sexta-feira, 27 de março de 2015

Narrador sem história


Desses cacos haveria de surgir uma história completa, cheia de personagens e paisagens distantes. Para facilitar, os escritos dispersos foram pregados numa parede da casa e todas as noites o autor fazia colagens, com fita durex, juntando pedaços encaixáveis num enredo único, cujo narrador seria um velho.

A princípio pensou numa história atual, mas o único lugar seguro era o passado. O passado, com todos os fantasmas, tem o atenuante de já ter ocorrido, e seja como foi já não causa as dores da expectativa, como a expectativa de cobrar um pênalti, por exemplo. O medo do medo já não existe.

O velho e o autor são a mesma pessoa, entrego logo, pois a parede era um mural de reminiscências. Sem contar que o velho foi concebido numa vida de isolamento, igual à dele, a maior parte do tempo num quarto escuro, alheio a notícias fresquinhas e apenas preocupado em dormir e sonhar e tomar remédio para dormir novamente. Sem contar a memória fraca para fatos recentes, também um traço comum. O velho procurava respostas para os temas de hoje, mas com frequência esquecia a pergunta e até o assunto. O autor era do mesmo jeito aos quarenta anos.

O autor acredita que o velho acumulou boas imagens de oitenta anos de vida, metade dela fictícia, sem perceber o quanto seu personagem é recolhido e carente de aventuras. Por isso, a narrativa não decola, pois ele e o velho gastam muito tempo tentando recuperar o fio da meada entre os vários fios soltos de incontáveis conversas soltas em madrugadas e, mais tarde, uma porção de pensamentos deixados de lado no século passado. O desânimo com a vida deixa o velho e seu autor paralisados, e assim os escritos escasseiam ou são jogados no lixo.

Há pelo menos uma ideia do livro. O velho contaria sua história até o presente, também o presente do autor, até perceber-se numa clínica de recuperação, cujo psiquiatra-chefe está deitado no divã e ele, o velho, sentado na poltrona, numa inversão de lugares muito estranha. O autor, porém, não gostou da imagem e jogou o velho num asilo de velhos. A mudança de planos teve outro motivo forte: o próprio autor esteve numa clínica de drogados e foi numa das internações que decidiu contar sua história por meio de um velho, numa autobiografia romanceada o suficiente para não deixar traços de autoficção, coisa muito condenada nos dias de hoje.

Falta apenas escrever o livro, por enquanto só uma ideia, e juntar os pedaços pregados na parede, quebra-cabeças com várias peças a menos.  O autor, no entanto, dá o romance como pronto e, pelo menos o velho, está prontíssimo, sempre a seu lado, sugerindo parágrafos inteiros, fazendo rememorações.  Desde a internação do autor, o velho não falta uma noite.




domingo, 15 de março de 2015

Notícias do futuro


Não há ligações com fatos passados ou presentes, pois estou lá na frente, mandando notícias e advertências, embora pouca coisa possa ser feita. Nem sei se estou vivo, agora, diante de você, ou se estou morto ou ainda vivo e morto ao mesmo tempo, conforme o gato de Schrödinger. Só para localizar: estou a uns anos além, mas desde já aviso que não há vantagens nisso. Pelo contrário. Eles passaram por cima do meu cadáver, há muito tempo, e passarão de novo, se for necessário, pois o Grande Templo que rege nosso mundo indica mais mortes – mesmo para os já mortos.  Não se trata de esmagar o espírito, em rituais solenes, como já fizeram, mas de triturar o que restou do corpo, em minúsculos pedaços, e assim por diante, até a última partícula invisível, quase insubstancial, cuja memória poderia guardar nossas lembranças e pensamentos e cuja aniquilação sucessiva talvez interrompa a trajetória de ideias e vontades não mais aceitas em nosso meio.

A nova ordem chegou, numa onda de sacrifícios humanos à moda antiga. Agora, rezamos por outra cartilha, cheia de proibições e regras, a começar da ciência, tornada prática ilegal e passível de punição, com a morte, e também as artes, à exceção dos hinos religiosos não polifônicos, foram banidos do território Nacional; enfim, todas essas questões de ordem estética e moral são tratadas em tribunais presididos por clérigos de costumes.

