terça-feira, 18 de março de 2014

Cem anos é quase nada



Meu avô viveu até os cem anos e achou pouco. Passa rápido, contou ele, aos noventa e tantos, enquanto sentia a morte como um erro da evolução, mesmo para um centenário, e começou a encontrar razões para o medo de desaparecer e o próprio sentido da existência. Para meu avô era preferível não estar lúcido porque a lucidez leva a sofrimentos desnecessários. Mergulhar no nada, de uma hora para outra, não estava em seus planos nem nos planos de Deus. Meu avô era ateu.

O velho se agastava com as referências à morte. Bastava ver os índices de expectativa de vida, na época 70 anos, para dizer que aquilo era uma sentença de morte, a estatística apontando para um multidão de pacientes terminais, um ultimato. Fosse superticioso, trataria aquilo como agouro do IBGE. Não pense nisso, diziam, mas desde a infância meu avô só pensava nisso. O pior não tinha a quem recorrer.


Pouco antes de embarcar de vez, meu avô começou a ter delírios:

- O que vem agora? - perguntou meu avô morto na porta do purgatório, talvez um pouco surpreso por encontrar as coisas lá em cima do jeito que estão no catecismo. O local era catolicicíssimo, mas meu avô não aparentava estado de graça, como deveria ser nessa etapa de purificação da alma. Abandonara a religião e a fé e agora lidava com o oposto de suas ideias ateístas. Ou nem tanto. Ali, na vida eterna ou coisa parecida, perguntou a um transeunte alado onde estava Deus. O homem respondeu que naquele território e situação, naquele tempo e naquele espaço, as dúvidas persistiam.




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