sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O bom corrupto

Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião, vou abrir as portas do paraíso, fazer e acontecer enquanto estiver aqui, neste cargo, mandando e desmandando, comendo todo mundo e comprando com cartão de crédito corporativo. Só não gosto de ser injusto. Vamos dividir a merreca com os mais chegados, os moralistas, os sonsos e a imprensa falada, escrita e televisada. Quero marcar minha passagem como o bondoso, o Messias burocrático, o homem que multiplicou propinas no Vale do Amanhecer. Sou eu, o corrupto do bem, a mola do desenvolvimento, o criador de um novo conceito de desvio de verbas públicas para finalidades filantrópicas e culturais.

Não adianta ser feliz sozinho. Existem amigos em sérias dificuldades financeiras. Para eles, vai uma parte da comissão e do dízimo. Distribuição de renda funciona assim, em intervenção direta, e não com o blá-blá-blá de políticas oficiais, feitas para não resolver questões cruciais, como o pagamento de dívidas e os desvarios da patroa. O negócio é dinheiro vivo na mão do sujeito, sem formalidades. Não dá para todos, eu sei, mas ver aquelas carinhas alegres recebendo sua fatia já dá meu dia por ganho.

A ética, amigos, pode ser o alimento daqueles que estão na universidade, com salário mensal garantido, mas não cuida dos sem profissão definida nem dos esforçados do curso supletivo. Cheguei aqui quase sem nada, apenas com esforço e um enorme talento para a bajulação. Galguei degraus, peguei o meu, comprei um apartamento e uma casa na praia. Só que nunca me esqueci dos amigos, dos companheiros de miséria, hoje todos remediados graças a este espetacular projeto inventado por minha equipe e inspirado na mais pura caridade cristã.

Corrupção, portanto, não é o mal deste País. É sua salvação. Sem ela nada, as coisas não funcionam, os papéis se acumulam, produzindo mais lixo e a conseqüente devastação da natureza. Sem ela ninguém trabalha com alegria, pois só vislumbrará o mísero salário no final do mês. Sem ela não há esforço concentrado para a aprovação de matérias, movimentações nos lobbies de hotéis, incremento do comércio de maletas, patrocínios decentes, baladas, bons restaurantes, mulheres bem vestidas, viagens internacionais, prazer sexual e banhos de jacuzzi.

Nãos e enganem. Todo dinheiro, sujo ou lavado, termina voltando para o PIB, ainda mais encorpado, produzindo riqueza e melhoria do IDH. Acima de tudo satisfação das pessoas queridas.

O futuro está em suas mãos. Use-as.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Ansiedade do começo ao fim

O que estraga uma história, quando já se sabe como ela termina, é a vontade de chegar logo no fim. O cara quer aquele arremate já pensado antes de sentar para escrever o livro. A pressa leva a uma convergência prematura de acontecimentos, uns atropelando os outros, e muitas vezes o romance termina virando conto.

O contrário traz outro tipo de problema. O sujeito parte de uma frase, mas esta frase precisa sair do canto e não ficar o tempo todo se gabando de si mesma. A sequência da história é um processo penoso porque o escritor começa achar que nada vale a pena depois daquela frase. Então, o conto pode virar um poema ou uma tirada espirituosa.

Notei a primeira angústia ao ler “Um Sussurro nas trevas”, de H.P Lovecraft (1890-1937), editado pela Hedra. Doido para escrever o desfecho, o escritor de histórias fantásticas e influenciador de Stephen King coloca seu personagem nas costas – o cético folclorista amador Albert Wilmarth – e corre com ele em busca dos segredos escondidos nas colinas de Vermont (EUA), onde se escondem seres extraterrestres, segundo revelações feitas em cartas pelo acadêmico recluso Henry Akeley. Dá para sentir, a cada parágrafo, que Lovecraft já enxerga a linha de chegada.

A surpresa do livro, no entanto, nem é o fecho do autor, mas um apêndice escrito Fritz Leiber, que gosta de Lovecraft, mas neste caso esboça uma série de restrições sobre a obra – até mesmo a respeito da verossimilhança dos personagens. O defeito essencial da narrativa, segundo Leiber, é a sua própria estrutura, pois Lovecraft “planejou um grande susto apoteótico para Wilmarth (e para o leitor) e escreveu de maneira obstinada rumo a esse objetivo, propositalmente evitando qualquer tipo de desvio”. O comentarista, também escritor de romances fantásticos - morto em 1992 - observa ainda que a marcha batida rumo à apoteose parece ser o motivo para a escassez de momentos dramáticos no miolo da história.

