sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

O envelope - Da série histórias com o mesmo final


A pobreza tem pernas curtas.  Quando mais pobres ficamos, maiores ficam as distâncias, menor a capacidade de chegar onde quer que seja. Empobreci. Antes ia de táxi, troquei por ônibus, hoje vou a pé. Tinha a cidade, sobrou o bairro. O universo dos ricos se expande como o universo de verdade; o dos pobres, encolhe.

Já estava entrando em desespero quando o telefone tocou: tenho um trabalho pra você, disse a voz do outro lado, uma pessoa que eu não conhecia, mas quem ligou estava a par da minha situação e provavelmente eu fora indicado por um ex-colega da agência da qual fui demitido. Pelo menos pensei assim na hora. Ele queria conversar a respeito do serviço, minha disponibilidade (total) e deixou bem claro que se tratava de algo sigiloso, segredo industrial ou coisa parecida, que é normal no mundo dos negócios. Na época, eu morava numa pensão, depois de passar por um hotel, uma quitinete e uma república de gente mais nova que não me deixava dormir. Assim que desliguei o telefone fui ao banheiro no final do corredor com uma toalha no pescoço e entrei na fila do banho. Antes de perder o emprego eu tinha uma casa de dois andares. Houve uma queda vagarosa e consistente.

Encontrei o homem no restaurante de um hotel de quatro estrelas e perguntei quem sugeriu o meu nome - ele respondeu que pegou o currículo na Internet.
- Como sabe que estou fudido?

- Pessoas fodidas distribuem currículos.

Também informou que o trabalho não era propriamente na minha área. Não sei fazer outra coisa a não ser texto publicitário, eu me adiantei, e ele garantiu que eu saberia fazer, pois era um serviço simples, de courrier. Eu tinha apenas que pegar um avião e levar documentos importantes para a sede da empresa, em Nova York.  Uma vez por mês, a dez mil reais a viagem, incluindo hospedagem e alimentação.
- Por que não manda pelo correio?  - perguntei ao homem.

- Tivemos problema com o correio – ele disse.

Minha primeira viagem foi tranquila. Era só um envelope, fino, bem colado, sem nada escrito. Levei apenas bagagem de mão. No Aeroporto John Kennedy, os funcionários revistaram minha bagagem, só encontraram uma muda de roupa e passei sem problemas pela imigração com o envelope debaixo do braço. Fiquei no hotel indicado, esperando pelo destinatário e ele chegou ainda pela manhã. Um homem de cabelo bem cortado, barba desenhada e vestido de terno, cujo desenho final lembrava um agente do FBI dos filmes. Ele pegou o envelope, me entregou dez mil em espécie e foi embora. Na segunda vez, a mesma coisa. À tarde, eu andava pela cidade, sem destino, comia num restaurante da Rua 47 e via filmes Jacques Riveti. De repente virei uma reação à minha própria certeza de que quanto mais pobres somos, mais pobre ficamos, e aderi a certo otimismo. De homem supérfluo, como diziam no século 19, passei a executivo bem-sucedido. Por uns segundos, eu esquecia o caráter do meu trabalho.  

Em dois meses eu estava com as contas em dia, dinheiro na poupança, mas um pouco intrigado. O que tinha dentro desses envelopes? Obviamente cheguei a pensar em drogas. Mas que droga seria tão fina a ponto de caber em um envelope e ainda capaz de compensar 10 mil reais só para transportá-la? Pensei até em espionagem, mas depois parei de pensar porque gosto de Nova York e estava gostando ainda mais de ganhar uma grana sem muito esforço, pois conseguia dormir em avião melhor do que dormia em casa, sonhando com meus problemas financeiros.

Na terceira vez, o cara da imigração se lembrava da minha cara. Fez um gesto enigmático, como se dissesse estou de olho em você. O que o desgraçado faria nesse vaivém mensal? – deve ter imaginado. Senti necessidade de explicar ao agente o escopo do meu trabalho, mas deixei de lado para não piorar a situação porque nem eu mesmo sabia o que estava fazendo. Daí surgiu a curiosidade mais intensa e no hotel olhei para o envelope, coloquei-o contra a luz, dei pequenas balançadas e nada sugeria o conteúdo. Vou abri, em pensei, e abri. O envelope estava vazio.

