quinta-feira, 20 de março de 2014

Concurso literário entre quatro paredes




A experiência já durava uns três meses mas ainda não  produzira resultados satisfatórios, se é que se esperava algum resultado. Seja como for, howsoever, como dizem por aqui, o importante é explicar a intervenção estética, cujo procedimento principal consiste em trancar uma pessoa num quarto, durante meio ano, e ela tem de sair dali com um tratado reflexivo sobre o período, a ser julgado por conhecidos escritores.  Tudo será filmado. O candidato pode optar por um documentário sobre sua vida entre quatro paredes.

O referido concurso literário recebeu inscrições de todo o País e, diante de  tanta publicidade, tornou‐se uma espécie de BBB dos intelectuais, como já existiu na França, se não me engano, e não deu certo. Só sei que o primeiro a entrar no quarto ficou  surpreso com  as comodidades: computador, TV a cabo, frigobar e uma pequena biblioteca com os livros da patrocinadora do evento. Podia fumar e beber. Ele gostou porque era basicamente assim que vivia, não saía do quarto, e de lá tocava tudo virtualmente, inclusive sexo. O rapaz, escritor e blogueiro, ficou duplamente satisfeito ao descobrir que a NET tinha todos os canais, inclusive os de sexo.

No primeiro dia o sujeito tentou ler, mas preferiu a sessão da tarde. No segundo dia, esperou ansioso pelo café das manhã (empurrado por baixo da porta). No terceiro dia, jogou freecell. No quarto dia, masturbou-se duas vezes. No quinto dia, masturbou-se duas vezes e fumou um baseado. No sexto dia,  dormiu 16 horas.  No sétimo dia lembrou-se que estava ali para escrever um livro. Nesse ritmo completou um trismestre.

Continuou assim, como não fosse com ele, e achava aquela vida bem interessante, tirando a parte de escrever o livro, pois estava sem ideias nos últimos tempos, e gostava de ficar de bobeira, vendo TV e mastigando alguma coisa. Ele lamentaria muito o momento de deixar a experiência e o concurso porque aquele quarto era melhor do que o seu.

Poucas vezes pensou no livro. Quando pensava, vinham histórias já contadas e ruminações em torno do vazio, essas merdas, e logo ele desistia, sem culpa, abrindo uma cerveja ou acendendo um cigarro. Na volta de tais pensamentos, escolhia ir levando. Não desse um romance, viria um conto, uma frase; tamanho não é documento. Vivia cada instante sem muita preocupação com o prazos.



Então se passaram os seis meses. O escritor blogueiro não tinha notícias de outros quartos, onde a produção literária corria a mil e agora produzia resultados. Um dos confinados escreveu um longo ensaio sobre a solidão. O hóspede do 21 tratou da programação da TV como reflexo da realidade, e vice‐versa, e a moça do 17 completou seu romance sobre a depressão, mas teve que abandonar a experiência por causa da depressão. Foi internada em uma clínica.  Valia todas as modalidades literárias e o momento de entregar o material estava chegando.

Aí, finalmente, o escritor e blogueiro entrou em pânico. Em algumas horas teria de aprontar um texto qualquer, mas sequer o tema havia chegado. Nada veio e não iria escrever sobre a falta de assunto, que é muito manjado. Sem contar que falta de assunto, no seu caso, era total. Naquele momento não dispunha de palavras, nenhuma, e a tela continuava vazia; um documento salvo,  mas vazio. Sua pequena reputação estava em risco. Como seria bom mais seis meses, ele pensou, com vergonha, mas não muita.

A saída foi fazer um filme, como prevê o regulamento. Não que seja mais fácil fazer um filme. Livro é até mais fácil porque só precisa de uma pessoa e pouco equipamento. Não é isso. Sua ideia era filmar o quarto, por horas seguidas, até o fim do concurso, e ir acrescentando às imagens o texto que fosse surgindo em sua cabeça, por mais absurdo que parecesse, porque os críticos são cabreiros com essas histórias sem nexo e ficam com medo de criticar. Enfim, só tinha um jeito: o  filme.


Pegou a pequena câmera e começou com recordações da infância, tremores da adolescência e o medo da velhice, os três capítulos de sua obra cinematográfica. O problema é que os objetos focados – TV, privada, gavetas e outros objetos de cena do quarto – nada tinham a ver com o que estava sendo dito. Mesmo assim  ele foi em frente, entre a fé a ciência, comentando conceitos filosóficos, cheio de pilares literários, e tudo emaranhada com a história de sua vida e o com quarto no papel de mundo.

A despedida foi dolorosa porque ele gostava muito da hospedagem. De qualquer forma, pegaria um táxi e seguiria direto para seu próprio quarto, a poucos quilômetros dali. Chegou em casa, caiu na cama e só acordou com um telefonema do pessoal do concurso. O filme não existia como filme, disse o organizador; existia como livro.

Como era o único filme concorrente num concurso literário, os jurados tiveram a curiosidade de vê‐lo assim que o último concorrente foi despachado. No meio de imagens banais, depararam com um texto exuberante, densamente pensado, meticulosamente concatenado, num ritmo perfeito, repleto de personagens consistentes, situações tensas, cadência, descrições proustianas e cenas épicas. Os responsáveis pelo concurso chegaram a duvidar do escritor e blogueiro: será que ele já trouxe pronto? Para o bem do concurso, ficaram com a versão de que ele realmente se empenhara e só deixava o computador para comer e ir ao banheiro. O texto iria ser tirado filme e viraria um livro.


O escritor e blogueiro desligou o telefone, ligou a TV e voltou a dormir.

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