O caso número dois, aquele que prende o escritor ao início, tem muitos exemplos. Muitas frases geniais seriam um excelente ponto de partida para um romance. Mas os autores se contentaram com a frase ou mesmo não perceberam que, a partir dali, teriam uma bela história pela frente. Para ser mais breve – e também apressado em chegar ao final – pego o exemplo do crítico e dramaturgo George Jean Nathan (1882 — 1958). Como seria interessante que um livro começasse assim: "Bebo para tornar as outras pessoas interessantes." O mesmo poderia ocorrer a frasistas de primeira, como Dorothy Parker, Groucho Marx, Millor Fernandes, entre tantos. Modestamente, pensei numa boa frase outro dia. Dali comecei a escrever uma história. Mas não rendeu sequer um conto. Virou post do twitter.

domingo, 25 de setembro de 2011

Tempos modernos

Acorda cedo num dia, acorda tarde no outro. Remédio para dormir, remédio para encarar a rotina, remédio para agüentar a existência e outros tantos compridos amarelos, verdes e cor de abacate para não sair por ai, muito eufórico, distribuindo sorrisos gratuitos e comentários impertinentes. A farmacologia ataca por um lado, mas sempre deixa emoções a descoberto, alguns pensamentos sombrios e alegrias descabidas no momento errado. Tantas drogas tornam sua vida num ping-pong entre o entusiasmo descabido e o tédio profundo. Sem contar os efeitos colaterais, combatidos com mais medicamentos, que às vezes aumentam a indiferença pela manhã e provocam agitações noturnas sem motivo aparente.

As emoções humanas mais regulares não se apresentam em situações próprias. Chegam como surto e inquietação. Apaixona-se apenas por ícones inatingíveis para não correr riscos, pois uma das cápsulas, esta quase dourada, impede sentimentos mais profundos em relação a seres próximos. Existe, no entanto, outra medicação, capaz de esconder o vazio da alma e a falta de dimensões no relacionamento com as pessoas. A pílula evita que as coisas se passem apenas no presente, sem perspectiva geométrica, num plano longo e exaustivo. Por sorte, a dor no peito, antes constante, foi apagada da memória por um antidepressivo de quarta geração, cuja literatura médica só adverte para alguns lapsos, pânicos e impulsos suicidas. Em tais situações, ele ingere dois tipos de ansiolíticos, que trabalham em direções opostas, bombardeando neurônios como numa frente de batalha. Nessas horas, ele dorme.

A indústria farmacêutica parece ter cumprido sua parte. Mas o apagão é precário. Logo surgem os pesadelos escatológicos, os gritos de todas as dores do mundo e um despertar recheado daquelas recordações quadro a quadro. Hora de medicar-se de novo para esquecer tudo aquilo, ou pelo menos um pedaço, pois hoje hora marcada com o analista e precisa de assunto.

A busca da cura também o levou a terapias alternativas, à base de chás e outras beberagens, apesar de seu ceticismo. Não funcionou. Precisava de alguma bomba de laboratório, algo sintético, alopatia selvagem. O resultado é que virou um monstro de sete cabeças, mas o que lhe resta de razão sempre lhe conforma: foi o jeito.

Com todos esses sintomas, o homem ainda lê. Além das bulas, com suas reações adversas, precauções e advertências, atenta para um tipo de literatura pouco indicada para seu estado. Os livros despejam mais desespero em sua alma. Os autores prediletos são aqueles tipos pessimistas, cheios de becos sem saída e vidas sem sentido. Então, após percorrer a última página, engole um agente antipsicótico atípico, que interage com uma ampla gama de neurotransmissores, e acalma-se. Sabe que suas angústias permanecem intactas, sob o cimento das drogas, mas aceita o alívio momentâneo como algo bem parecido com felicidade.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Itálicos críticos

Vivia de escrever passados para pessoas sem memória. Vez por outro aparecia um cliente, esquecido de outras épocas, sem nenhuma para contar, e ele tinha como primeira tarefa uma longa entrevista com o amnésico. Conversava sobre hoje para construir um ontem verossímil. Quase todos saiam felizes ao deparar, alguns dias depois da consulta, com uma infância cheia de esperança, brilho e revelações. Lembranças acolhedoras não custavam mais caro, mas sempre aparecia alguém pedindo uma pitada de sofrimento em suas recordações.

