavam à antiga prostituição, não havia um drama moral envolvido com o serviço de sexo, pelo contrário, era uma vocação municipal, um negócio a disputar seu espaço com a arquitetura, também exercida por mulheres. Ele gostava das tenistas, uma fantasia antiga, mais pelas saínhas, subindo nos saques, coxa acima, porque o jogo em si ele achava chato. Até das tenistas ele enjoou. Também enjoou da permanente construção de novos prédios envidraçados e cheios de referências.

O arquiteto em seu delírio – sim, claro, ele é arquiteto – fazia flexões de dia e reflexões à noite, levando o quase sempre a pensar em sexo e arquitetura e o porquê de ter se enfastiado das duas razões de sua vida. Desejo por sexo não se sacia, nunca, e por isso a natureza dá um jeito de enfraquecer o sujeito na velhice para tentar aplacar a vontade. Ocorre que o cérebro do arquiteto, mesmo no final da vida, era povoado das mais intensas sensações de cunho sexual. Também estavam lá os edifícios que planejou e nunca foram construídos, ou seja, a paisagem lá fora era igual à paisagem interna. Poderia, neste caso, estar apenas pensando, sonhando ou alucinado por um segundo efeito retardado de todas as drogas que usou durante mais de 40 anos.

Não era provável. Seu passado, com fotos e poucos amigos, estava registrado nas duas cidades: a cidade sem lei, onde nasceu, e a das mulheres, onde se encontra, há muitos anos. Não compreendia porque rabiscou tantas plantas e só surgiam edificações desenhadas pelas arquitetas e por que recebia um alto salário para ver sua produção jogada no lixo. Havia conforto, dinheiro e saúde. O que faltava? Faltava alguma referência mais sólida de outros séculos, um prédio não reciclado, autêntico, como o Martinelli. No âmbito dos excessos, só aquela art decó misturada com futurismo, branco em toda parte e uma assepsia danada. Faltava ainda vida num sentido que ele só conhecera em sua cidade sem lei, na época que tinha alguma, onde cada dia era diferente, mesmo em relação às edificações e às mulheres.

Deu saudades da menina de mini-saia jeans e alpargatas, arrastando-se na praia, vendo a lua, conversando sobre coisas sobre as quais ele discordava, mas dizia que concordava porque ela falava de uma maneira muito linda, muito doce. Depois umas cervejinhas, a fuga para o apartamento de uma amiga, a noite mais bacana do mundo, cheia de aventuras e palpitações. Imagens e sensações retornando, aos poucos: a luz incidindo sobre ruas sem calçamento, o cheiro de suor de moreninhas brejeiras, maresia, casarões do século XIX, frutas tropicais, potes de doce...  

Aí ele acordou na cidade sem lei, mas tudo tinha acontecido de verdade.


terça-feira, 25 de setembro de 2012

Vida interior



Cidades pequenas me deixam angustiado, mas foi o jeito. Depois de vinte anos na capital, perdi o emprego, a mulher e o prumo. Um concurso público me trouxe para este vilarejo sem graça, contra a vontade, longe de tudo.  O pior não é isso. É o medo de virar uma pessoa típica do interior, orgulhosa de coisas pequenas, a construção do açude, por exemplo.  Só sente esse medo quem veio do interior, eu vim, por isso conto as horas, aliás, anos, para sair deste fim de mundo. As pessoas são boas, mas são boas porque são ingênuas. Não dá para conviver com tanta gente boa durante tanto tempo.

Para meu gosto metropolitano é extremamente desagradável encontrar, dias após dia, com Fulaninho da Farmácia e outros tipos, bem marcados por seu ofício, como deveria ser na idade Média. Só falta um Sicrano Ferreiro, como na Idade Média. Às três da tarde, saio da repartição para um café e lá encontro os mesmos assuntos, às vezes discutem sobre as qualidades da bicicleta de alguém ou a novela. Dá saudade de grandes ocorrências urbanas, acidentes do metrô, engarrafamentos gigantes, estréias da semana e café espresso. Aqui não tem espresso.

Dia e noite sonho com a volta. Pela TV vejo a cidade. Homens e mulheres de todas as partes do mundo em circulação frenética, imagens passando a um milhão, como a dos novos programas eleitorais, por vezes um skatista circulando entre engravatados. Nessas horas o que mais incomoda é não poder mais tratar essas coisas como rotineiras. Não, é um espetáculo, talvez o melhor da semana, cujo roteiro praticamente se resume a repartição-casa. Eu não tenha propriamente saudade. Sinto uma necessidade física de me reintegrar imediatamente ao meio do qual sai por puro acidente e de onde nunca deveria ter saído porque é contra a minha natureza.

Domingos e feriados são preenchidos com leituras e noticiários. Olho com inveja pessoas passeando no parque ou fazendo filas nos cinemas. Para completar o quadro há assaltos a bancos, greves, futebol, enfim, a vida. Aqui, ao contrário, é o silêncio do meio dia, apenas o tilintar distante de poucos talheres, nenhuma alma na rua. Depois vem a sesta e o expediente da tarde recomeça, enfim, por volta das quatro. Termina quando o sol se põe, instaurando novo silêncio, apenas o piscado das tevês. Ninguém vive de verdade, vive a vida de personagens das tramas urbanas, vive na TV.

Quando não estou praguejado baixinho, só em minha casa, estou pensando em cenários para minha vida. Vem a transferência, saio daqui, e trato a temporada neste buraco como a pior fase da minha vida. Mas existe outro lado, gritando mais alto, em que permaneço onde estou, resignado por inteiro, sem mais fios ligados à capital, e mais adiante perceberei que estar aqui é melhor, ou pelo menos igual, como deve ser estar em lugar nenhum, não faz a menor diferença ou faz toda a diferença do mundo. Nem pensar sobre isso me dá mais vontade, embora, lá no fundo, eu esteja imensamente acostumado e satisfeito com a situação.