Muitos infiéis já morreram muitas vezes nas cerimônias de trituração, onde a morte se repete, num esfarelador de ossos, diante da família do morto. Não se pode mais, por exemplo, promover qualquer movimento do corpo e da mente para fins de prazer e conhecimento. Do esporte à masturbação, tudo é classificado com indigno aos olhos de Deus, assim como o carnaval e o ensino de história. Todas as imagens do seu tempo foram apagadas a bem da decência.


Mas há recantos discretos onde os altos mandatários dispõem do vasto cardápio de volúpia e da luxúria, incluindo-se nessas sessões a purgação do pecado com mais pecado, uma vez que os encontros servem para a abertura das chamadas porteiras do inferno, em que os homens de gravata invocam entidades claramente malignas, pelo menos para quem acredita em alguma coisa neste espetáculo deplorável do meu tempo de hoje e do seu tempo de amanha. Pensava-se que haveria o fim do mundo – eles mesmos anunciaram -, mas só houve uma inversão bizarra, um retorno à estaca zero.

terça-feira, 10 de março de 2015

Máquina de escrever



Quando a máquina chegou, bastava qualquer um ditar sua história e ela traduzia para o estilo literário escolhido, forma e conteúdo equilibrados, sem erro de digitação, gramática ou lógica. A primeira versão trouxe opções de romance, conto e crônica. Era só o começo. O novo modelo, lançado no ano seguinte, pôs à disposição dos novos escritores aplicativos para poesia, ensaio e peças de teatro, cada um com um amplo cardápio de linhas a serem seguidas, incluindo a linha ideológica, além de termo de adesão a determinadas fontes do pensamento ocidental.

Caso o usuário esgote sua cota de personagens reais, a máquina oferece um banco de personagens: sujeitos de nariz adunco, mulheres de olhar macilento, gordas patuscas, pobres, ricos, párias da sociedade, enfim um estoque que inclui protagonistas, oponentes e figurantes de qualquer origem, todos embalados com suas falas e ações minuciosamente descritas. No mesmo site, é possível adquirir um pano de fundo histórico, como sua rua (ver pelo CEP) ou a Rússia do século 19.

A Máquina, cheia de sensores e censores, pode sugerir mudanças no final ou em todo o texto, caso o usuário tenha dificuldade de expressar abstrações ou tenha vida uma vida chata, ruim para biografia. Também pode achar a história sem graça e salvá-la com um upgrade na forma e no detalhe, salpicando aqui e acolá alguns penduricalhos proustianos.  
A novidade causou grande impacto, mas trouxe contradições. O que parecia uma questão restrita ao mundo literário e a seus poucos leitores, logo se transformou num grande problema, inclusive no mundo digital. Todo mundo queria escrever sua obra e escrevia, causando uma inflação de títulos na praça e na nuvem, e dessa forma países inteiros passaram a ter mais autores do que leitores. Ninguém se dá ao trabalho de comprar o livro do outro, pois prefere o seu próprio, para reler e guardar como recordação.


Os escritores mais antigos, acostumados a fazer esse trabalho sozinhos, preferiram aposentar-se da literatura. Houve tentativas periféricas de voltar aos métodos antigos, sem a máquina, mas naufragaram. Perdia-se muito tempo para escrever um livro. Mas ainda há uma livraria artesanal, com clássicos do período pré-Máquina. Fica ao lado de um antiquário. 

sexta-feira, 6 de março de 2015

O poeta Nobre



Forças além de suas forças e forças ainda mais fortes são as que movem o poeta Alfredo Nobre em direção ao desconhecido, à nova poética da energia e da matéria, às coisas vindouras e à explicação sobre nossas existências, conforme ele mesmo escreveu em texto recente. Às vezes forçando a barra – às vezes nem tanto – ele parece em eterna propulsão, jorrando para mesas e plateias o resultado da dramática colisão de partículas criativas.

Nobre acha sua cabeça e seus processos merecedores de total divulgação e, por isso, a cada momento joga na roda uma frase-conceito, um haicai perfeito, um soneto liquefeito, além de outras rimas e não rimas capazes de mudar a literatura sobre a Terra. Para ele, algumas de suas manifestações conseguem resumir, alinhar e principalmente acrescentar muitas notas ao que passou e se passará, desde o rebuliço de aminoácidos que deram em vida até as questões tecnológicas de hoje.