Em um único caso a mercadoria foi devolvida. Por engano, foram feitas duas memórias iguais e elas terminaram nas cabeças de dois homens de cidades diferentes. Mesmo assim, eles se conheceram, ficaram amigos e com o tempo descobriram que suas infâncias eram descaradamente iguais, em todos os detalhes, desde o braço esquerdo quebrado ao triciclo verde do Natal.

Meloso, colegial, quase pastoso. Se continuar com a história, nem com boa vontade os dois homens embarcarão numa comédia sessão da tarde. Falta tensão e, aqui pra nós, “pitada de sofrimento” é a putaqueospariu.


O desespero de que todas as carapuças lhes cabem não é boa coisa de se ver. Vivia culpado. Qualquer insinuação, viesse de onde fosse, trazia um aperto no peito e a imediata vontade de cair em campo para se defender. Mesmo diante de uma notícia de jornal, citando um vago personagem sem nome, o sujeito se apavorava e pensava: “Com certeza, sou eu”. O anonimato não era motivo para barrar paranóias de grande porte. Atos de terrorismo pelo mundo, denúncia contra uma quadrilha na Argentina, rombos bancários, quase tudo ele pensava: “vão me envolver”. Obviamente, era inocente, mas temia um erro de investigação ou da Justiça. Um erro de qualquer natureza, capaz de colocá-lo no centro de crimes hediondos.

Elegia à falta de assunto. Trata-se, obviamente, daquele texto não concluído porque não valia a pena concluir. Mas ficou lá, em stand by, à espera de uma emergência ou de uma carona numa antologia de bobagens.

Vê-se logo na criatura sinais de frouxidão moral. Vê-se ainda que dá para abatê-lo com argumentos apenas razoáveis. O fulano, quase sempre, segue no rabo da maioria, mas aparenta muita certeza ao condenar comportamentos aqui e ali com palavras que fecham a questão - “maconheiro safado” e “viado sem vergonha” constam de seu habitual repertório. Nem passa por longe que o interlocutor possa se enquadrar em uma das categorias.


O politicamente correto também vale pros adjetivos? Não fica claro e tem tudo pra não ficar. Por falar em frouxidão, o texto é frouxo. Se apertar piora e se afrouxar ainda mais, se dissolve.

Ela, vinte e poucos anos

O lado mais desagradável da convivência com os jovens era o fato de não ser mais um deles. O professor, no entanto, insistia. Estava sempre nas mesas de bares com alunas e agregadas nascidas depois de sua tese de doutorado em Filosofia na prestigiosa Universidade de Princeton. Por que não procurava sua turma? O problema é que ficava entediado com colegas acadêmicos, divididos entre Fenomenologia e artroses, quase todos vovôs, em vias de embarcar na aposentadoria e, pluft, na morte. Então ele escolheu a galera, extasiado com o sorriso d’Ela, eternamente curioso em mundo que não lhe pertencia. No mais, tinha certa destreza no trato com as meninas: cuidadoso para não parecer insinuante, mas não ao ponto de ser considerado fora de cogitação para o sexo. Sonhava com um caso mais duradouro ou amor eterno. Com Ela, vinte e poucos anos.

Era agraciado com freqüentes convites para programinhas. O professor ia, quase sempre, mesmo certo que as coisas terminariam mais ou menos. Ia pelo processo em si. O apelo visual, o sorriso d’Ela, o gosto de expor suas idéias para tão seleta audiência. Vaidade. Por volta das duas da manhã, quando o jogo ficava fisicamente pesado, o som da festa abafando as palavras, ele se recolhia. Algumas vezes experimentou a continuação da balada e terminou só, num canto, sem expor-se ao ridículo de cair na pista de dança. Saia à francesa. Elas entendiam.

Ao observar que não era páreo para homens e mulheres de vinte e poucos anos que sobrevoavam sensualmente suas moças, também tomava o caminho de casa. Parecia insensível diante de decepções e constrangimentos. Simplesmente desarmava o circo. Depois, numa poltrona de couro, cercado de livros em francês (quase um clichê Hautes Études), apenas fazia um balanço de sua performance na noite sob o ângulo mais positivo. A habilidade cinqüentenária para enrolar baseados – um espetáculo diante dos olhos d’Ela – e as informações sobre bandas antigas cultuadas nos dias de hoje devem ter somado uns seis pontos em sua escala imaginária. Sem contar que passou uns bons minutos discorrendo sobre a obra de Gilles Deleuze e, de quebra, serviu fartas doses de Mario Faustino, Noel Rosa e Psicanálise. Coisinhas caras à moçada urbana com pretensões intelectuais. O abismo etário era deixado de lado, embora seu trabalho mais recente fosse a respeito da passagem do tempo, a velhice e a morte na ótica de Nietzsche.

