Por que desaparecer assim, sem mais nem
menos, à francesa, pelos fundos, num dia normal, terça, enquanto eu fazia
planos? Viagem pelo Estreito de Bósforo, duas semanas, lua de mel em Türkiye,
como está em sua tese. Ela saiu com o vestido comprado na Benedito Calixto, uma
pequena mala e uma caixa de livros. O táxi era um Celta de três portas, movido
a etanol, motor VHC, cinco marchas. Sei todos os detalhes, fiquei olhando; só
não sei o motivo.
Seu jeito era o de ficar para sempre.
Dominava os espaços da casa, cada coisa em sua lugar, nada se perdia. À noite,
tínhamos apetide na mesa e, mais tarde, na cama, tínhamos sexo de total
entedimento e carinho mútuo, preocupação com o outro e minha consciência
deslizava para sua nessas horas. Havia ainda o lado da identificação intelectual,
comunhão de corpos e de bibliografia. Ambos estávamos envolvidos no entedimento
da mente humana. Agora eu não entendo mais nada.
Ainda é cedo para especular – ou muito
tarde, eu nao sei –, mas apesar disso não me sai da cabeça uma série de suposições,
todos subjetivas, pois ela pode ter concluído algo, no fundo de suas
concepções, capaz de levá-la a outro caminho. Creio também que a alternativa
teórica pode encobrir uma situação mais banal e não menos aterrorizante:
conheceu outro cara. Não. A lealdade
entre nós era sólida, sua vida era transcedente e prática ao mesmo tempo. Uma
casa, um carro e longas noites discutindo Spinoza. Seus olhos brilhavam. Ela
queria aquilo e tinha aquilo às suas mãos. Parecia não almejar nada além do
nosso ambiente de bons amigos, bons vinhos, boas conversas. Às vezes vinha
emocionada a meu encontro porque havia achado uma ideia, um conceito ou uma
frase. Eu fazia o mesmo.
Não vivíamos de afazeres domésticos, cálculo
de contas a pagar e não havia filhos. A divisão de tarefas conbsistia em trocar
impressões de leitura. Um dia antes de sua partida, eu lia a Apresentação
de Sacher-Masoch, de Deleuze, e
ela enchia de comentários A hermenêutica
do sujeito, de Foucault. Concordávamos em quase tudo e as divergências,
pontuais, sobre A Genealogia da Moral, por
exemplo, terminavam por tornar nossas
trepadas ainda mais efusivas.
Não preciso dizer que jamais conheci uma
mulher igual a ela. Todas as outras pareciam superficiais e mesmo as lindas,
algumas alunas, perdiam o viço depois do sexo e de algumas considerações sobre
pretensos filósofos brasileiros, desses de jornal. Com ela era diferente. Nossa
cumplicidade no meio acadêmico servia para comparações exgeradas, Sarte-Simone
com fidelidade±, chegaram até a falar isso.
Minha conclusão provisória, ainda movida por
forte interferência da emoção, sugere algo mais suspenso, presente na alma de
algumas mulheres especiais. Elas entram no mundo com alegria, enfeitam ele de
encanto, mas depois param para pensar como tudo é tão pouco.
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