A
experiência já durava uns três meses mas ainda não produzira resultados satisfatórios, se é que
se esperava algum resultado. Seja como for, howsoever, como dizem por aqui, o
importante é explicar a intervenção estética, cujo procedimento principal
consiste em trancar uma pessoa num quarto, durante meio ano, e ela tem de sair
dali com um tratado reflexivo sobre o período, a ser julgado por conhecidos escritores. Tudo será filmado. O candidato pode optar por
um documentário sobre sua vida entre quatro paredes.
O
referido concurso literário recebeu inscrições de todo o País e, diante de tanta publicidade, tornou‐se uma espécie de
BBB dos intelectuais, como já existiu na França, se não me engano, e não deu
certo. Só sei que o primeiro a entrar no quarto ficou surpreso com
as comodidades: computador, TV a cabo, frigobar e uma pequena biblioteca
com os livros da patrocinadora do evento. Podia fumar e beber. Ele gostou
porque era basicamente assim que vivia, não saía do quarto, e de lá tocava tudo
virtualmente, inclusive sexo. O rapaz, escritor e blogueiro, ficou duplamente
satisfeito ao descobrir que a NET tinha todos os canais, inclusive os de sexo.
No
primeiro dia o sujeito tentou ler, mas preferiu a sessão da tarde. No segundo
dia, esperou ansioso pelo café das manhã (empurrado por baixo da porta). No
terceiro dia, jogou freecell. No quarto dia, masturbou-se duas vezes. No quinto
dia, masturbou-se duas vezes e fumou um baseado. No sexto dia, dormiu 16 horas. No sétimo dia lembrou-se que estava ali para
escrever um livro. Nesse ritmo completou um trismestre.
Continuou
assim, como não fosse com ele, e achava aquela vida bem interessante, tirando a
parte de escrever o livro, pois estava sem ideias nos últimos tempos, e gostava
de ficar de bobeira, vendo TV e mastigando alguma coisa. Ele lamentaria muito o
momento de deixar a experiência e o concurso porque aquele quarto era melhor do
que o seu.
Poucas
vezes pensou no livro. Quando pensava, vinham histórias já contadas e
ruminações em torno do vazio, essas merdas, e logo ele desistia, sem culpa,
abrindo uma cerveja ou acendendo um cigarro. Na volta de tais pensamentos, escolhia
ir levando. Não desse um romance, viria um conto, uma frase; tamanho não é
documento. Vivia cada instante sem muita preocupação com o prazos.
Então se
passaram os seis meses. O escritor blogueiro não tinha notícias de outros
quartos, onde a produção literária corria a mil e agora produzia resultados. Um
dos confinados escreveu um longo ensaio sobre a solidão. O hóspede do 21 tratou
da programação da TV como reflexo da realidade, e vice‐versa, e a moça do 17
completou seu romance sobre a depressão, mas teve que abandonar a experiência
por causa da depressão. Foi internada em uma clínica. Valia todas as modalidades literárias e o
momento de entregar o material estava chegando.
Aí, finalmente,
o escritor e blogueiro entrou em pânico. Em algumas horas teria de aprontar um
texto qualquer, mas sequer o tema havia chegado. Nada veio e não iria escrever
sobre a falta de assunto, que é muito manjado. Sem contar que falta de assunto,
no seu caso, era total. Naquele momento não dispunha de palavras, nenhuma, e a
tela continuava vazia; um documento salvo,
mas vazio. Sua pequena reputação estava em risco. Como seria bom mais
seis meses, ele pensou, com vergonha, mas não muita.
A saída
foi fazer um filme, como prevê o regulamento. Não que seja mais fácil fazer um
filme. Livro é até mais fácil porque só precisa de uma pessoa e pouco
equipamento. Não é isso. Sua ideia era filmar o quarto, por horas seguidas, até
o fim do concurso, e ir acrescentando às imagens o texto que fosse surgindo em
sua cabeça, por mais absurdo que parecesse, porque os críticos são cabreiros
com essas histórias sem nexo e ficam com medo de criticar. Enfim, só tinha um
jeito: o filme.
Pegou a
pequena câmera e começou com recordações da infância, tremores da adolescência
e o medo da velhice, os três capítulos de sua obra cinematográfica. O problema
é que os objetos focados – TV, privada, gavetas e outros objetos de cena do
quarto – nada tinham a ver com o que estava sendo dito. Mesmo assim ele foi em frente, entre a fé a ciência,
comentando conceitos filosóficos, cheio de pilares literários, e tudo
emaranhada com a história de sua vida e o com quarto no papel de mundo.
A
despedida foi dolorosa porque ele gostava muito da hospedagem. De qualquer
forma, pegaria um táxi e seguiria direto para seu próprio quarto, a poucos
quilômetros dali. Chegou em casa, caiu na cama e só acordou com um telefonema
do pessoal do concurso. O filme não existia como filme, disse o organizador;
existia como livro.
Como era
o único filme concorrente num concurso literário, os jurados tiveram a
curiosidade de vê‐lo assim que o último concorrente foi despachado. No meio de
imagens banais, depararam com um texto exuberante, densamente pensado,
meticulosamente concatenado, num ritmo perfeito, repleto de personagens
consistentes, situações tensas, cadência, descrições proustianas e cenas
épicas. Os responsáveis pelo concurso chegaram a duvidar do escritor e
blogueiro: será que ele já trouxe pronto? Para o bem do concurso, ficaram com a
versão de que ele realmente se empenhara e só deixava o computador para comer e
ir ao banheiro. O texto iria ser tirado filme e viraria um livro.
O
escritor e blogueiro desligou o telefone, ligou a TV e voltou a dormir.