quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Doralice





Numa tarde de abril de 1993, achei meio milhão de dólares numa lata de lixo. Eu era morador de rua. Pensei em entregar o pacote à polícia, diante da imprensa, e aparecer nos jornais e TVs como exemplo de honestidade. Matérias assim ganham algum destaque, e talvez a partir deste gesto nobre minha vida mudasse. Sonhava em viver como antes de ser varrido da sociedade por uma sucessão de erros: separação, pensão alimentícia, aluguel atrasado, alcoolismo, perda do emprego e por fim o despejo. Minha família sumiu.

Calculei o custo-benefício da operação e resolvi ficar com a grana. Foi uma análise fria, entre a culpa e o arrependimento. Fiquei com a culpa, bastante suportável porque não sabia de quem era o dinheiro. Bens materiais, nesses casos, servem mais do que elogios, e minha situação era materialmente dramática. Não consultei ninguém para tomar a decisão. Não tinha amigos nesse nível de intimidade e temia ser roubado por outros moradores de rua. Creio que nenhum deles contribuiria para meu drama ético. Dentro de mim, no entanto, houve um intenso debate – devolvo ou não devolvo? – e quando olhei para meus trapos vi como saída prática e aceitável ficar com as notas de dólares.

Troquei apenas cinqüenta, numa casa de câmbio, e tremendo de medo de alguém chamar a polícia. Não houve problemas e procurei ser discreto nos próximos passos. Comprei um par de camisas baratas, uma calça jeans e tomei banho. No mesmo dia aluguei um quarto numa pensão. O dólar estava nas alturas naquele tempo. Depois troquei mais, sempre aos pouquinhos, até assumir uma vida confortável em relação à minha vida anterior. Nunca mais cataria coisas no lixo. Mesmo assim, bem vestido, fui me consumindo pela culpa e só tinha algum consolo ao pensar que poderia estar sendo devastado pelo arrependimento.

Os dólares ficaram numa caixa, no guarda-roupa do quarto, e diante da dona da pensão assumi a postura de trabalhador, saindo toda manhã e só voltando à tarde, falsamente cansado. Gostava de andar por ai, sem destino, tomando uma cerveja em bares modestos e indo ao cinema. Fazia oito anos que não via um filme. Com dinheiro no bolso, podia ver uma média de dois filmes por dia. Era meu expediente.

Ocorre que o dinheiro muda as pessoas. Eu comecei a mudar. Primeiro um celular – um modelo com tampinha -, roupas de grife, bons restaurantes, jogos do Corinthians nas cadeiras numeradas. Troquei a pensão por um apart-hotel e comprei um carro de segunda no feirão dos automóveis. Fiz novos amigos bem situados na vida e virei um bom partido. Foi ai que conheci Doralice num restaurante a quilo e em poucos meses nos casamos.

Achei adequado ter uma família nesse processo de evolução patrimonial. O casamento durou um ano. Doralice gastava muito e depois descobri que ela tinha um amante. Separação litigiosa. Ela ficou com a casa. Não achei justo, mas entreguei o imóvel. Devia ter feito algum investimento; não fiz. Doralice conhecia minhas contas melhor do que eu. Doralice perdulária e traidora. Interesseira e canalha.  Amava Doralice mesmo assim. Sentia falta de seus gritinhos sacanas, seu olhar aceso, o jeito de encolher-se na cama e depois saltar sobre mim como um animal no cio. Sofri. Voltei a beber, o dinheiro acabou.

De volta às ruas. Mendigo com um terno bem cortado num saco plástico do Pão de Açúcar e um celular sem bateria. Instalado embaixo do viaduto, num acampamento estilo MST, reconheci os velhos rostos da miséria, mais velhos e mais sujos. Não me sentia tão mal. Estava livre da culpa.  Só pensava em Doralice.

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