Cuidou das dores nas costas, comprou roupas adequadas (nem pateticamente juvenis nem explicitamente “tiozinho”) e estava de volta à arena. Naquele dia, o professor teria um encontro apenas com Ela, uma conversa a dois. Melhor de tudo: marcada por Ela, sua obsessão, razão de viver etc. Parecia preparado. Andou lendo Philip Roth, “Homem Comum”, mas não se abalou tanto. Ainda se achava na idade da batalha, não do massacre. Tomou meio Rivotril para conter a ansiedade e, cuidadosamente, acomodou o Viagra no bolso esquerdo. O pequeno míssil azul só seria usado em extremo caso, alerta vermelho. Saiu cheio de esperança e desejo. Romance no horizonte.

Mas a vida no universo juvenil se desfez da forma mais dolorosa possível naquela tarde. Ela queria um emprego, uma vaga no Departamento de Ciências Humanas, nem que fosse na burocracia. Precisava de uma grana para ajudar nas despesas do pequeno apartamento onde iria morar com um namorado. O cara ganhava pouco, era músico, vinte poucos anos.

domingo, 18 de setembro de 2011

Odete

Por anos estive ao relento da existência. Os projetos fracassaram, não havia saída. Mas agora, às vésperas do meu cinquentenário, vejo como as coisas mudaram. Estou de pé, sadio e com dinheiro no banco. Os filhos estão criados e se mulheres se foram, ficou esta ao meu lado, prestativa e heróica, testemunha de meus piores momentos, de vícios e males de década e meia.

Minha vida era uma tempestade sem abrigo e ela chegou justamente no instante de maior desespero, quando a enxurrada de danos já travava meus sentidos. Seu nome: Odete, 43 anos. Eu estava a caminho do fim. Só mulheres desse calibre são capazes de repor a dignidade de um homem, salvá-lo do naufrágio. Eu era um fardo pesado – não sou mais, graças a seus préstimos.

Renovado e disposto, livre de todos os dramas, presto-lhe a última homenagem nesta hora de dor e despedida.

Lamento, Odete, que tenhas partido no auge da minha glória. Lamento, Odete, que tenhas morrido para me salvar.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Dilemas ideológicos e o amor

Tinha que arrumar uma mulher que não me deixasse vendido ao sistema. Cansei de escrever textos com os quais não concordo – e no capricho. De dia, dou expediente como neoliberal para um líder classista do empresariado; à noite, bato ponto na esquerda, numa revistinha ao estilo realismo socialista. Nos dois casos, preciso demonstrar certo entusiasmo ideológico e, pior, voltar pra casa de ônibus. Há três anos estou nessa bipolaridade mal remunerada e mal resolvida.

Comecei a pensar em mudar de vida depois de seguidos encontros com uma jovem senhora de Higienópolis. Ela encantou-se com meus escritos – sim, tenho um blog – e aos poucos foi se chegando. Descobri que herdou uma fortuna da família e, pelo jeitão, estaria disposta a um mecenato com contrapartida sexual e aconchegos pertinentes. Estou vendo o custo-benefício dessa história. Pensei: é a chance de me livrar do empresário reaça e da publicação soviética. Poderia chutar o balde e passar a escrever só o que penso, sem melindrar meus patrões e minha consciência, como ocorre agora, pois só trato de cinema e literatura, mesmo assim de forma meio neutra. Nada de política ou filosofia porque suja a relação empregatícia.

Mas tem a questão da canalhice. Não estou apaixonado, não tenho tesão por ela, embora ache agradável ouvir seus elogios sobre minhas tentativas literárias. A voz é boa. O corpo deixa desejar, mas relevo porque também não sou essas coisas. O importante é que não dá a mínima se o sujeito é de direita ou de esquerda. Diz que gosta dos inteligentes e cultos. Enquanto isso, embalo meu dilema: como ou não como?

O fato é que não escondo meu desconforto com os dois empregos, mas ela não pensa assim, jamais pensará. Gostou do que saiu na revista (um texto meio que defendendo a Coréia do Norte) e do blog do empresário, onde detonei o gigantismo do Estado e floreei o empreendedorismo privado. “Você é eclético”, ela falou, manhosa. Não se tratava de ignorância; apenas seu mundo não estava assim dividido, entre direita e esquerda, como já disse, e se estivesse, acredito, os dois lados teriam seus defeitos e qualidades. O regime político ideal, segundo ela pensa, é uma mistura de capitalismo e comunismo, em que pobres levam uma vida decente sem perturbar a paz dos bem nascidos.

