sábado, 29 de março de 2014

A última sessão de cinema


A perda de equilíbrio e a queda. A cabeça bateu na torneira e o sangue escorreu no chão branco do banheiro. Final alvirrubro, tontura, escuridão e o início do filme com as memórias do quase morto. O coração parou de bater, os pulmões pararam de trabalhar, mas a projeção estava nítida, colorida e tinha letreiros, como no cinema dos vivos. Elenco enorme e lista de patrocinadores. Meryl Streep no papel da mamãe e direção e roteiro do próprio agonizante. Direção segura, diga‐se, apesar das condições desfavoráveis. Quem reclama das dificuldades para fazer cinema no Brasil não imagina o que é isso.

Duas horas compactadas em alguns segundos. A morte e seu poder de síntese. O autor estava gostando; só lamentava ser o único espectador. Pena não ter feito o filme enquanto estava vivo, pois diante de dele, ou hospedado nos últimos neurônios, estava um candidato ao Globo de Ouro ou pelo menos a um Kikito, em Gramado.

Deixou a história correr, em seu ritmo frenético, em seu processo lúcido e estruturado, conforme prevê Dr. Sam Parnia, da Universidade de Southampton, especializado nessas produções proporcionadas pela parada cardíaca. Só não apareceu o túnel com a luz branca e acolhedora. Não fez falta. Só a abertura, com música de Nino Rota, pagava o ingresso.

Nessas horas finais não dá para pedir socorro nem o autor estava interessado em interromper a sessão, mesmo se pudesse; queria ver sua obra transcorrendo fora do tempo e do corpo. Cenários magníficos, interpretações perfeitas, enredo encadeado. montagem vibrante, expressão máxima da produção independente. O único porém é que o filme acaba e depois só o escurinho do cinema para sempre. Sessão única. Merecia passar em outras salas, além daquela, intransferível, incorpórea, fora do circuito comercial.


Cinema é a maior diversão e também a última.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Recusa de editoras pode matar escritores


Ariosto escreveu um grande romance — eu li — e pretendia enviar os originais para uma grande editora. Não mande, eu disse, porque eles nem vão ler. Escrever livros hoje em dia não é mais um trabalho para escritores. A pessoa precisa ser conhecida por outra atividade - cantor, ator ou socialite, por exemplo - e você é anônimo e pobre.  Então, Ariosto, qualquer vidinha em evidência na mídia tem mais chances de sucesso do que sua pequena obra prima. A maioria dos editores trabalha com uma lógica peculiar do mercado. Basta frequentar livrarias de aeroporto para ver a indigência. Na Sodiler basicamente não existe literatura; só autobiografias de sub-celebridades, manuais de autoajuda, conselhos empresariais e outras merdas. Chamam a atenção picaretagens clássicas do tipo  Nietzsche para Estressados, Kafka para sobrecarregados e Oscar Wilde para inquietos. As editores imaginam que o leitor quer essas coisas e, por falta de opção, o leitor termina comprando.

Portando, Ariosto, não faça isso, não envie os manuscritos. Se você  assinar seu nome em Crime e Castigo eles vão responder com uma cartinha de recusa. É Praxe.

Expliquei a Ariosto que estou feliz com minha pequena editora, embora enfrente o problema da péssima distribuição, a má vontade das livrarias- especialmente da Saraiva - e o silêncio dos suplementos literários — os que restam. A imprensa mantém um convênio não escrito com as gigantes das letras. Editoras com menos de vinte títulos mensais não aparecem nas prateleiras nem saem nos jornais. O meu livro saiu porque tenho um amigo resenhista. Saiu uma vez, no lançamento, e pronto.

Mas seu caso, Ariosto, ainda está na fase inicial, a publicação do livro. Pois saiba que uma carta confirmando a publicação é coisa de filme americano, uma ocorrência tão ficcional quanto seu belo livro sobre São Paulo. Caso eu não consiga convencê-lo a não ter uma decepção  doída, como um amor perdido, leia A arte de Recusar um original, do canadense Camilien Roy. Nesse pequeno romance, tão próximo da realidade brasileira, um fictício aspirante a escritor tem seus manuscritos rejeitados por 99 editores. O autor quis mostrar que a publicação de um livro por uma editora "respeitável" é quase impossrta com o baixo astral. Prefereuferiu criar cartastort desistir, se matarrente outro problemaes sível para um desconhecido e as desculpas para  não editá -lo são padronizadas, esfarrapadas e às vezes com potencial para  fazer um autor mais sensível desistir de escrever, entrar em depressão profunda ou até se matar.