Tornou-se comum achar-se que suas observações são de fato geniais, e embora tenha furos na lógica e passagens de pouca elegância formal, ainda assim, e mesmo com algumas frações piegas, o trabalho do Alfredo Nobre ecoa e se reproduz entre seu fiel e pequeno público.

Agora, ele está numa fase cósmica, tentando desvendar, poeticamente, alguns segredos do universo. O que existia antes do big-bang? Qual a possibilidade de outras dimensões? Os temas são panorâmicos, sem dúvidas, mas a solução poética não se aplica ao mundinho da Física. Seus leitores, no entanto, tratam as considerações de Nobre, em forma de versos ou não, como manifestação de ciência pura.
Eis, então, o personagem: sua mente está distante, nos confina do universo e da alma, esperando sempre um raio de inspiração capaz de lhe conceder o direito a uma teoria de tudo.

Incrivelmente, o poeta não é pedante, como se pôde transparecer. Ele acredita piamente no que fala, em voz alta, quando está bêbado ou sóbrio, e só desempenha o papel de profeta – e, com menos frequência, de Deus – por necessidade de transmitir ao próximo o conteúdo gerado em seu amplo espaço interior. Assim, espera espalhar uma poesia de luzes sobre este e outros mundo.
A nata desta cidade deu a Alfredo Nobre todas as insígnias literárias municipais, além de um emprego em que possa sustentar sua iluminação e gloria. 



quarta-feira, 4 de março de 2015

Redação (trechinho)






Recebi a notícia calmo como uma pedra. Já sabia dos cortes e sabia que estava no terceiro lugar da lista. Dispensaram quase metade do pessoal para acomodar o pessoal do novo diretor de redação, Pedro Naves. Nada a dever às mudanças de governo. Outro chefão, outra gente para preencher os cargos. A mulher dos Recursos Humanos parecia mais nervosa do que os demitidos e fez o discurso em voga na época, talvez ainda hoje, sobre possibilidades de recolocação, planejamento das contas, seguro de saúde e outras coisas que não tinham a menor importância naquele momento. Sairíamos dali para outra vida, expulsos do paraíso, de volta ao anonimato. No meu caso, a preocupação principal era passar um ano sem pensar em nada; um ano sabático bancado apenas com o dinheiro do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Depois disso pensaria no quê fazer.

A comunicação foi seca. Citaram razoes editorais, sem explicar quais, e vagamente uma nova etapa de tecnologia nas redações. Iriam para a rua, por exemplo, os antigos copidesques e alguns diagramadores que não se ajustaram ao desenho da página no computador. A maioria, porém, saiu porque pertencia ao antigo comando. Para mim e uns amigos próximos, freqüentadores do Bar Pelão, os motivos não foram explicitados, as restrições eram de ordem pessoal, talvez o abuso de álcool em certas situações de trabalho. Dos cortados, também estavam os bêbados na redação. Antes, um manto de deixa pra lá cobria o ambiente e poderíamos voltar no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Eu, por exemplo, pagava o mau comportamento com boas matérias, a maioria feita em lugares perdidos do mundo – onde eu poderia fazer as coisas do meu jeito e beber sem preocupações com a imagem.

Enquanto a mulher do RH nos conduzia para o inferno, com seus conselhos tirados de manuais corporativos, eu só pensava em sair dali, pegar um táxi e desaparecer na noite da cidade. Espremidos no corredor, aguardando sua vez de ouvir a mulher do RH, repórteres do baixo clero e editores executivos bem pagos se igualavam, como na morte. Planos. Uns iriam usar o saque do FGTS para investir ou comprar um apartamento. Outros cairiam nas assessorias de imprensa, quase sempre um fim de linha da vida de repórter. Na época em que apagávamos todos os releases do e-mail virar assessor de imprensa era como vender a alma ao diabo e, pior do que isso, deixar de ser jornalista. Para o RH tratava-se apenas de demissão de funcionários; o RH, ou gestão de pessoas, como a mulher preferia, não percebeu que muitos naquele corredor se sentiam como papas excomumangados.

Não sei por que não se dava o mesmo comigo. Eu me senti livre para pensar desse jeito em meu plano de dissipação, em minha perdição no mundo dos sentidos, em meu sumiço da cidade.