Se assim foi resolvida a questão política, pode significar que ela não me quer em seu apartamento de quatro quartos e duas suítes. Prefere me ver nessa confusão. Nada disso. Sempre repete que faço muito bem o meu trabalho, mas mereço coisa melhor e - gostei dessa parte – preciso de tempo para pensar e escrever sobre o que me vier à telha, de preferência um romance. Oferta irrecusável, mesmo dita de forma indireta. O que viria a seguir seria no campo romântico, algo parecido com jogo da conquista, pois a dama necessitava disso para oficializar o negócio.

A estratégia, que envolvia alto grau de cafajestice, começava por deixar de lado aquele papo sobre crise ideológica e criar um auto de bar a propósito de sua exuberante presença neste mundo tão carente de sentido. Disse-lhe que ela surgia como tábua de salvação, última tentativa de um relacionamento, meu bem, meu mal etc e tal, e daí aconteceu, disparei todo meu repertório, que ia ficando adequadamente meloso à medida que ela cedia e acedia e seus olhos brilhavam. A mulher da minha vida, enfim, estava ali, com seu Ap de não-sei-quantos metros quadrados e uma conta bancária suficiente para bancar um escriba desconhecido e agente duplo no campo ideológico.

Não se pode, depois disso, simplesmente organizar a mudança. Há ainda um período de namoro, parte especialmente enjoada, em que fomos a cinemas, jantares e passeios a beira mar. Com imenso sacrifico, dividi as contas. Nesse tempo, mantive minhas atribuições antagônicas, correndo da direita para esquerda e vice-versa, protestando contra o governo num canto e defendendo o mesmo governo no outro. De manhã, conferências empresariais sobre qualidade total e outras merdas; à tarde, discussões intermináveis sobre a crise do capitalismo e outras merdas.

Aquilo era estranho. Não tinha ilusões socialistas, mas ao mesmo tempo detestava aquele discurso descarado e sem culpas em defesa do lucro. E o que é pior? Sacanear suas convicções, por mais frouxas que fossem, ou sacrificar uma mulher no altar do mau-caratismo? Não dormi bem nesse dia nem dormiria nos seguintes. O drama moral me afetava e isso, por um lado, era bom. Mostrava minha capacidade de ter dramas morais.

Então marquei uma conversa aqui por perto. Chega de pegar ônibus. Abri o jogo de maneira escancarada a ponto fazê-la chorar, comovida com minha sinceridade. Parecia até mais apaixonada, e estava de verdade, porque finalmente fomos para o apartamento e ela me surpreendeu com encantos inesperados, o cheiro agradável e petinhos em razoável estado de conservação.

O certo é que a mudança de vida ficou para outro momento. O desfecho foi o seguinte: estamos num namoro, mas cada um em sua casa. Continuo com meus dois empregos aparentemente irreconciliáveis - direita de manhã, esquerda à tarde. Só que agora plenamente ajustados ao pensamento terceira via da amada.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Encontro o amor e depois perco

@ Viajei. Uma viagem incomum, no meu caso. Dessas de um lugar para outro. Ônibus, paisagens, rodoviária. Nada de drogas. Pelo menos por enquanto. Fazia tempo que não saia de casa, mas cá estou, numa cidade estranha, fugindo de mim mesma e atrás de alguém que conheci no twitter. Nem sei se é homem ou mulher, mas não estou em condições de exigir muito. O nome dele (a) é @I-Toy. No momento é o que basta.
(Leia o capítulo no malvadezas.com)

Trecho do livro Todo Dia me Atiro do Térreo

domingo, 11 de setembro de 2011

O Evento

Quando a luz se apagou para sempre, o último homem sobre a face da terra ainda tentou uma sobrevida com sua pequena lanterna mecânica, dessas que acendem a custa de freqüentes apertos de mão. Aquele fio luminoso bateu contra uma das poucas paredes em ruína e ele divisou um quadro – o retrato da mãe – e um velho mancebo coberto por um casaco de couro. Como provisão para os próximos minutos ou dias, tinha duas garrafas de água mineral, um lençol azul e uma pilha de jornais e revistas da semana anterior ao evento.

