“Primeiro inchou. Depois a pele dele ficou brilhante, mas quebradiça, como um leitão à pururuca - aparência crocante, escamas em formato de cheetos, creca de um corpo já passado dos setenta e coçava. Coçava e expelia uma nuvem de poeira, apesar dos cremes umectantes e dos banhos de óleo. Um dia ele caiu no banheiro e a cobertura quebrou-se, misturou-se à água, escorreu pelo ralo, dissolvida, uma sopa. Sobraram os órgãos internos, de aparência sadia, e uma cabeça em carne viva pedindo socorro. Chegaram a tempo de recolher o amontado – miúdos, músculos, a fáscia e o crânio, a rete mirabili, o osso occipital; a coluna solta, mexendo-se como duas centopeias entrelaçadas” (O cuidador).
Aquilo coube em uma caixa sem tampa – em cima, a cabeça; embaixo, o resto. Como manter viva tão intensa personalidade do nosso tempo? Houve sugestões, consultas a médicos, telefonemas para especialistas em diversas áreas. Por alguma razão, o homem não sentia dores, apenas incômodo e vergonha, pois estava mais nu do que nu, camadas a menos do nu. Pensava em terno e gravata, solenidades no Rotary, política e salvação da alma, caso contrário a vida não teria sentido. Ou teria? O homem que se preocupava com a imagem pública, descuidou-se da saúde. Por que não salvou a própria pele? Por que não deu atenção aos sintomas, muito raros, por sinal. Como exercitar a vaidade naquelas condições?
Pesava na morte, embora aquela consciência já fosse alguma coisa; não queria perdê-la, por enquanto. “Ainda sou eu”, disse ele a seu cuidador, em tom afirmativo, dentes simétricos no meio de um rosto em brasa. O cuidador acostumou-se “à forma da massa informe”, conforme escreveu anos depois, ao tornar-se escritor pouco lido e dado a jogos com palavras parecidas.
Todos os cuidados com a assepsia foram tomados para o homem sem crosta e misteriosamente sem hemorragias. Um quarto especial, refrigerado, inteiramente branco, sem janelas e projeções de imagens agradáveis na parede: infância num bairro aristocrático, colégio interno, formação em Direito, discursos, opúsculos, viagens a convite de ditadores latino-americanos. Uma retrospectiva ao estilo Facebook, intercalada com projeções de textos integralistas de Gustavo Barroso, Miguel Reale e Plínio Salgado.
O cuidador não perdia a paciência, não perdia nenhum detalhe (anotava), não perdia o senso de oportunidade. Nem mesmo diante de exigências de seu patrão, aos gritos:
- Quero uma tampa decente – ordenava o homem de cara desencapado, com esse tom pedante, enquanto imaginava uma saída. Era preciso fechar a caixa, com buracos para a entrada do ar e saída da voz. Ele precisava falar, expor suas qualidades internas de cristão injustamente condenado àquele destino ou àquele acaso. Assim foi feito. No lado externo da caixa, o sinal que lhe daria identidade a partir de então: ∑.
No entanto, ainda havia coisas a fazer e na ordem de preferências do homem em pedaços estava uma cadeira no Senado.
Desejo atendido por correligionários, curiosos e entidades de classe. Campanha difícil para um não intacto. Tudo pelas redes sociais: um pouco de sua história, uma candidatura a serviço da ordem e em nome de Deus. A situação em que se encontrava, com preocupações muito práticas – “cadê meu pulmão esquerdo?”, por exemplo -, não lhe tirava a carência por votos, segundo relato do cuidador num livro chamado “O Cuidador”.
Um dia o sistema das duas caixas deixaria de funcionar, mas haveria a posteridade, um nome eterno na lembrança de seus compatriotas, caso não houvesse outro lado, o paraíso com sua promessa de eternidade, ou um inferno cercado por uma tampa de quilômetros e quilômetros. O importante veio de um eleitorado disposto a mudar. O homem que não aparecia na TV teve seu drama exposto em pequenos textos nas redes, explicando que seu estado não o impedia de servir à pátria, a Deus e à família.