quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Gobi


De repente, todos surgiram no deserto de Gobi, no meio do nada, sem saber por que foram parar ali em questão de segundos. Estavam em seus gabinetes, emitindo ordens, quando uma luz azul transpassou os vidros das janelas e arrastou cada átomo de cada ministro para uma viagem inesperada. Todos ficaram assustados com a paisagem - dunas móveis de areia e, lá adiante, montanhas de até 800 metros de altitude. Nômades a cavalo e a camelo estranharam a presença daquele primeiro escalão em suas terras, mas a caravana seguiu adiante, deixando para trás perguntas sem respostas. Mesmo porque nenhum dos transportados falava mongol.

Na capital, quando os repórteres de política ligavam para os ministérios atrás de novidades, a novidade era a ausência dos ministros. O mesmo ocorreu no parlamento. Parte da bancada também sumiu sem mais nem menos e o fenômeno chegou a ser presenciado por assessores. “Ele foi ficando transparente e desapareceu”, contou uma secretária da liderança governista.

Em Gobi, sob uma temperatura de 40 graus – sorte deles; no inverno é o contrário -, as aturdidas autoridades nacionais estavam entre o susto e a necessidade de livrar-se dele, de preferência com ansiolíticos que levam nos bolsos e nas bolsas e que foram engolidos sem água. Em seguida, tiraram os celulares e não havia sinal. Só então olharam de forma mais cuidadosa para o deserto sem fim.  

- O que é isso pelo amor de Deus? – perguntou o ministro dos Negócios Exteriores, o mais acostumado a viagens, mas não as desse tipo.

Para os mais religiosos, aquilo poderia ser obra de um Moisés turbinado, carregando os seus à velocidade da luz – quarenta anos em milésimos de segundos.  O ministro da Cultura pensou em algum happening de artistas da oposição, à base de drogas, enquanto outro notável da república puxou seu cantil de Jack Daniels e entornou a metade. Não houve perguntas sobre o porquê de estarem ali, mas “como” foram transportados tão bruscamente. O ministro do cantil, agora mais tranquilo, achou que já vira algo parecido num documentário de ciência. As lideranças mais destacadas, no entanto, já especulavam a respeito da repercussão do episódio na opinião pública.

No país, o caso foi tratado com cautela pela imprensa. Talvez as autoridades estivessem reunidas em algum lugar sigiloso para tomar medidas inadiáveis para a economia e a política. Ficou essa versão.


Do jeito que foram, voltaram. No mesmo dia os ministros e congressistas estavam de volta a seus gabinetes, emitindo ordens, mas atentos à cor da luz que transpassava as janelas. 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Humano


Não houve dores do parto. Ele veio ao mundo por outras vias, sem pai nem mãe, construído a partir de células desconhecidas, cultivadas durante anos.  Seu nascimento, ou apenas início, ocorreu em 20 de maio, às 14h20, conforme paper escrito pelo professor emérito, criador da criatura. De resto, era um bebê normal, de três quilos e oitocentos gramas, rosto rosado, ralos cabelos pretos e nariz núbio. Não chorou porque não estava previsto que chorasse. Abriu os olhos, observou ao redor e fez cara de quem já conhecia o ambiente. 

Na primeira infância estava destinado – ou programado – para atividades muito mais complexas do que encaixar triângulos em buracos com formato de triangulo. Nos primeiros dias se entediou com os testes de memória. Lembrava-se nitidamente de tudo, inclusive de partes do futuro, mas não lhes perguntaram sobre ideias e planos. Aos dois anos, falava com fluência vários idiomas.


Aos três anos, o protótipo foi desativado. Criou muito caso, brigou com cientistas e questionou aspectos cruciais do projeto que lhe deu origem.