Quando a justificativa não é banal, igual a milhares, é agressiva e desrespeitosa. A maioria das editoras prefere o modelo padrão ("não se enquadra em nossa política editorial"), mas o tipo ofensivo também existe. Roy, no entanto, não flerta com o baixo astral. Prefere criar cartas com certo humor. São peças ficcionais, mas factíveis, como a cartinha que segue abaixo:


Não pretendo vexá-lo, mas seu manuscrito é ruim. É longo, tedioso banal e, ainda por cima, ninguém trepa nessa história. É nulo! Milhões de livros iguais a esse são publicados todos os anos. No que diz respeito à originalidade, a coisa está feia. Mas não se preocupe, o senhor acabará encontrando alguém para publicá-lo. Isso porque as pessoas entram nas livrarias e dizem: ‘Bom dia. Vou entrar de férias e gostaria de ler alguma coisa leve e agradável. O que o senhor me sugere?’ Então, sem recuar diante de qualquer baixaria para encher a caixa registradora, o livreiro empurra para o infeliz uma bobagem qualquer do tipo que o senhor escreveu. Romances para um fim de semana, rapidamente lidos, rapidamente esquecidos.   

Por isso, Ariosto, arrume outras companhias, crie maneiras novas de publicar, reze para São João Bosco, escreva suas linhas noutras paradas. Posso dar uma força. Estou pensando num livrinho em forma de bula™ de remédio, uma coletânea, para editar em gráfica rápida, papel fininho, fonte Paladino Linotype. Você poderia pensar numa historinha sobre efeitos colaterais. Eu cuido das reações adversas. Depois a gente se veste de homem-sanduíche e vende as bulinhas nas calçadas, por R$ 2,00.




Um conselho para as grandes editoras: se Ariosto mandar os originais, só respondam em caso de milagre; só respondam se forem publicar o livro. 

segunda-feira, 24 de março de 2014

Meu tio




Quando meu tio subiu as escadas com um tonel nas costas pensei em Maciste, o homem mais forte daquele tempo no cinema. Ambos pareciam ter saído de uma academia de ginástica, mas ainda não existiam academias de ginástica,  e se já existissem não estariam no fim de mundo onde eu passava as férias na minha infância. Meu tio era enorme e destemido. Um dia entrou em luta corporal com um touro, uns cinco minutos de vale tudo, e saiu da refrega com um leve ferimento no ombro. O boi foi morto. Noutra vez, numa briga de bar, enfrentou cinco pistoleiros no braço, deixando o estabelecimento quase demolido. Como nos filmes de hoje, um dos pistoleiros foi jogado contra a parede, desmanchou a barreira de tijolos e caiu tonto no salão de beleza, na casa vizinha.

Morando na cidade grande, achava a terra da minha avó, e do meu tio, muito mais interessante. O clima de faroeste sem os truques do cinema me deixava extasiado porque  eu só via faroeste no Cine Excelsior. Lia Faroeste. Adorava faroeste. As férias tinham tudo isso de forma crua, real e trágica. O cemitério era um amostra da situação de animosidade, quase sempre em torno de terras, política e mulheres.  Poucas mortes naturais. Num tour com o coveiro, entre sepulturas simples, descobri que os enterrados estiveram em conflito entre si, em algum momento da vida, transformando o Recanto da Saudade num símbolo de vingança. "Aquele matou aquele ", informou o coveiro, apontando para duas covas.

Nesse ambiente sempre tenso, gostava de sair com meu tio para vê-lo impor respeito por onde passava, mas também achava bom quando ele era encarado por uns forasteiros e devolvia o olhar  com o dobro de força, às vezes exibindo discretamente o revólver sob a camisa,  às vezes levantando a manga para mostrar o muque de Maciste. Meu tio também gostava de Maciste desde que meu avô trouxe para a cidade uma cópia de O Colosso da Arena,  dirigido por Michele Lupo, com Mark Forest no papel do herói mitológico. Pois meu tio entrava nesses bares, com cerveja quente, encenando o papel de um Hércules ou de um cowboy, dependendo da ocasião. Quando ele chegava, a reação usual era o silêncio pesado, como no saloon.

Meu tio era valente,  popular, temido, amado e semianalfabeto.  Era saudado na feira, desejado pelas mulheres,  bajulado pelos políticos.  Andava com ar  sério, cuidadoso para não abaixar a cabeça e sempre muitos passos na minha frente. Só mudava no carnaval, quando se vestia de mulher, enchia a cara e seguia o carrinho de mão,  o primeiro trio elétrico do Brasil, criado por meu avô.  O carrinho levava um rádio, sintonizado numa emissora de Pernambuco e era alimentado por uma bateria de carro. O povo seguia atrás do frevo e meu tio fazia trejeitos de Rita  Hayworth, embora parecesse mais com Tony Curtis, em Quando quente melhor.  Passava o tempo todo soltando beijinhos no ar, enquanto as pessoas nas calçadas acenavam com a mão,  contendo o riso,  e as ´moças se agitavam de um jeitinho bem anos 60, como fãs dos Beatles, lindamente histéricas.  



