L. gosta daquele momento, o de escrever uma coisa e depois dizer
de si para si “que texto do caralho!”. Levanta-se da cadeira, volta, uma
segunda lida e a expressão de contentamento, enquanto a mulher prepara o café
solúvel. Três anos sem emprego e a vaidade continua intacta, mesmo quando a
mulher reclama de sua preguiça na hora de lavar os pratos ou varrer a
sala. Neste tempo ainda há anúncios
classificados no jornal. Ela: “Eu vi que
tem uma vaga de subeditor numa revista imobiliária". Jamais ele iria aceitar
aquilo, imóveis; queria o suplemento de cultura do maior jornal da cidade,
talvez do país, já ocupado por um jovem com doutorado em Yale.
-.-
L. sente a indireta com a história do emprego – pobre coitada,
pensa – e vai lá fora fumar um cigarro. Ela trabalha no tribunal, concursada, e
ele deixou de participar do orçamento assim que acabou o fundo de garantia.
Passa o dia escrevendo suas memórias romanceadas. Um dia ela se vê sozinha em
casa, abre o computador, lê um pedaço e acha aquilo uma merda. Acha também que
deveria ser mais clara, “olha, não vai dar etc.”, mas desiste porque não quer
afetar uma pessoa tão próxima, um casamento de vinte anos, mesmo um casamento
naquela fase em que cada um cuida de si. Apesar de tudo uma convivência a ser
preservada, como se L. fosse um animal doméstico. Baixa a tampa do laptop, um dos primeiros
desse modelo, e dá fim ao velório do texto - cheio de interjeições, frases de
efeito; as sacadas, como ele diz com frequência.
-.-
Uma sensação estranha persiste, a cronologia precária - a sensação de
que o tempo não passa como deveria. O agora parece esticado ao máximo e o que
deveria ter sido ainda é. O tecido em que
se encontra está parado; apenas se desloca no espaço, conforme ele supõe, baseado na Relatividade Geral. Sua mulher acha que L. precisa tomar remédio
para uma síndrome que viu na Internet, capaz de provocar esse efeito
indesejável, que é descobrir que o tempo é mesmo uma ilusão, e acostumar-se com
isso. Apenas deslocar-se no espaço. Nem ontem, nem amanhã.
-.-
L. só consegue escrever nas piores condições, como agora, diante
de tanto aperto no coração, apesar dos comprimidos. Mas só escrever não
funcionava. Queria ir à guerra, às últimas consequências, até descobrir que
estava mal acompanhado nessa empreitada. Pelo menos em termos militares. A
coragem brotou de uma vez na semana decisiva, em que o País poderia enveredar
por um caminho turbulento, ou por coisa muito pior, e ele estava deposto a
enfrentar o adversário em seu próprio campo. Mas a análise da situação, como
fazia no Diretório Estudantil, deu-lhe o bom senso de ficar calado e voltar aos
livros.
-.-
L. surpreendeu-se ao receber uma advertência das autoridades.
Queriam esclarecimentos sobre sua inadimplência com o erário de Salomão e mais
ainda sobre um artigo que escrevera para uma publicação semiclandestina,
classificado pelos censores do regime na categoria de “Contra Deus”. Tratava-se
de um pequeno ensaio sobre coisas antigas, como o Estado laico, mas o comitê
pentecostal não gostou. L. manteve a calma e ainda brincou consigo mesmo:
“finalmente Deus encontrou um adversário à altura”. Na manhã
seguinte, as seis em ponto, chegaram os Homens de Cristo, com seus fuzis
automáticos.
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