quarta-feira, 13 de maio de 2020

Confinamento




A dificuldade é não ter para onde ir nessas horas em que os espaços escolheram. Nem espaço existe mais em alguns lugares, que não são mais lugares, porque não há espaço, ex-lugares, por assim dizer, pois tinham nomes e pessoas dentro dele. Não tem mais nenhuma. Foram esmagadas até ficar nada. Reduzidos a uma lembrança, embora a lembrança também tenha se reduzido, a ponto de ficar como um lampejo. O que resta aqui? Um velho senhorio com seus lamentos sobre o próprio canto em que vive e que sobra. Dia e noite, suas palavras ocupam tudo. Não posso sair porque lá fora tudo diminui. Se ponho um pé na rua, encontro logo um obstáculo contagioso.  Um ar que não se respira direito, como tivesse densidade maior do que tem e que entra pelas narinas como algo pegajoso e aos gritos. O ar encolhe junto com a rua, devagar, mas sem intervalos, e grandes avenidas já são becos, e prédios foram pressionados contra o chão ou sumiram. Pode ter sido um sonho ou sintoma da doença.

Há outro “lá fora”, visto na TV, repetindo que está tudo em paz. Uma mulher corre com um cão no parque e sua respiração vaza no microfone de alta sensibilidade e ela ofega e ofega e diz coisas de si para si que não são muito boas. Mas um carro de música, circula, também só na tela, explicando que todos podem sair, enquanto outros fazem sinal de “não” com o dedo, por trás da repórter, e nos deixa assustados e indecisos. Nessas horas há uivos nas janelas, conversas aos berros sobre o que está acontecendo, mas às vezes é apenas uma versão; melhor esperar o pronunciamento oficial, que será feito às 20h, sobre a real situação, dimensão dos estragos etc.

Só que o homem vestido com uniforme de parada, a espada sobre a mesa, prefere fazer digressões sobre outros assuntos; seus tempos da cavalaria, infantaria e paraquedismo, que agora não existe mais porque as forças militares foram transformadas em guardadores de carros de luxo, cantores de marchas e desviadores da atenção. Disseram que falam sobre um fundo verde, em que é colocado um mundo unidimensional, inteiramente falso, em que aparecem o comércio aberto, cotias atravessando a rua e pessoas trabalhando em seus escritórios com rostos risonhos de atores.

Preferimos ficar uns dias sem tentar abrir a porta, pois seria deparar com a mesma gosma que cresce a cada dia ou só o espaço se comprimindo que torna sua textura mais grosa. O que dizem não combina com o aperto dos cômodos, as paredes que parecem se mexer em direção à mesa do centro, transformando grandes apartamentos em quitinetes e quartos em celas.

Novo amanhecer, novas sensações e delírios. O lado externo já estaria transformado em outro tipo de espaço, como o inferno de Joyce, uma prisão medonha, cujas paredes têm seis quilômetros de espessura e seus prisioneiros estão empilhados, enquanto o coral de tosse seca ecoa nas casas e a febre de todos aumenta a temperatura da cidade.