Numa tarde de abril de 1993, achei meio
milhão de dólares numa lata de lixo. Eu era morador de rua. Pensei em entregar
o pacote à polícia, diante da imprensa, e aparecer nos jornais e TVs como
exemplo de honestidade. Matérias assim ganham algum destaque, e talvez a partir
deste gesto nobre minha vida mudasse. Sonhava em viver como antes de ser
varrido da sociedade por uma sucessão de erros: separação, pensão alimentícia,
aluguel atrasado, alcoolismo, perda do emprego e por fim o despejo. Minha
família sumiu.
Calculei o custo-benefício da operação e
resolvi ficar com a grana. Foi uma análise fria, entre a culpa e o
arrependimento. Fiquei com a culpa, bastante suportável porque não sabia de
quem era o dinheiro. Bens materiais, nesses casos, servem mais do que elogios,
e minha situação era materialmente dramática. Não consultei ninguém para tomar a
decisão. Não tinha amigos nesse nível de intimidade e temia ser roubado por
outros moradores de rua. Creio que nenhum deles contribuiria para meu drama
ético. Dentro de mim, no entanto, houve um intenso debate – devolvo ou não
devolvo? – e quando olhei para meus trapos vi como saída prática e aceitável
ficar com as notas de dólares.
Troquei apenas cinqüenta, numa casa de câmbio,
e tremendo de medo de alguém chamar a polícia. Não houve problemas e procurei
ser discreto nos próximos passos. Comprei um par de camisas baratas, uma calça
jeans e tomei banho. No mesmo dia aluguei um quarto numa pensão. O dólar estava
nas alturas naquele tempo. Depois troquei mais, sempre aos pouquinhos, até
assumir uma vida confortável em relação à minha vida anterior. Nunca mais
cataria coisas no lixo. Mesmo assim, bem vestido, fui me consumindo pela culpa
e só tinha algum consolo ao pensar que poderia estar sendo devastado pelo
arrependimento.
Os dólares ficaram numa caixa, no
guarda-roupa do quarto, e diante da dona da pensão assumi a postura de
trabalhador, saindo toda manhã e só voltando à tarde, falsamente cansado.
Gostava de andar por ai, sem destino, tomando uma cerveja em bares modestos e
indo ao cinema. Fazia oito anos que não via um filme. Com dinheiro no bolso,
podia ver uma média de dois filmes por dia. Era meu expediente.
Ocorre que o dinheiro muda as pessoas. Eu
comecei a mudar. Primeiro um celular – um modelo com tampinha -, roupas de
grife, bons restaurantes, jogos do Corinthians nas cadeiras numeradas. Troquei
a pensão por um apart-hotel e comprei um carro de segunda no feirão dos
automóveis. Fiz novos amigos bem situados na vida e virei um bom partido. Foi
ai que conheci Doralice num restaurante a quilo e em poucos meses nos casamos.
Achei adequado ter uma família nesse
processo de evolução patrimonial. O casamento durou um ano. Doralice gastava
muito e depois descobri que ela tinha um amante. Separação litigiosa. Ela ficou
com a casa. Não achei justo, mas entreguei o imóvel. Devia ter feito algum
investimento; não fiz. Doralice conhecia minhas contas melhor do que eu. Doralice
perdulária e traidora. Interesseira e canalha.
Amava Doralice mesmo assim. Sentia falta de seus gritinhos sacanas, seu
olhar aceso, o jeito de encolher-se na cama e depois saltar sobre mim como um
animal no cio. Sofri. Voltei a beber, o dinheiro acabou.
De volta às ruas. Mendigo com um terno bem
cortado num saco plástico do Pão de Açúcar e um celular sem bateria. Instalado
embaixo do viaduto, num acampamento estilo MST, reconheci os velhos rostos da
miséria, mais velhos e mais sujos. Não me sentia tão mal. Estava livre da culpa.
Só pensava em Doralice.
Um comentário:
que raiva!
Postar um comentário