Recarregando a lanterna com esforços restantes, leu as notícias sobre a iminente catástrofe planetária e um infográfico a respeito daquele pedregulho do tamanho de Sergipe que se aproximava da Terra. Tudo foi grandioso: o estrondo, a poeira que cobriu o Planeta e, em segundos, somente a sensação de estar só em seu cantinho escuro. Quais as providências nessa hora implacável: um gole d’água, um oração, um grito? Não importava. Optou pela continuação da leitura dos impressos para entender porque as pessoas foram tão frias e indiferentes diante do inevitável. As notas oficiais das autoridades, por exemplo, tinham a mesma carga emocional de uma portaria do banco Central. As religiões trataram o caso como um desígnio de Deus e estamos conversados, enquanto a ciência alegou falta de tempo hábil para alguma providência eficaz.

A vida seguiu seu curso. Os campeonatos regionais não foram interrompidos e a política continuou com suas sessões plenárias e traições. A TV ocupou-se bastante do caso, mas novelas e sitcoms não foram suspensas. Houve a festa da primavera, concurso de misses, festivais de cinema, feiras literárias, seminários sobre boas práticas empresariais, lançamento de Iphone e anúncios de revolucionárias dietas de emagrecimento. Além, é claro, de mais uma temporada do Cirque Du Soleil na América Latina.

Notava-se enfado e cansaço em relação ao noticiário apocalíptico. Aquela pedra gigante, em rota de colisão, banalizou-se, embora já pudesse ser vista a olho nu, em noites estreladas. Mas não foram registrados sinais de melancolia ou desespero e ninguém caiu na esbórnia, como se o mundo fosse acabar amanhã ou logo mais – e iria acabar, conforme todos os cálculos das instituições científicas. Havia sempre a esperança de a rocha se estilhaçar na atmosfera e causar prejuízos de menor porte – tsunamis e terremotos – mas esse não era o ponto. O fato é que anúncio tornou-se chato e repetitivo, começou a perder força e até virou piada.

Apesar da má vontade dos leitores, o fim do mundo rendeu alguma arte. Duas bienais escolheram o tema, mas as instalações submeteram o juízo final às suas subjetividades - a ponto de expor a extinção da vida como mais uma mudança de rumo conceitual das artes plásticas. Espaços vazios e páginas lotadas de interpretações nos cadernos de cultura.

Depois de certo tempo, só os canais a cabo produziam programas especiais e rodadas de debates sobre o corpo sólido cada vez mais próximo. Nessas ocasiões, astrônomos e ambientalistas se digladiavam, pois os defensores da natureza insistiam em culpar o homem pela deterioração do Planeta, mesmo que o perigo real estivesse vindo de bem longe. Num desses conclaves televisivos, um cético metido a engraçadinho lembrou que o seixo descomunal não escolheu a terra porque não reciclamos devidamente as nossas garrafas PET.

O homem já estava exausto de carregar manualmente a bateria da lanterna em seu precário bunker. Mesmo assim, prosseguiu com a leitura da nossa imprensa - dividida entre a crítica e o apoio ao governo. Divertiu-se com o ministro que lançou um planto quinquenal de desenvolvimento quando o bagulhão já estava quase do tamanho da Lua. Na coluna social, Elisinha Proença Gouveia anunciava seu enésimo casamento justamente para o dia do “evento” (o pessoal do marketing usou o termo, disseminado pela imprensa, para evitar o clima de baixo astral associado a expressões como “hecatombe” ou “Armageddon”).

Enfim, quando ocorreu o evento ninguém contava em sobreviver. Nem o homem da lanterna, que agora tentava entender o fim de tudo a partir do noticiário das semanas passadas. Parecia tranqüilo, aconchegado em seu lençol azul, enquanto o céu ardia em fogo. Só lamentava a falta de um maço de cigarros, com o qual aquela leitura terminal se tornaria bem mais fluída e agradável.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O deserto de Mojave e seus petinhos

Quando atravessei o deserto de Mojave estava sem papel e caneta e o diário de viagem foi deixado de lado em troca de outras atrações. Pensava em cinema e Geologia. Sentia o clima hostil. Lembro que os pneus do carro precisavam ser trocados, pois quase derretiam depois de certo tempo de rodagem. Mas havia cerveja no isopor e a motorista de Los Angeles, amiga da minha namorada e prima distante de Robert de Niro, estava com os seios à mostra por causa do calor. Passei boa parte do tempo entre duas visões. Lá fora, o Vale da Morte, lagos secos e a sequência de postes. No retrovisor, os biquinhos perfeitos da moça. Até hoje, desertos norte-americanos me remetem a peitos, apesar dos faroestes da infância, do cemitério de aviões, do Sam Shepard e de Win Wenders, que acabara de lançar “Paris, Texas”. Coitado do Harry-Dean-Stanton. Ser pedestre naquelas bandas não é fácil nem em filme.

