A pobreza tem pernas curtas. Quando mais pobres ficamos, maiores ficam as
distâncias, menor a capacidade de chegar onde quer que seja. Empobreci. Antes
ia de táxi, troquei por ônibus, hoje vou a pé. Tinha a cidade, sobrou o bairro.
O universo dos ricos se expande como o universo de verdade; o dos pobres, encolhe.
Já estava entrando em desespero quando o
telefone tocou: tenho um trabalho pra você, disse a voz do outro lado, uma pessoa
que eu não conhecia, mas quem ligou estava a par da minha situação e
provavelmente eu fora indicado por um ex-colega da agência da qual fui demitido.
Pelo menos pensei assim na hora. Ele queria conversar a respeito do serviço,
minha disponibilidade (total) e deixou bem claro que se tratava de algo
sigiloso, segredo industrial ou coisa parecida, que é normal no mundo dos
negócios. Na época, eu morava numa pensão, depois de passar por um hotel, uma
quitinete e uma república de gente mais nova que não me deixava dormir. Assim
que desliguei o telefone fui ao banheiro no final do corredor com uma toalha no
pescoço e entrei na fila do banho. Antes de perder o emprego eu tinha uma casa
de dois andares. Houve uma queda vagarosa e consistente.
Encontrei o homem no restaurante de um
hotel de quatro estrelas e perguntei quem sugeriu o meu nome - ele respondeu
que pegou o currículo na Internet.
- Como sabe que estou fudido?
- Pessoas fodidas distribuem currículos.
Também informou que o trabalho não era
propriamente na minha área. Não sei fazer outra coisa a não ser texto
publicitário, eu me adiantei, e ele garantiu que eu saberia fazer, pois era um
serviço simples, de courrier. Eu tinha apenas que pegar um avião e levar
documentos importantes para a sede da empresa, em Nova York. Uma vez por mês, a dez mil reais a viagem,
incluindo hospedagem e alimentação.
- Por que não manda pelo correio? - perguntei ao homem.
- Tivemos problema com o correio – ele disse.
Minha primeira viagem foi tranquila. Era só
um envelope, fino, bem colado, sem nada escrito. Levei apenas bagagem de mão.
No Aeroporto John Kennedy, os funcionários revistaram minha bagagem, só
encontraram uma muda de roupa e passei sem problemas pela imigração com o
envelope debaixo do braço. Fiquei no hotel indicado, esperando pelo
destinatário e ele chegou ainda pela manhã. Um homem de cabelo bem cortado,
barba desenhada e vestido de terno, cujo desenho final lembrava um agente do
FBI dos filmes. Ele pegou o envelope, me entregou dez mil em espécie e foi
embora. Na segunda vez, a mesma coisa. À tarde, eu andava pela cidade, sem destino,
comia num restaurante da Rua 47 e via filmes Jacques Riveti. De repente virei
uma reação à minha própria certeza de que quanto mais pobres somos, mais pobre
ficamos, e aderi a certo otimismo. De homem supérfluo, como diziam no século
19, passei a executivo bem-sucedido. Por uns segundos, eu esquecia o caráter do
meu trabalho.
Em dois meses eu estava com as contas em
dia, dinheiro na poupança, mas um pouco intrigado. O que tinha dentro desses
envelopes? Obviamente cheguei a pensar em drogas. Mas que droga seria tão fina
a ponto de caber em um envelope e ainda capaz de compensar 10 mil reais só para
transportá-la? Pensei até em espionagem, mas depois parei de pensar porque
gosto de Nova York e estava gostando ainda mais de ganhar uma grana sem muito
esforço, pois conseguia dormir em avião melhor do que dormia em casa, sonhando
com meus problemas financeiros.
Na terceira vez, o cara da imigração se
lembrava da minha cara. Fez um gesto enigmático, como se dissesse estou de olho
em você. O que o desgraçado faria nesse vaivém mensal? – deve ter imaginado.
Senti necessidade de explicar ao agente o escopo do meu trabalho, mas deixei de
lado para não piorar a situação porque nem eu mesmo sabia o que estava fazendo.
Daí surgiu a curiosidade mais intensa e no hotel olhei para o envelope,
coloquei-o contra a luz, dei pequenas balançadas e nada sugeria o conteúdo. Vou
abri, em pensei, e abri. O envelope estava vazio.
Qual foi a minha decisão: colar o envelope direitinho,
entregar ao cara e não falar mais nisso. Durante dois anos fiquei nessa ponte
aérea, muito satisfatória, compensadora em termos financeiros e culturais, até
o dia em que o homem não apareceu mais com a encomenda.
Só então voltei à minha curiosidade, agora
sem riscos, sem as viagens, mas ainda sem emprego. Qual a razão de ser pago para
levar um envelope vazio a Nova York todos os meses? De novo, levantei várias
possibilidades. Talvez o conteúdo fosse infinitamente pequeno; quando descolei
o papel, a coisinha microscópica pode ter fugido como um fio de pena
transparente, quase infinitesimal. Outras hipóteses: uma espécie de
filantropia, um anjo da guarda, uma pesquisa, uma promoção comercial.
Anos depois, ao olhar pela janela do
ônibus, vi o homem dos envelopes, cabisbaixo, e desci no próximo ponto para
tentar alcançá-lo. Alcancei. Pedi que fossemos a um bar, ali perto, para
esclarecer a história. Mal sentamos, chegou uma moça que se identificou como
filha dele. Contou que o pai tinha problemas psiquiátricos e que havia piorado
depois que parou de me ajudar. A família, no entanto, não tinha mais condições
de promover as viagens aos Estados Unidos. Mas ela queria ver o pai mais
animado, pois o tratamento não estava dando resultado, apesar das doses
cavalares de Haloperidol.
A moça abriu uma pasta, puxou um envelope e
uma passagem para Curitiba. Dois mil por viagem. Eu aceitei. O homem sorriu.