Qual foi a minha decisão: colar o envelope direitinho, entregar ao cara e não falar mais nisso. Durante dois anos fiquei nessa ponte aérea, muito satisfatória, compensadora em termos financeiros e culturais, até o dia em que o homem não apareceu mais com a encomenda.  

Só então voltei à minha curiosidade, agora sem riscos, sem as viagens, mas ainda sem emprego. Qual a razão de ser pago para levar um envelope vazio a Nova York todos os meses? De novo, levantei várias possibilidades. Talvez o conteúdo fosse infinitamente pequeno; quando descolei o papel, a coisinha microscópica pode ter fugido como um fio de pena transparente, quase infinitesimal. Outras hipóteses: uma espécie de filantropia, um anjo da guarda, uma pesquisa, uma promoção comercial.

Anos depois, ao olhar pela janela do ônibus, vi o homem dos envelopes, cabisbaixo, e desci no próximo ponto para tentar alcançá-lo. Alcancei. Pedi que fossemos a um bar, ali perto, para esclarecer a história. Mal sentamos, chegou uma moça que se identificou como filha dele. Contou que o pai tinha problemas psiquiátricos e que havia piorado depois que parou de me ajudar. A família, no entanto, não tinha mais condições de promover as viagens aos Estados Unidos. Mas ela queria ver o pai mais animado, pois o tratamento não estava dando resultado, apesar das doses cavalares de Haloperidol.


A moça abriu uma pasta, puxou um envelope e uma passagem para Curitiba. Dois mil por viagem. Eu aceitei. O homem sorriu. 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Memória do asfalto


A memória é fraca. Algumas começam a fraquejar no meio da velhice e morrem antes de seus donos; outras sobrevivem aos pedaços: situações vistas a vividas, nomes de personagens e datas se transformam em ondas perdidas no espaço. Por isso, algumas pessoas escrevem livros de reminiscências ou mantém uma agenda. Minha avó anotava tudo em papeizinhos e os colocava numa caixa de sapatos que ela se esquecia de consultar. A memória remota, no entanto, às vezes se preserva por mais tempo, talvez porque é a primeira impressão de um cérebro jovem e ainda cheio de espaço para armazenar lembranças. Ontem é um transtorno, mas o século passado surge brilhante e nítido, como o sangue escorrendo na principal rua da cidade, onde havia um matadouro de gado, enquanto onde Seu Augusto, meu vizinho, seguia para o grupo escolar.

Caixeiros viajantes, cassacos, ciganos e homens armados fumando cigarros Astória pareciam bem instalados na memória de seu Augusto, mas ele não tem registro do almoço do dia. “O que comi?” - pergunta de si para si e depois deixa de lado para ver-se com seus pensamentos da infância e juventude.

Quase sempre seu Augusto, o velho, é o jovem que observa os cassacos e seu trabalho escravo na construção da rodovia, trazendo o progresso e mais distração, conforme disse o prefeito – um senhor baixinho e simpático – e conforme disse o padre - alto, forte e alemão. Veio parar ali não se sabe como, mas a igreja tem recursos e condições de levar a palavra de Deus até mesmo aos cassacos, naquele fim de mundo onde a memória de Seu Augusto observa a estrada de rodagem ganhando asfalto e uma lagartixa percorrendo a traseira de um trator quebrado. “A lagartixa tinha um olhar condescendente e solidário”, observa seu Augusto em suas anotações para um livro de memórias.

A princípio Seu Augusto não falaria tanto de sua vida. Estava mais interessados na vida dos cassacos – trabalhadores eventuais e nômades da antiga Inspetoria de Obras Contra as Secas - e outros tipos da sua região do tempo, numa volta ao romance dos anos 30, como ele mesmo me contou. Já existe até um livro sobre com esse título, “Casacos”, de José Cordeiro de Andrade. Mas tudo bem, disse seu Augusto, eu só faço isso para não perder a memória.

Seu Augusto está bem situado em meados do século passado, quase outra era, quando parecia que o mundo estava sendo criado naquele momento e, tomando sua vida como referência, estava mesmo.  Vale a pena ver a animação de seu Augusto quando fala sobre Getúlio Vargas e programas de rádio, além de suas coisas cotidianas, sua visão do mundo a partir dos livros de Graciliano Ramos e das conversas na praça.  Com os dias de hoje, só dificuldade. Mesmo antes da doença, ele já não entendia a pressa dos acontecimentos. Também achava que ele próprio estava devagar ou, mais precisamente, havia uma conspiração do tempo – o de fora e o de dentro - contra seu final de existência.