Quando os negócios começaram a afundar, na pequena fazenda,  ele resolveu sair candidato a vereador. Foi eleito e não apenas isso. Começou a levar o mandato a sério, obrigando seus pares a seguir o exemplo, seja por bem ou por mal.  A primeira providência foi investigar as contas do prefeito, afilhado do governador, porque a casa do chefe do executivo era maior do que a sede da prefeitura.   Uma comissão da capital veio para uma investigar e em pouco tempo concluiu que a casa não era grande; a prefeitura é que era pequena.  Meu tio foi cassado e processado por calúnia. Reagiu a seu modo: partiu para cima da mesa diretora, esmurrou o presidente da Casa e passou a quebrar todos os móveis e equipamentos que via pela frente. Os quadros dos expresidentes do legislativo municipal foram rasgados a faca e meu só foi segurado quando o efetivo local conseguiu reforços de um  destacamento da cidade mais próxima.

Meu tio se deu mal.  Não entendia o funcionamento da oligarquia, não conseguia ler os requerimentos, tinha um péssimo assessor — bêbado criador de curiôs — e terminou o mandato cheio de problemas de saúde, dívidas com advogados e ameaças de morte.

Nesse tempo eu já não passava as férias no povoado e estava com outras preocupações. Soube dessas histórias por minha mãe, quando as lembranças do meu tio já eram apenas curiosidades da família, pois eu passei a detestar violência, não gostava mais de faroeste e  achava o lugar do meus parentes uma terra sem lei, desviada da civilização.  


Só voltei lá depois de adulto, depois dos trinta,  e a cidade tinha encolhido, pelo menos relação ao meu olhar de criança. O bar da briga era  apenas um buraco na parede, com tres mesinhas dentro, e  a cabeleireira tinha passado seu ponto para uma banca de serviços variados — cartões de telefone, jogo do bicho e pequena agiotagem. Meu tio foi o que mais encolheu. Estava na cama, encarquilhado, magro como Wilson Grey, mas ainda  lúcido para  recordar suas proezas: a briga com o boi, bares destroçados, duelos ao meio dia; histórias que hoje nem sei se aconteceram desse jeito ou se misturaram em minha cabeça com cenas de faroeste e de Maciste.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Concurso literário entre quatro paredes




A experiência já durava uns três meses mas ainda não  produzira resultados satisfatórios, se é que se esperava algum resultado. Seja como for, howsoever, como dizem por aqui, o importante é explicar a intervenção estética, cujo procedimento principal consiste em trancar uma pessoa num quarto, durante meio ano, e ela tem de sair dali com um tratado reflexivo sobre o período, a ser julgado por conhecidos escritores.  Tudo será filmado. O candidato pode optar por um documentário sobre sua vida entre quatro paredes.

O referido concurso literário recebeu inscrições de todo o País e, diante de  tanta publicidade, tornou‐se uma espécie de BBB dos intelectuais, como já existiu na França, se não me engano, e não deu certo. Só sei que o primeiro a entrar no quarto ficou  surpreso com  as comodidades: computador, TV a cabo, frigobar e uma pequena biblioteca com os livros da patrocinadora do evento. Podia fumar e beber. Ele gostou porque era basicamente assim que vivia, não saía do quarto, e de lá tocava tudo virtualmente, inclusive sexo. O rapaz, escritor e blogueiro, ficou duplamente satisfeito ao descobrir que a NET tinha todos os canais, inclusive os de sexo.

No primeiro dia o sujeito tentou ler, mas preferiu a sessão da tarde. No segundo dia, esperou ansioso pelo café das manhã (empurrado por baixo da porta). No terceiro dia, jogou freecell. No quarto dia, masturbou-se duas vezes. No quinto dia, masturbou-se duas vezes e fumou um baseado. No sexto dia,  dormiu 16 horas.  No sétimo dia lembrou-se que estava ali para escrever um livro. Nesse ritmo completou um trismestre.

Continuou assim, como não fosse com ele, e achava aquela vida bem interessante, tirando a parte de escrever o livro, pois estava sem ideias nos últimos tempos, e gostava de ficar de bobeira, vendo TV e mastigando alguma coisa. Ele lamentaria muito o momento de deixar a experiência e o concurso porque aquele quarto era melhor do que o seu.

Poucas vezes pensou no livro. Quando pensava, vinham histórias já contadas e ruminações em torno do vazio, essas merdas, e logo ele desistia, sem culpa, abrindo uma cerveja ou acendendo um cigarro. Na volta de tais pensamentos, escolhia ir levando. Não desse um romance, viria um conto, uma frase; tamanho não é documento. Vivia cada instante sem muita preocupação com o prazos.



