segunda-feira, 27 de outubro de 2014

TOC literário



O vagão tem vinte e oito assentos, ou trinta, sempre esqueço quando volto a viajar, no dia seguinte, de manhã até o fim da madrugada, percorrendo estações e gastando tempo em idas e vindas contínuas no metrô. Embarco às 04h10 e só paro uma da manhã; aí durmo sonhando com um monte de passageiros. Alguns se repetem e outros somem. Nunca mais vi o homem de terno xadrez. Pode ter morrido, não anda mais de metrô, mudou-se de cidade - um lista enorme de alternativas. Minha memória é melhor para as pessoas que sumiram.

Perguntam  por que eu faço isso, diariamente, há anos, e por que conto isso agora, tentando me curar das viagens de metrô. Perguntam se sou sadio e a resposta é "não sei". Tomo remédios por causa da repetição, mas não acredito em transtorno. É muito mais uma busca. Os passageiros são meus personagens como para outros são personagens os habitantes de uma ilha ou os franceses do século XVII. A desvantagem é que os meus não me dão falas, a não ser "com licença", de vez em quando, principalmente na hora de descer do trem. Em compensação, deixam aberto  o espaço para tudo, caso do homem de terno xadrez, já usado em tentativas de construir muitos personagens. O mais presente é o empresário de um trio que fez sucesso na TV dos anos oitenta.

Muitos dos passageiros são calados e outra parte é descartada justamente porque falou. Gente que não casa com a história escolhida ou se remete demais a assuntos de trabalho, entediantes, fluxos de caixas, lotes recebidos, relatórios de desempenho. Acho, só isso, que a grande aventura humana pertence ao silencioso, ao de olhar inteiramente perdido, ao que está pensando em outra coisa além do fato de estar ali, no vagão.

O homem de terno xadrez, solteirão e inseguro, ou nem tanto, talvez tenha certa experiência de vida - e é longa sua história de expressivo nome do show business até passar o tempo dos trios de cantor e de duas dançarinas de saínha. Esse mundo movimentou muito dinheiro e de repente não movimentava mais um centavo, pelo fato de que as coisas entram e saem da moda, especialmente no mundo volátil em que estavam os trios e as moças de saias curtas; muita curtas mesmo, quase nada. Quando tudo terminou, inclusive o dinheiro, o homem de terno xadrez iniciou uma vida na multidão, sem carro, todo dia no metrô, ainda tentando bater em velhas portas para vender shows baratos de mágicos, animadores de festas infantis e conferencistas motivacionais. De vez em quando se encontrava com os ex-integrantes do trio, tão envelhecidos quanto ele, metidos em outros negócios: uma das dançarinas tornou-se dona de uma pequena loja de mercadoria chinesa; a outra agencia acompanhantes para uma restrita carteira de clientes.

Durante alguns meses tentei extrair mais alguma coisa do pensamento do homem e me fixava em seus poucos movimentos para uma descrição mais  verossímel do personagem, na qual não faltariam os tradiconais nariz adunco e o rosto macilento. Era isso, de fato, pois o homem de terno xadrez parecia doente, empenhando suas últimas forças naquelas viagens de metrô, quase sempre em pé.

Mais na frente, ele e seus jeitos inventados por mim, a tendência de minimizar os males, estou bem, tudo certo, era apenas um jeito de não preocupar os amigos, mesmo no último dia, no metrô, após uma dor, dorzinha, segundo sussurrou, e ali mesmo caiu duro, entre as cadeiras do trem. Pode ser assim e pode ser de qualquer outra maneira, como se atirar nos trilhos, numa cena manjada, mas antecedida de certo conteúdo, cujo final, a morte do homem de terno xadrez, torna-se apenas parte de uma história que escorre devagar até se dissolver sem estardalhaço.

De todos os personagens do metrô o homem de terno xadrez é o mais presente porque senti em seus poucos movimentos certo rito – ou, como queiram, mania; um padrão na contração dos olhos, forçando as pálpebras atrás de uma escuridão capaz de apagar pensamentos. Ou talvez fosse apenas um homem de poucos amigos, que prefere que assim seja, não lhes fazem falta, pois quer mesmo é solidão, distante ou perto, conforme lhe convenha.  O homem também inspirava esse modelo ao suspirar, mas logo caindo em si e logo retornando à sua viagem interior.

Ele esteve no ponto para dizer o que pensa,  ou penso que esteve,  e nessas horas eu siguia em frente, dentro da cabeça do homem de terno xadrez, inteiramente voltada para as áreas de escape, entre boas recordações da vaidade, quando ela ardia, no tempo dos  shows lotados. Havia ainda uma imaginação ainda mais fora da realidade,  nem no passado nem no futuro, o velho paraíso de cada um. O dele tinha mulheres, infância e uma sinfonia alpina. Pai, mãe e uma casa; a casa perdida num negócio mal feito. A essência do pensamento do homem de terno cinza era, ou é, o que não existe mais.