Meu Road-movie, no entanto, era confortável e equipado: peitos da lourinha, cerveja, jazz a bordo, nacos e béquis. No caminho parávamos para observar o nada ou cascáveis se arrastando naquela caatinga estrangeira. Eu olhava para a estrada sem fim, refletia um pouco sobre essa adoração intelectual do deserto e novamente voltava discretamente o olhar para o meu oásis: os petinhos da Anne. Nunca presenciara uma exposição mamária tão longa e disponível como naquela viagem de 1984, coast to Coast, Los Angeles – Nova York.

Por falta de assunto, entre uma apreciada e outra na motorista, recordo que tentei engatar uma comparação entre o deserto de lá e o daqui, o sertão brasileiro, enfiando Graciano Ramos na história, Vidas Secas, Glauber Rocha, Terra em Transe, enfim quase todo o repertório possível de um nordestino provinciano e completamente bestificado com exibição natural, espontânea e trivial daqueles peitos. No mais, com o tempo a paisagem desértica vai se tornando monótona, cansativa, cheia de repetições. Já os peitos, não. Sem apresentar qualquer variação mais espetacular, conseguem prender a atenção full time, sem contar que eu não poderia me fixar no busto da moça durante todo o percurso. Além da necessidade de parecer blasé, havia o deserto lá fora e minha namorada estava sempre me mostrando pequenos montes erodidos e locações de filmes famosos.

Assim foi a viagem até o clima começar a estragar a paisagem interna do potente Nissan. Bateu um friozinho, escureceu e Anne repôs a blusa, de modo tão maquinal quanto a tirou. Só restava dormir. O deserto ainda estava lá, mas aqueles peitos se foram para sempre.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Memória

Nunca sabe o nome do filme, muito menos o do diretor, tampouco pouco se lembra dos atores. Pior: se atrapalha na hora de contar a trama. “É aquele que...”. Disso não sai, a memória falha, embora ele tenha quase todo o roteiro na cabeça, peça por peça, quase um story board, com músicas e algumas falas, que no momento não lhes vêm para uso em público. Acontece a mesma coisa com os livros daquele autor (“como é mesmo nome dele, meu Deus?”), músicas e bandas ou uma peça que viu, salvo engano, em um teatro do Rio, São Paulo ou Curitiba – ou será que só leu a crítica? Deixa pra lá.

Só depois do bar, antes de dormir, a ficha técnica cai. Inteira. O letreiro final completo, o IMDb de cada ator, resenhas completas, momentos especiais. É capaz de recitar tudo sem vacilações, diante do espelho, mas ai não adianta mais. Amanhã, quando voltar à mesa, a memória vacilará de novo. Já culpou o álcool pelos esquecimentos, mas é assim desde criança. Tantos filmes, peças e livros passaram por suas vistas. Acolheu os significados, algumas obras marcaram sua vida, mas ele queria mesmo era exibir suas informações aos amigos e nada aparece no momento certo. Pode ser timidez, falta de vitamina B12, problemas de sinapses com sinopses ou egoísmo.

Foi consultar um psiquiatra, tipo esquisito, e ele achou que poderia ser um vírus. Daqueles que migram dos computadores para as pessoas.

@_lulafalcao

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tiques

Os tiques ao estilo Slavoj Zizek já existiam há muito tempo, mas agora ele apresentava novas manias e incômodos, especialmente com cores, sons e cheiros. Ao verde, por exemplo, reagia com um fungado longo, melancólico, quase um adágio laringológico. Tinha rápidos espasmos ao ouvir determinadas palavras e vertia lágrimas ao perceber o aroma de café vindo da cozinha. A cada minuto ajeitava os óculos, embora o aro não tivesse se movido um milímetro. Coçava uma coceira imaginária, parecia pedalar uma bicicleta invisível, se abanava em clima frio e costumava ir escorregando da cadeira quando não estava com a palavra. Sem contar que fumava feito um louco e quase sempre acendia o cigarro no lado do filtro. Ao beber – o álcool era outro problema – todos os sintomas se apresentavam de uma só vez, numa simultaneidade que deixava o interlocutor exausto. Era um magma em eterna ebulição. Os movimentos involuntários, súbitos e repetitivos já eram da conta de todo mundo, mas seus amigos não tocavam no assunto por não saber explicar porque, apesar daquele conjunto de esquisitices, ele estava sempre cercado de belas mulheres.