Então se passaram os seis meses. O escritor blogueiro não tinha notícias de outros quartos, onde a produção literária corria a mil e agora produzia resultados. Um dos confinados escreveu um longo ensaio sobre a solidão. O hóspede do 21 tratou da programação da TV como reflexo da realidade, e vice‐versa, e a moça do 17 completou seu romance sobre a depressão, mas teve que abandonar a experiência por causa da depressão. Foi internada em uma clínica.  Valia todas as modalidades literárias e o momento de entregar o material estava chegando.

Aí, finalmente, o escritor e blogueiro entrou em pânico. Em algumas horas teria de aprontar um texto qualquer, mas sequer o tema havia chegado. Nada veio e não iria escrever sobre a falta de assunto, que é muito manjado. Sem contar que falta de assunto, no seu caso, era total. Naquele momento não dispunha de palavras, nenhuma, e a tela continuava vazia; um documento salvo,  mas vazio. Sua pequena reputação estava em risco. Como seria bom mais seis meses, ele pensou, com vergonha, mas não muita.

A saída foi fazer um filme, como prevê o regulamento. Não que seja mais fácil fazer um filme. Livro é até mais fácil porque só precisa de uma pessoa e pouco equipamento. Não é isso. Sua ideia era filmar o quarto, por horas seguidas, até o fim do concurso, e ir acrescentando às imagens o texto que fosse surgindo em sua cabeça, por mais absurdo que parecesse, porque os críticos são cabreiros com essas histórias sem nexo e ficam com medo de criticar. Enfim, só tinha um jeito: o  filme.


Pegou a pequena câmera e começou com recordações da infância, tremores da adolescência e o medo da velhice, os três capítulos de sua obra cinematográfica. O problema é que os objetos focados – TV, privada, gavetas e outros objetos de cena do quarto – nada tinham a ver com o que estava sendo dito. Mesmo assim  ele foi em frente, entre a fé a ciência, comentando conceitos filosóficos, cheio de pilares literários, e tudo emaranhada com a história de sua vida e o com quarto no papel de mundo.

A despedida foi dolorosa porque ele gostava muito da hospedagem. De qualquer forma, pegaria um táxi e seguiria direto para seu próprio quarto, a poucos quilômetros dali. Chegou em casa, caiu na cama e só acordou com um telefonema do pessoal do concurso. O filme não existia como filme, disse o organizador; existia como livro.

Como era o único filme concorrente num concurso literário, os jurados tiveram a curiosidade de vê‐lo assim que o último concorrente foi despachado. No meio de imagens banais, depararam com um texto exuberante, densamente pensado, meticulosamente concatenado, num ritmo perfeito, repleto de personagens consistentes, situações tensas, cadência, descrições proustianas e cenas épicas. Os responsáveis pelo concurso chegaram a duvidar do escritor e blogueiro: será que ele já trouxe pronto? Para o bem do concurso, ficaram com a versão de que ele realmente se empenhara e só deixava o computador para comer e ir ao banheiro. O texto iria ser tirado filme e viraria um livro.


O escritor e blogueiro desligou o telefone, ligou a TV e voltou a dormir.

terça-feira, 18 de março de 2014

Cem anos é quase nada



Meu avô viveu até os cem anos e achou pouco. Passa rápido, contou ele, aos noventa e tantos, enquanto sentia a morte como um erro da evolução, mesmo para um centenário, e começou a encontrar razões para o medo de desaparecer e o próprio sentido da existência. Para meu avô era preferível não estar lúcido porque a lucidez leva a sofrimentos desnecessários. Mergulhar no nada, de uma hora para outra, não estava em seus planos nem nos planos de Deus. Meu avô era ateu.

O velho se agastava com as referências à morte. Bastava ver os índices de expectativa de vida, na época 70 anos, para dizer que aquilo era uma sentença de morte, a estatística apontando para um multidão de pacientes terminais, um ultimato. Fosse superticioso, trataria aquilo como agouro do IBGE. Não pense nisso, diziam, mas desde a infância meu avô só pensava nisso. O pior não tinha a quem recorrer.


Pouco antes de embarcar de vez, meu avô começou a ter delírios:

- O que vem agora? - perguntou meu avô morto na porta do purgatório, talvez um pouco surpreso por encontrar as coisas lá em cima do jeito que estão no catecismo. O local era catolicicíssimo, mas meu avô não aparentava estado de graça, como deveria ser nessa etapa de purificação da alma. Abandonara a religião e a fé e agora lidava com o oposto de suas ideias ateístas. Ou nem tanto. Ali, na vida eterna ou coisa parecida, perguntou a um transeunte alado onde estava Deus. O homem respondeu que naquele território e situação, naquele tempo e naquele espaço, as dúvidas persistiam.