Um de seus colegas da época de repartição, Gilvan Vieira Guedes, também escritor bissexto, deixou anotações sobre a vida difícil desses trabalhadores em uma pasta a que tive acesso porque ele é meu pai. O mesmo tom. Uma sociedade nascendo no Brasil pós-revolução de 30, embora Gilvan tenha desancado Getúlio, que não admirava por causa do governo autoritário. Mas o mundo nascia ali, perto do Rio Ipanema, numa cidade sertaneja calorenta de dia e fria à noite e onde algumas pessoas passavam fome e outras liam Émile Zola.

Os cassacos viviam em condições difíceis e carregavam suas redes para onde fossem. Não tinham qualquer documentação. Os contratados das obras contra as Secas, do Ministério de Viação e Obas Públicas, tinham salários, carteira assinada e também problemas.  Gilvan e seu Augusto liam Zola e se preocupavam com os cassacos. Só isso lhes dava a classificação de comunistas.

Anos mais tarde, em 1964, já casados, ambos tiveram que fugir para evitar a prisão. Entocaram-se numa fazenda de um expedicionário da FEB e ali por perto também encontraram cassacos. Um deles estava encolhido num canto, tremendo no calor, maleita, ele disse, mas parecia coisa mais grave. O homem foi melhorando aos poucos, depois de um uísque Cavalo branco, depois mais outra; só duas, porque era caro.

Seu Augusto achou o homem muito doente, talvez fosse Schistosoma, pensou naquela hora, pois a barriga estava inchada, e talvez fosse doença de Chagas, Trypanosoma cruzi, o bichinho do barbeiro, tão comum nas taipas onde os cassacos estendiam suas as redes. Um buraco no coração, sangue venoso e arterial se misturam numa pororoca venenosa, seguida de morte horrível, como se diz atualmente.

- Melhor chamar o doutor Fernando, que sabe do nosso esconderijo. Fernando é comunista mesmo, pelo menos votou no marechal Lott; soube que esteve na palestra de Octávio Brandão. Falar nisso você precisa ler “Canais e Lagoas”, o livro de Octávio. Quer dizer: ele não é só comunista; é escritor também.
 
- Não dá – disse Gilvan -. A gente só pode sair daqui quando tiver informações de João Farias, que conhece gente no exército. Isso tem cara que vai demorar até 65 ou mais.

Seu Augusto e Gilvan ficaram bebendo, em copinhos de ágata – primeiro uísque, depois cachaça -, e conversando com o cassaco, que preferiu a cuia. Tinha uma conversa aprumada e disse que já esteve em situação melhor, muito antes, na mesma repartição, quando chegou ao cargo de auxiliar de contabilidade, mas fora demitido a bem do serviço público por Augusto Pereira Lima, o próprio seu Augusto, na época em que ele foi diretor de pessoal, em Palmeira dos Índios.  Nenhum sabia do outro. Pouco se viram, na verdade, mas o caso trazia indícios contra o cassaco, ali no canto, se ajeitando. Sem provas, repetiu o homem, tornando a falar.

-Assinei o papel com um revólver engatilhado em minha cabeça – contou o cassaco. – Não fiquei com nada, nenhum tostão, caí na miséria depois daquela comissão de inquérito.

- Era o que me faltava: o Dreyfus do sertão!  - lamentou-se seu Augusto. Mas ele estava mesmo preocupado em ter levado um homem àquela situação, como presidente do inquérito administrativo, e encheu-se de culpa. Foi uma coisa bem marcante. A partir daí, seu Augusto começou a envelhecer e o que veio depois só não se perdeu por causa das anotações de Gilvan, datilografadas em duas vias, hoje quase sépia e parte comida pelas traças.

Gilvan morreu em 2015. Deixou escrito que ele e seu Augusto terminaram chamando Dr. Fernando, que levou o cassaco para o posto de puericultura. O problema era subnutrição. Ninguém foi preso, mas os dois tiveram que sair de Alagoas porque o departamento estava cheio de delatores do novo regime.  

Seu Augusto, quase 100 anos, mantém a memória como uma seta do tempo ao contrário, dos anos de 1960 aos anteriores, e dai revê a cara abismada do cassaco inocente, o sangue escorrendo na rua do comércio e o asfalto quente levantando fumaça. Lá no fundo das lembranças, as normalistas de Santana do Ipanema cantam boleros de Consuelo Velazquez.