- Afinal, onde ele anda e será que está vivo? - perguntariam depois, como eu soube por meio de um único sujeito que sabia do meu paradeiro, Carlos Carneiro, um elo entre os demitidos e a redação.  Ele escapou por ser excessivamente discreto, redator calado e compenetrado. À noite, no entanto, era outra pessoa. Na verdade, não gostava muito do jornal. Gostava de beber e escrever contos.   

Outra fila surgiu, a do exame médico, enquanto eu pensava novamente em sair dali direto para um lugarejo qualquer, onde talvez abrisse uma farmácia ou um armarinho.

- Vida de jornalismo é cheia de altos e baixos – disse Fabio Lages, o ex-editor de economia, - Fosse num quartel- ele acrescentou - eu sairia daqui com a patente de general, salário inteirinho no fim do mês. Mas saio sem quase nada. Não há segurança trabalhista como há entre militares e funcionários públicos – disse ele, quase em tom de discurso. Lages, um ativo defensor da livre iniciativa em sua editoria, manifestava agora a disposição em engajar-se no sindicalismo e em publicações de esquerda, que eram poucas e pagavam mal.


Finalmente, a última assinatura, todos os papéis preenchidos, adeus a vinte anos de reportagem, e adeus às viagens internacionais e adeus às belas estagiarias. Nunca, em toda a história da imprensa uma publicação reuniu tantas moças bonitas e saudáveis. Elas foram poupadas pelo novo diretor de redação, que parecia mais atento às minissaias do que ao novo projeto editorial.  Seis meses depois, Naves seria preso por assassinar, com tiros pelas costas, uma colega de redação com a qual teve um caso amoroso. Mas isso é outra história. Peguei meu táxi e fui embora para sempre. 

segunda-feira, 2 de março de 2015

Preparando Ariel



Se for morrer mesmo, por favor, não me arme uma cena, Ariel. Todo mundo morre, querido, e é só uma vez. Então não estrague tudo, principalmente não chore; não grite que quer viver. Um homem da sua posição tem que partir de cabeça erguida. Eu sei, meu amor, estou falando no sentido figurado. Você não vai mais se levantar desta cama. Aliás, os últimos exames confirmaram: é aquilo mesmo e é grande. Portanto, Ariel, parta direitinho, sereno, sem escândalo. Pense em sua imagem, na posteridade; pense também na sua família, eu e seus filhos, Ariel. Queremos que nos deixe um legado, um exemplo, e a hora da morte é um momento único. Eu sei que é uma obviedade, querido, só estou reforçando: uma pessoa pública não pode se dar a certos luxos.

Contratei aquela menina da assessoria de imprensa. Quando a coisa piorar – e vai piorar -, ela cuidará da divulgação dos boletins médicos. Um de manha e outro à noite. O que você acha? Ela escreveu um obituário bacana. Posso ler? São duas paginas. Vou pedir para colocar mais alguma coisa sobre mim e as crianças, pois ficou apenas "deixa mulher e dois filhos". Também providenciei um bufê.

Se eu fosse você aproveitava esse tempinho para pensar nas ultimas palavras. É importante. Andei pesquisando na Internet. Muita gente ficou marcada pela frase final, o arremate, a cereja do bolo. Assim que o analgésico começar a fazer efeito você poderia dar uma trabalhadinha nisso. Gosto muito de aliterações. Deixe uma mensagem de otimismo para a humanidade. Algo nessa linha, Ariel; uma aposta nos que ficarão sem você, meu bem. Tem ainda o epitáfio. Pode ser uma frase irônica, engraçada, direta; é a sua cara. Falar nisso, pare com o mau humor. Daqui a pouco você tem visita.

O que me chateia, Ariel, é esse seu pânico da morte. Não é um negócio de outro mundo – para alguns, é, mas aí é outra história, e você é ateu. Quero dizer o seguinte: segure a onda e não mude de ideia. O povo detesta vira-casaca. Nada de ai meu Deus. Não pega bem para um intelectual de sua estatura. Outra coisa: se tiver algum segredo, conte logo. Nada de surpresas de última hora.

Enfim, Ariel, pense no evento pelo lado positivo. Eu sei que é difícil, mas faça um esforcinho. No final vai dar tudo certo, você vai ver. Eu sei, querido, você não vai ver. É só um jeito de dizer. Cadê sua capacidade de abstração, Ariel?