Há ainda o homem de terno xadez metódico milimétrico, capaz de saber quantos minutos foram gastos em atos cotidianos, em tanto tempo lavo a barba em tanto tempo fumo um cigarro, dessa espécie de pessoa sem abstração, apenas de atos  uns atrás de outros. Não consegue, por isso,  divagar sobre  amor, ódio e culpa. Este conta,  de si para si, o número de cadeiras do trem, o número de pessoas de óculos e às vezes o número de estações em que se desce pela direita. Um personagem descartado por se aproximar do diagnóstico dado a mim pelo médico.

Aos poucos eu mesmo me torno personagem do trem, encenado com passageiros de variados formatos, de universos diferentes,  de outras línguas,  um romance rico em diversidade, mas de condensação difícil, conforme ficou claro na última leitura. Faltava quase tudo ao ator principal, de harmonia a profundidade. De repente, o empresário do trio torna-se discursivo em demasia, numa imitação sem sucesso de O Idiota.  De repente, o homem de terno xadrez eram tantos e diversos, e ainda são, a ponto de não haver mais controle sobre seus movimentos.

Homens de terno xadrez à disposição de qualquer história,  um  exército em condições de encher todos os vagões, cada um diferente  do outro e mais numerosos do que todos os outros juntos. O honesto submete sua consciência a longos interrogatórios - quer ver se falhou em algum momento -, enquanto o homem de terno xadrez desonesto só pratica pequenos delitos,  em nome da sobrevivência. Vai a bocas livres, rouba sachês de açúcar nas padarias,  atrasa o aluguel.

Contei ao médico sobre a invasão de homens de terno xadrez, inclusive ele, o médico, era um deles,  porque,  além de não ser normal, a profusão desses tipos de aparência igual estava atrapalhando minha história, pois homens de terno xadrez já subiam pelas paredes, riam na TV, desciam pelas torneiros.. Embora conhecesse o personagem,  de tanto que falei nele, o médico resolveu aumentar a dose do remédio. Aceitei porque pretendo me concentrar em apenas em um homem de terno xadrez – apagar tudo, começar de novo e trazer o homem de terno xadrez de volta ao trem. Em pé, diante da porta, nariz adunco, rosto macilento.



terça-feira, 7 de outubro de 2014

O poço




Eu repetia vamos em frente, avante, essas coisas motivadoras, frases de cunho político, mãos cerradas para o exército de homens arrastando o peso  enorme  do fundo até a borda, numa distância já transatlântica, caso o cansaço fosse  medido  em quilômetros. Todos estavam no limite de suas resistências, mas reagiam à minha liderança, empenhando mais esforço, mais energia, numa jornada sem rumo. Enquanto eu pedia coragem, prumo, paciência, palavras de ordem com ponto de exclamação, o suor  do primeiro escorria no segundo e assim por diante, até chegar aos últimos da fila vertical, lá embaixo,  em forma de chuva de janeiro.

O pensamento desses homens moía o tempo  em lembranças tiradas a pulso, numa situação em que difícil pensar e se não pensassem não sairiam do canto, num quase paradoxo a ser resolvido com  valentia, pois ali estavam os últimos de nós, escalando o imenso buraco em que fomos nos meter. Gente de toda espécie, alguns conjecturando, em lampejos, sobre assuntos diversos para não se atar apenas à tarefa a ser cumprida, uma questão de vida ou morte, aliás.  A situação era extrema, o tempo todo, pois as paredes do poço eram gosmentas e  escorregadias,


Eu era o da frente, levando o peso da autoridade e mais não sei quantos corpos exaustos da subida, sem contar os que os que caíram pelo caminho e de tão fundo o poço muitos ainda estão caindo até hoje. Durante o percurso tentei contar histórias aos gritos, além das minhas possibilidades, para manter a tropa entretida e atenta e sem perder tempo com saudade ou pena dos que ficaram. Então eu contava a história do condenado a repetir a mesma empreitada de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, mas quando ele chegava ao topo a pedra rolava  e a tarefa teria de ser repetida, mesmo sendo um desperdício. Os homens ouviam o Mito de Sísifo e perguntavam se em nosso caso seria igual - rolaríamos abaixo como a pedra antes de ver a luz do dia no fim do poço. Eu dizia: não; nosso enredo é diferente, talvez encontrássemos a explicação, embora não soubesse nem mesmo se aquilo iria terminar um dia, como  de fato não terminou ainda.