@_lulafalcao

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Casal teoria e prática

- Você não acha que Câmara está colocando em risco a democracia representativa no País?

- Não acho nada, Alberico.

- Por que é sempre assim, mulher, você nunca acha nada.

- Já achei. Não acho mais. Achar adianta alguma coisa?

- Claro que sim. Já ouviu a frase “quem não gosta de política será governado por quem gosta”?

- Não, mas qual é o problema? Quem gosta que governe. E tem mais: você adora política e não governa porra nenhuma.

- Meu bem, não é por ai. O fundamental é que a alienação política termina te deixando alienada de tudo...

- Como assim? Já fiz um bocado de coisas hoje. Levei as crianças na escola, paguei as contas e ainda trabalhei das nove até agora. Lembra? Sou eu quem sustenta essa casa.

- Claro, nunca neguei isso. Estou sem emprego fixo, mas não parado. Reflito sobre o Brasil, sobre as questões institucionais. Escrevo meu blog, tenho 1200 seguidores no twitter. Estou clamando por um país melhor.

- Alberico, esse twitter e esse blog não dão um tostão furado. Tanto concurso público por ai e você não se mexe...

_ Você acha que quero viver à custa do Estado, virar funcionário público, ser cúmplice de um sistema permeado pela corrupção?

- Que cúmplice coisa nenhuma, Alberico. É só um emprego como outro qualquer. E tem um salário no final do mês. Ficar ai escrevendo nesse blog é que não vai resolver porra nenhuma.

- Um blog que você não lê.

- Alberico, eu lá tenho tempo pra ler blog?

- Tem que arranjar um tempo. Não falo especificamente do “meu blog”. Você precisa se informar.

- Se você gosta tanto de política por que não vai ser cabo eleitoral?

- Heleninha, pelamordedeus, eu penso a política como algo superior, acima de questiúnculas partidárias, de campanhas eleitorais, essas coisas. Meu negócio é o Bobbio, a Ciência Política, a teoria, as questões do Estado, as relações com a sociedade.

- Que Mané Bobbio, rapaz. Você vive citando esse cara e até agora, necas. Em vez de ficar na dos outros por que você não arruma emprego de cientista político?

- Você sabe muito bem que não é assim. Não tenho diploma universitário. E não por falta de capacidade. É que sou bastante crítico em relação à vida acadêmica, aos seus vícios, às suas “verdades”...

- Alberico, você é crítico de tudo que pode te tirar desse maldito computador. Se soubesse não tinha comprado essa merda.

- Olha, Heleninha, você deveria agradecer por ter em casa uma pessoa que reflete e escreve sobre política. Lembre do meu livro. Não sou qualquer um, tenho um livro publicado.

- Um livro que ninguém leu. Até hoje você deve à gráfica. Melhor dizendo, eu devo.

- Heleninha, sabe o que me irrita? Essa sua falta de classe pra viver uma relação em que um é o provedor material e o outro se dedica a pensar, questionar e formular teorias. Conheço vários casais que tratam isso de uma forma, digamos, mais elegante.

- Olhe, Alberico, enchi o saco dessa sua vagabundagem enfeitada com teoria política. Não fosse casado comigo, você estaria morando na rua, sem blog e sem teto, ou arrumava outra besta quadrada como eu para segurar sua onda de intelectual fracassado. O que você produziu até hoje? Sim, tem o livro. Mas ninguém ligou, Alberico. Aquilo é um emaranhado de soluções à procura de problemas; você não alinha fatos concretos e faz uma análise simplista da realidade brasileira a partir de leituras rasteiras de jornais e revistas. Não há uma única idéia inovadora, nenhum pensamento original naquele labirinto de citações fora do lugar. Sem contar os erros históricos. Sua análise da Era Vargas, por exemplo, não leva em conta a conjuntura internacional e a própria guerra é deixada de lado para embarcar num cozido mal feito de Gilberto Freyre e Caio Prado. Encontrei vários parágrafos completamente descontextualizados, talvez por falta de conhecimentos sobre a engrenagem econômica do pós-guerra. E tem mais: o que O Gramsci está fazendo ali, ciscando sobre todos os temas, das artes plásticas ao sindicalismo...

- Sabe de uma coisa, Heleninha? Você me deu uma idéia: vou preparar uma segunda edição do livro. Levarei em conta suas observações. Algumas são equivocadas, mas você tem razão sobre Vargas. Preciso mergulhar nesse tema nos próximos meses. Enquanto isso, você bem que poderia escrever no meu blog a cada quinze dias...

- Quer saber, Alberico? Vai te fuder!