sábado, 29 de agosto de 2015

Sermão



Bem-vindos à Igreja da Dúvida. Divagaremos em nome de Deus, ou de outros nomes, pois nosso sagrado templo nasceu da incerteza e do acaso, perdeu-se no tiroteio cósmico, mas achou-se entre pessoas de boa vontade e espírito aberto, caso haja espírito. Não sabemos muito e do pouco que sabemos ainda nos restam imprecisões e ambiguidades. Por isso, nossas preces são em forma de perguntas, e embora nenhuma delas tenha sido respondida até agora, contamos com cenários possíveis e alinhamos histórias conciliáveis, teorias e suposições. Por isso, perguntamos, em cada culto, se Deus existe e como Ele opera. Ou se não existe. De qualquer forma, depois da revelação – seja ela qual,  for -, fecharemos a igreja.  

Gari

Depois da coleta, costumo tomar um banho demorado. Aos poucos, vai clareando, uma saída aponta, me sinto lindo e cheiroso, mas logo é hora de deitar e dormir para mais lixo no dia seguinte. Na nova jornada, o uniforme limpo vai ganhando de novo seu cheiro de verdura podre e suor, enquanto corro atrás do caminhão, com sacos pretos nas costas; enquanto troco algumas ideias sobre futebol e a vida.

Cruzeiros

De navio, não. Bossa nova em ritmo de bolero, o bufê com o mesmo gosto, pessoas cheias de cordão de ouro, falando as merdas que os desconhecidos falam. Sem contar que o mar é chato quando só tem mar o tempo todo, pelo menos eu acho, nem precisa concordar comigo; só sei que não vou, ela disse e era definitivo. Não iria. Nunca esteve num cruzeiro marítimo, mas tinha uma ideia de como são. Só pensa naquele pequeno necrotério do porão, onde guardam os marinheiros de última viagem - os velhinhos; eles e suas cadeiras estiradas no convés, quase todos pensando em suas vidas de maneira estatística e melancólica.

Mar da Tranquilidade


Nua, olhando a lua. Marina estava deitada com seus pelos apontados para o Mar da tranquilidade, lá em cima, com sua visão telescópica de fêmea sadia, enquanto caía uma chuva fraca na praia, em 1978, o ano-base de nossas vidas. Sem 1978 não seríamos o que somos, os filhos não teriam nascido, o mundo não teria graça, quase não existiríamos. Aquele foi um dia de sorte, uma confluência de acasos, entre infinitas possibilidade, e aquela era a nossa, no meio de trilhões. Sua beleza inebriante não era tudo. O jeito como ela falava, no entanto, era. Achamo-nos no romantismo tardio, mas depois veio a realidade, naturalista, a mão afagando o pau-pedra, intumescimentos, necessidades, desambiguação, Et Cetera. Tudo conforme o vaivém das ondas, numa coordenação perfeita, apesar da areia atritando rugas internas e o território circunciso.

sábado, 22 de agosto de 2015

O livro de Ateneo



Quando contei que estava escrevendo um romance sobre 1979, ele simplesmente mudou de assunto. Sua aparente falta de curiosidade escondia uma coisa grave, pois já sei como o animal se comporta nessas horas. O assunto puxado por ele era irrelevante e apareceu assim, numa tomada de fôlego, apenas para substituir o anterior, mostrando como Ateneo se assustara com minha revelação. Pensei: volto ou não volto ao meu livro? Estou pronto para uma avaliação de quarenta anos de amizade?

A princípio, a preguiça contou mais. Seria uma conversa dolorida, cheia de reclamações, e isso termina até afetando sua relação consigo mesmo. Mas Ateneo parecia tão desconcertado, sem saber o que dizer; ele estava pálido. Então resolvi enfrentar o animal, como enfrentei outras vezes, na infância e adolescência, quando passamos a nos chamar um a outro de animal.

O negócio foi se esclarecendo. Ateneo tinha pensado o mesmo livro, que nasceu de nossas conversas em 1979 sobre o universo das partículas e as histórias bizarras da física quântica - como o fato de um nêutron estar em vários lugares ao mesmo tempo. O enredo se mesclava com pessoas que conhecemos na época e cada uma delas fazia parte do Modelo Padrão – teoria quântica de campos desenvolvida entre 1970 e 1973. Nós, os personagens, éramos as partículas fundamentais da matéria.

Estudante de Física, ele se achava dono de mais de cinquenta por cento dessas conversas, emitia mais informações, e, portanto eu não poderia começar a escrever um livro sobre o assunto à sua revelia. Mais: ele se achava o coautor natural de um romance que estava nas primeiras linhas. Quanto ao seu próprio romance, Ateneo garantiu que estava amadurecendo a ideia e quando esta amadurecesse me chamaria para um trabalho a quatro mãos.

A partir daí nos deixamos de falar.

Mais tarde, fiquei sabendo que Ateneo também tinha escrito o livro, enquanto fiquei só no início, travado com nossa última conversa. Eu, na verdade, era o enganado, e entendi finalmente sua reação naquele dia. Ateneo não se sentia traído, ou, pelo contrário, não sentia culpa.  Seu desespero e sua fúria eram apenas pelo risco de não ser mais inédito. 
Resultado: Ateneo editou o livro, com seus próprios recursos, porque nenhuma editora se interessou. Depois disso, só silêncio da crítica e desprezo do público. Ele terminou seus dias cercado de exemplares encalhados.


Tantos anos sem vê-lo, a raiva havia cedido. Recebi o desfecho com imensa tristeza, não apenas por ele, mas por todos nós, personagens do livro sobre 1979. O nosso modelo padrão havia desabado na teoria e na prática. Era só uma ideia pretenciosa e perdemos muito com isso.