terça-feira, 26 de setembro de 2017

Na mesma toada


Por Joao Bosco Alves Sousa

Acordei muito cedo para não fazer nada. Quase não reconheci o senhor no espelho do banheiro que me encarava. Senti pena daquele outro que imitava meus gestos. Tiro os olhos do espelho e procuro o creme dental que já está no fim. Pensei um impropério, mas não pronunciei em voz alta como se não quisesse acordar alguém ou a mim mesmo. Será que estou preso dentro de algum pesadelo? Vou até a geladeira e o que me resta de desjejum é o resto de uma salsicha que sobrou de alguma refeição. Engulo com certo enjoo e arremato com um copo d'água. Sento pesado na poltrona para fumar um resto de cigarro e pensar numa agenda do dia que não tenho. Resta-me apenas todo o dia inútil. Sorvendo lentamente cada trago para que durasse uma eternidade, vejo o infame bilhete de cobrança sendo enfiado por baixo da porta. Sei que é o síndico pelo latido histérico do cão que ele sempre leva para passear naquela hora. Penso em mandar enfiar o bilhete no cu ou apanhar a bosta do cachorro com ele. Mas não me resta muita disposição. Continuo sentado à espera de Godot. Mantenho os olhos fixos onde antes tinha uma televisão e agora só restam expostos fios, poeira e um controle quebrado. Faz algumas semanas que a tevê virou comida e maços de cigarro. Não sou mais smart, nem conectável e nem tributável.

Saco de um livro do Maiakovski que está na prateleira e leio um trecho de um poema:

"Caros
camaradas
futuros!
Revolvendo
a merda fóssil
de agora,
pesquisando
estes dias escuros,
talvez
perguntareis
por mim."

Ultimamente só aqueles a quem devo perguntam por mim, ou o maldito síndico que me vigia. O estômago dói, as vísceras fazem um barulho estranho, protestam exigindo uma xícara de café para desfrute...


Meu tempo agora é marcado por um arremedo de relógio solar. A réstia de luz insidiosa avança pela janela. Pego os restos do que sobraram de mim e como a um cão que levamos para passear resolvo sair, fugir da caverna que se tornou o apartamento. A segunda-feira se repete como um feitiço do tempo. Ao chegar à porta eu paro suando frio, imaginando o síndico me espreitando, me tocaiando na escada, no elevador... Preciso estancar a dignidade que foge das minhas veias. O que resta do homem que fui escolhe sair pela janela... Não será mais um segunda como as outras eu me tornarei pássaro e voarei para longe das contas, do desespero da infâmia de todos os dias...

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Semana


Segunda: duas latas de sardinha, um pacote de macarrão, três fatias de pão de caixa - a última levemente esverdeada –, duas salsichas e um ovo. Faltam três dias para o vencimento do aluguel, um ameaça de corte de energia está sob a mesa e a internet foi desligada. Acabou o Fundo de garantia. Saldo bancário: negativo.

Terça: dinheiro emprestado, mas só para o custeio, metrô e comida. Acho que ela tratou como fundo perdido. Enquanto isso, pensei em dirigir um Uber; é o que resta. O problema é que não sou bom motorista. Voltei às contas, somei e o resultado me deixou nervoso. A situação foi resolvida provisoriamente: tomei um remédio para dormir. O último comprimido.

Quarta: tinha esquecido que existe taxa de condomínio. O síndico bateu à porta. Olhei pelo olho mágico. Não atendi. Passei a tarde em silêncio, lendo uma versão antiga da Ilha do Tesouro, cheia de circunflexos. Cardápio: cachorro quente nas três refeições. O apartamento ficou com cheiro de salsicha.

Quinta: sai bem cedo para não encontrar o síndico. Ele aparece do nada. Quatro meses de atraso. Pensei que fosse menos. O tempo voa. Mas o condomínio não é a prioridade. O aluguel venceu hoje. A partir de amanhã, multa de 10%. Há poucos empregos e perdi a prática de ir atrás. É o que dá passar trinta anos na mesma empresa.

Sexta: o fim de semana chegando é um alívio. Eu estou vivendo um enorme fim de semana, mas o de verdade é diferente. Menos gente na rua, mais calma. Nem pensei muito nas contas a pagar e em nada a receber. Mas pensei. Li umas páginas de Dostoievski diante do pelotão do fuzilamento e senti a mesma coisa. Em termos de prazo, principalmente, como se faltasse um minuto para o síndico e outros cobradores se alinharem para os tiros.   Mas depois resolvi acreditar que, na última hora, no último centavo, tudo será resolvido.

Sábado: existem milhões de maneiras de se divertir sem dinheiro. Eu gosto de ver pessoas nos bares, ouvir as conversas, enquanto estou encostado num carro, perto das mesas na calçada. Os clientes sorvem a bebida naturalmente; nem parece que um drink daqueles equivale a duas dúzias de pães. Nem parece que um dia não tão distante eu costumava encerrar a farra com café espresso e licor estrangeiro. Encontrei um velho amigo. Ele perguntou o que eu fazia ali, do lado de fora. Respondi, meio sem pensar: “nada”.


Domingo: Adquiri o hábito de ir à missa. Não por fé, mas pelas igrejas. Além do mais a entrada é franca, pelo menos nas que vou. Quanto mais barrocas, melhor. Não escuto uma única palavra do padre. Meu olhar se perde nas colunas, no encanto da cúpula. Qualquer elemento escultural da arquitetura me faz lembrar a Basílica de Vierzehnheiligen (do tempo em que eu até viajar, viajava). Depois da cerimônia, recolho-me. Ligo a TV na programação dominical, mas fico pouco tempo diante do canal que apresenta as mesmas coisas da semana passada. Abro a janela e espero alguma ideia, vinda do nada, ou um aviãozinho de papel feito com bilhete premiado. Amanhã é segunda-feira.