Está tudo pronto pra nada, ele disse, sem
mais, diante das coisas encaixotadas, velhos trastes de quarenta, cinquenta
anos. Contou. Era a trigésima mudança em meio século, sempre para lugares
piores, como a fase das quitinetes, em várias cidades, ou casas precárias,
vazamentos, barulho, mofo e desconforto. Só para ter um endereço. Agora, são os
pardais desafinados no começo da madrugada; sobre amanhã, ainda não sabe.
Tem sido assim. À medida que envelhece
ganha menos, os aluguéis sobem e não há fiadores nem comprovante de renda. O
próximo destino é o subúrbio – casa modesta, quarto e sala, vizinha à oficina
mecânica. Perdeu dinheiro, agilidade, a memória para o vocabulário, os amigos
bem situados e as mulheres. Quase não sai, embora mantenha uma agenda de
atividades a não serem cumpridas.
Faz tempo que lamúrias carecem de valor
literário porque na verdade não contêm imaginação – apenas reportagem do dia a
dia, narração linear, treinamento para evitar a loucura, ou cair dentro dela,
de vez. Banalidades copiadas em cadernos escolares, também embalados para a
mudança, amanhã, as oito, numa Van. Inventário: guarda-roupas, livros, um
pequeno sofá, colchão e álbuns de fotografia – “num deles apareço de índio”, me
conta. “Carnaval de 1967”.
Ele agora organiza o ambiente para dormir a
última noite neste ponto provisório. Afasta as caixas, se cobre com a colcha
sobre um colchão nu. Louco para pegar no sonho e sonhar.
O sonho: ainda não dá para saber o que estava
fazendo ali, naquele espaço, tentando entender, mergulhado em dúvidas, sem
saber como mover-me entre tantos obstáculos, pois esteve ali na frente e voltou,
tamanho o labirinto de equações sem respostas, coisas com nomes desconhecidos
em nossa língua e em outras que aprendeu. Para que servem? Não vê serventia
para cubos azulados e ocos, luzinhas de cores inclassificáveis, barulhos sem
nexo, cheiro de algo fora da lembrança. Gostaria de descrever as paredes, mas
não há paredes, embora esteja preso, buscando a saída. Não há saídas nem houve
entrada. Só um amontoado de objetos inúteis ou de utilidade desconhecida. Têm ou não têm peso? Flutuam e ele flutua
junto, só sebe disso.
Aquilo – ou isto - deixou-o exausto e mais
cansado ainda quando soube que o homem da Van não trouxe ajudante. Pegar no pesado,
agora, depois do sonho, daria fraqueza nas pernas e vontade de voltar à cama.
- Segura dum lado q’eu seguro do outro –
disse o homem da Van. Pensou em tudo, até em Sísifo e na inutilidade da mudança;
pensou na morte, arrastando o guarda-roupa em direção ao veículo.
Guarda-roupa-caixão, mais um ensaio de enterro, mais um salto no desconhecido.
Carregaram com tudo dentro, até o terno de procurar emprego e não achar.
Nova casa. Móveis enfim arrumados e cama
feita para o sonho das equações sem respostas.