Desses cacos haveria de surgir uma história completa, cheia de
personagens e paisagens distantes. Para facilitar, os escritos dispersos foram
pregados numa parede da casa e todas as noites o autor fazia colagens, com fita
durex, juntando pedaços encaixáveis num enredo único, cujo narrador seria um
velho.
A princípio pensou numa história atual, mas o único lugar seguro
era o passado. O passado, com todos os fantasmas, tem o atenuante de já ter
ocorrido, e seja como foi já não causa as dores da expectativa, como a
expectativa de cobrar um pênalti, por exemplo. O medo do medo já não existe.
O velho e o autor são a mesma pessoa, entrego logo, pois a
parede era um mural de reminiscências. Sem contar que o velho foi concebido numa
vida de isolamento, igual à dele, a maior parte do tempo num quarto escuro,
alheio a notícias fresquinhas e apenas preocupado em dormir e sonhar e tomar
remédio para dormir novamente. Sem contar a memória fraca para fatos recentes,
também um traço comum. O velho procurava respostas para os temas de hoje, mas
com frequência esquecia a pergunta e até o assunto. O autor era do mesmo jeito
aos quarenta anos.
O autor acredita que o velho acumulou boas imagens de oitenta anos
de vida, metade dela fictícia, sem perceber o quanto seu personagem é recolhido
e carente de aventuras. Por isso, a narrativa não decola, pois ele e o velho
gastam muito tempo tentando recuperar o fio da meada entre os vários fios
soltos de incontáveis conversas soltas em madrugadas e, mais tarde, uma porção
de pensamentos deixados de lado no século passado. O desânimo com a vida deixa
o velho e seu autor paralisados, e assim os escritos escasseiam ou são jogados
no lixo.
Há pelo menos uma ideia do livro. O velho contaria sua história
até o presente, também o presente do autor, até perceber-se numa clínica de
recuperação, cujo psiquiatra-chefe está deitado no divã e ele, o velho, sentado
na poltrona, numa inversão de lugares muito estranha. O autor, porém, não
gostou da imagem e jogou o velho num asilo de velhos. A mudança de planos teve
outro motivo forte: o próprio autor
esteve numa clínica de drogados e foi numa das internações que decidiu contar
sua história por meio de um velho, numa autobiografia romanceada o suficiente
para não deixar traços de autoficção, coisa muito condenada nos dias de hoje.
Falta
apenas escrever o livro, por enquanto só uma ideia, e juntar os pedaços pregados na parede,
quebra-cabeças com várias peças a menos. O autor, no entanto, dá o romance como pronto
e, pelo menos o velho, está prontíssimo, sempre a seu lado, sugerindo
parágrafos inteiros, fazendo rememorações.
Desde a internação do autor, o velho não falta uma noite.