quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Itálicos críticos

Vivia de escrever passados para pessoas sem memória. Vez por outro aparecia um cliente, esquecido de outras épocas, sem nenhuma para contar, e ele tinha como primeira tarefa uma longa entrevista com o amnésico. Conversava sobre hoje para construir um ontem verossímil. Quase todos saiam felizes ao deparar, alguns dias depois da consulta, com uma infância cheia de esperança, brilho e revelações. Lembranças acolhedoras não custavam mais caro, mas sempre aparecia alguém pedindo uma pitada de sofrimento em suas recordações.

Em um único caso a mercadoria foi devolvida. Por engano, foram feitas duas memórias iguais e elas terminaram nas cabeças de dois homens de cidades diferentes. Mesmo assim, eles se conheceram, ficaram amigos e com o tempo descobriram que suas infâncias eram descaradamente iguais, em todos os detalhes, desde o braço esquerdo quebrado ao triciclo verde do Natal.

Meloso, colegial, quase pastoso. Se continuar com a história, nem com boa vontade os dois homens embarcarão numa comédia sessão da tarde. Falta tensão e, aqui pra nós, “pitada de sofrimento” é a putaqueospariu.


O desespero de que todas as carapuças lhes cabem não é boa coisa de se ver. Vivia culpado. Qualquer insinuação, viesse de onde fosse, trazia um aperto no peito e a imediata vontade de cair em campo para se defender. Mesmo diante de uma notícia de jornal, citando um vago personagem sem nome, o sujeito se apavorava e pensava: “Com certeza, sou eu”. O anonimato não era motivo para barrar paranóias de grande porte. Atos de terrorismo pelo mundo, denúncia contra uma quadrilha na Argentina, rombos bancários, quase tudo ele pensava: “vão me envolver”. Obviamente, era inocente, mas temia um erro de investigação ou da Justiça. Um erro de qualquer natureza, capaz de colocá-lo no centro de crimes hediondos.

Elegia à falta de assunto. Trata-se, obviamente, daquele texto não concluído porque não valia a pena concluir. Mas ficou lá, em stand by, à espera de uma emergência ou de uma carona numa antologia de bobagens.

Vê-se logo na criatura sinais de frouxidão moral. Vê-se ainda que dá para abatê-lo com argumentos apenas razoáveis. O fulano, quase sempre, segue no rabo da maioria, mas aparenta muita certeza ao condenar comportamentos aqui e ali com palavras que fecham a questão - “maconheiro safado” e “viado sem vergonha” constam de seu habitual repertório. Nem passa por longe que o interlocutor possa se enquadrar em uma das categorias.


O politicamente correto também vale pros adjetivos? Não fica claro e tem tudo pra não ficar. Por falar em frouxidão, o texto é frouxo. Se apertar piora e se afrouxar ainda mais, se dissolve.

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